domingo, 18 de outubro de 2009

Maurizio Lazzarato

A verdade das diferenças

Maurizio Lazzarato, sociólogo, autor de “As revoluções do capitalismo”, afirma que os últimos cursos de Michel Foucault associam vida democrática à alteridade", em artigo publicado no jornal O Globo, 17-10-2009.

Os dois últimos cursos de Michel Foucault no Collège de France constituem seu testamento ético-político, no qual ele problematiza a democracia ateniense, interrogando-a a partir de nossa atualidade.

Estabeleceu-se, na democracia grega, uma relação paradoxal entre igualdade e diferença que ainda é e sempre será problema nosso. A constituição ateniense (politeia) garante a qualquer um o direito de pedir a palavra (isegoria), de se levantar na assembleia dos cidadãos e de dizer verdadeiro (parrésia) no que concerne aos assuntos da cidade (pólis).

Mas o direito de qualquer um de pretender a verdade nada diz sobre “quem” vai efetivamente tomar a palavra. A politeia e a isegoria são apenas condições formais da democracia.

O exercício real do direito estatutário de dizer verdadeiro introduz uma diferenciação ética, que é regida pela dynamis (a potência, força, a singular coragem daquele que fala) que, ao contrário do direito, não é igualmente distribuída.

Por que o dizer verdadeiro implica numa diferenciação ética? Por um lado, porque o dizer verdadeiro significa tomar partido frente a outras tomadas de posição e determina, portanto, as clivagens, os partidos, o agonismo entre cidadãos livres. A parrésia está muito mais ligada a uma dinâmica, a um combate, a um conflito, do que a um estatuto ou a um direito. Por outro lado, porque o dizer verdadeiro implica num engajamento pessoal, numa crença, na assunção do risco daquele que fala, isto é, numa relação consigo mesmo (coragem) e numa relação com os outros (responsabilidade de enunciar uma verdade, de guiá-los, de convencê-los etc.).

Igualdade estatutária e diferenciação ética

Na visão de Foucault, a tomada da palavra do homem que se levanta na assembleia ou na sociedade e que pretende “dizer verdadeiro” sobre os assuntos da pólis é “irredutível à igualdade”. A democracia, apoiada tão somente no princípio da igualdade, “não pode dar lugar à diferenciação ética dos sujeitos que falam, que deliberam, que decidem”.

Estamos diante de um paradoxo: de um lado a democracia estaria em perigo sem o discurso verdadeiro, sem o duelo, o conflito, o agonismo entre discursos que pretendem igualmente ter verdade; entretanto, por outro lado, “a possibilidade da morte do discurso verdadeiro, a possibilidade da redução do discurso verdadeiro ao silêncio está inscrita na democracia”.

Esta possibilidade tornou-se realidade em nossas democracias consensuais, onde todo mundo diz a mesma verdade “liberal” (com nuances imperceptíveis entre a centro-esquerda e a centro-direita). O conflito, o agonismo, a luta foram devorados pelo realismo das “necessidades econômicas”( globalização).

O paradoxo foucaultiano faz emergir uma outra problemática, que está também no coração de nossas democracias.

O dizer verdadeiro depende não somente da igualdade estatutária, da forma constitucional, mas também do ethos, da maneira como o indivíduo se constitui como sujeito moral. O que significa dizer que não há democracia sem a constituição de um sujeito “ético”; o que significa dizer que a democracia implica numa forma de vida, numa existência. Este processo de produção da subjetividade não constitui um mero complemento moral, mas uma necessidade estrutural da democracia.

Revolucionários e artistas do século XIX como modelo

A formação do sujeito moral deu lugar a uma dupla alternativa que marcou a história do mundo ocidental: uma metafísica da alma, representada pelo platonismo (e sua tradução cristã), que dá ao conhecimento de si a forma de uma contemplação, estabelecendo uma dupla clivagem (a do corpo e alma e a do mundo verdadeiro e mundo das aparências), e uma “estética da existência”, representada pelo cínicos. Esta tradição minoritária da filosofia grega dá ao conhecimento de si a forma de exercício, de prática, de pôr-se à prova a si mesmo, à vida (bios), ao mundo. Com os cínicos, a “estética da existência” toma a forma de uma experimentação que é, simultaneamente, o combate no mundo contra o mundo.

O dizer verdadeiro se mensura e se relaciona com o que Foucault denomina de “vida militante”, que é, ao mesmo tempo, crítica do mundo existente e um apelo a um “outro mundo” e a uma “outra vida”, cuja herança deve ser buscada na vida dos revolucionários do século XIX, e na vida dos artistas dessa época. A medida de uma verdadeira democracia é a alteridade, a diferença, a diferenciação ética que abre a possibilidade de um mundo e de uma vida a ser construída e experimentada.

As últimas palavras de seu último curso, em março de 1984, poucos meses antes de sua morte, são testemunha disso: “não existe instauração da verdade sem uma posição essencial de alteridade.A verdade não é nunca a mesma.

Não pode existir verdade senão na condição de outro mundo e uma outra vida”.

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