domingo, 31 de maio de 2009

Olgária Mattos

A educação e os comics: instantâneos brasileiros

Olgária Mattos é filósofa, professora titular da Universidade de São Paulo
Fonte: Agência Carta Maior


A imprensa divulgou a notícia de que as escolas públicas de São Paulo, a fim de “estimular a leitura e a escrita” no aprendizado da língua portuguesa, haviam adotado, para crianças entre oito e nove anos, histórias em quadrinhos. A publicação foi considerada imprópria por conter palavrões que, como se sabe, portam conotação sexual. Considere-se, também, além do estilo do desenho, a dificuldade de leitura de seus balões, que se deve ao traçado das letras, desenho e letras plenamente adequados ao gênero.

Assim, a questão não é a história em quadrinho, mas a adoção, pelas escolas, de uma expressão literária de distração “para adolescentes e adultos”, uma vez que a árdua tarefa da educação é introduzir a criança no universo do conhecimento, formando-lhe a sensibilidade e o pensamento, para que ela possa apropriar-se, progressivamente, de um repertório mais amplo e diverso daquele de que dispõe por sua inserção social e pela cultura de massa.

Confundindo educação e entretenimento, cedendo à adaptação da escola ao gosto das mídias, esta escolha não foi circunstancial, pois expressa o núcleo da ideologia contemporânea, que considera que “a verdadeira cultura é inacessível à grande massa”. Adorno escrevia nos anos 1940 que a mídia determinou uma cisão entre “cultura de elite” e “ cultura popular”, protagonizando a cultura média midática, que difunde um conhecimento medíocre para a grande massa. Para ele, a indústria cultural seria, então, produzida “para os ignorantes”. Em seguida, seria levada a cabo “pelos ignorantes”, por equipes técnicas que não estabelecem nenhum contato ou contato apenas episódico com o mundo da cultura. Acrescente-se o ideário de que a dificuldade em alfabetizar, bem como em despertar interesse pelos saberes escolares, devem-se ao pressuposto de a escola não estar adaptada ao universo do “ educando”. Na verdade, talvez a crise esteja em a escola ter-se adaptado à carência do status quo , que corresponde à indigência das próprias elites educacionais.

Em sua obra "A revolução da escrita e suas conseqüências culturais na Grécia Antiga" , Havelock indica a maneira pela qual o advento da educação formal e o ensino da gramática foram de grande eficácia, pois qualquer sistema de escrita que reproduzisse apenas a língua falada estaria sujeito a flutuações e variâncias que acabariam por comprometer sua função social de comunicação e clareza, e por isso exigia um alto grau de convenção. Também Adorno em suas "Minima Moralia" alertava para as dificuldades das relações humanas na sociedade industrial produtivista,uma vez que esta se encontra sob o domínio da razão instrumental, movida pelo culto da eficiência e dos resultados, por um lado, pelas razões econômicas, de outro. Na educação, trata-se, antes da pergunta sobre o que ensinar e seus métodos, de refletir sobre o “tipo de indivíduo que se procura formar com a educação.” Por visar o indivíduo compassivo com seus próximos e solidário na sociedade, a educação não se pautava pelas necessidades do mercado. Valia-se, pois, no ensino da língua, de narrativas exemplares em que a elaboração literária era essencial. Por isso,associava-se o ético ao prazer estético.

A adaptação da escola ao social é comandada pelo fetiche da facilidade que comanda, por sua vez, as transformações dos programas educacionais, definindo comportamentos intelectuais. Esta mutação do caráter civilizacional da educação escolar não é acontecimento isolado de São Paulo, mas se expande por todo o sistema de ensino. Que se pense na indústria dos livros para-didáticos e sua discutível qualidade, recomendados em estabelecimentos de ensino.

Desde suas origens gregas, a educação formal visava desenvolver saberes e habilidades a fim de reunir escola e vida. Diversamente daquelas aptidões que se aprendem sem necessidade de instrução, pela experiência e pelo hábito, a escola foi o lugar de adoção de uma identidade coletiva com valores e conhecimentos comuns e compartilhados. Lembre-se que “aluno”, em francês, se diz “ élève”, porque a educação eleva a criança e sublima o povo.

Independentemente de sua utilização, o fato de este material ter sido cogitado para as escolas públicas indica de que maneira o Estado produz intensivamente a exclusão, educando os mais pobres para permanecerem na pobreza.. Elitista, o Estado impede o acesso dos despossuídos à cultura formal, tornando-a privilégio de uma elite. “Genocídio cultural”, na expressão de Pasolini.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Charge - Maringoni

Fonte: Agência Carta Maior

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Entrevista - Gilles Lipovetsky

A nova sociedade

"A despolitização da sociedade, a força da mídia e um individualismo sempre mais acentuado favorecem a transformação da vida política em matéria de revista". Essa é a opinião do filósofo francês Gilles Lipovetsky, que, comentando os casos de Sarkozy e Berlusconi, lembra que essa evolução está em curso há muito tempo. A reportagem é de Fabio Gambaro, publicada no jornal La Repubblica, 19-05-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Lipovetsky é autor de "A Era do vazio" (Editora Manole, 2005), "A felicidade paradoxal" (Companhia das Letras, 2007) e "O luxo eterno" (Companhia das Letras, 2005).


Como os interessados diretos reagem?

Experimentam desfrutar aquela que Baudelaire chamava de a curiosidade do homem moderno. Dado que os programas não conseguem mais envolver os eleitores, aponta-se tudo na personalidade do homem político. Aqui surge a necessidade de colocar em cena a sua vida privada. Os políticos aceitam e às vezes favorecem essa espetacularização da sua vida, esperando chamar a atenção de quem se desinteressa deles. Uma vez se fazia sonhar por meio dos programas; hoje, com a narração da própria vida. Naturalmente, isso se tornou possível pela força da mídia, que responde às expectativas de um público muito sensível a tais incursões no privado. Na prática, o voyeurismo de uns responde ao exibicionismo de outros.

Com quais consequências?

As técnicas da política se assemelham sempre mais às do marketing e do "star system". Hoje, a publicidade não se contenta mais em dizer que um certo produto é melhor do que o outro. Ela quer criar uma ligação afetiva com esta ou aquela marca. O mesmo ocorre na política. Em vez de defender um programa, o político tenta alimentar uma corrente de simpatia, de afeto. A política, que era o lugar da racionalidade e da reflexão, se torna o âmbito da adesão sentimental. Eis porque a vida privada e a sua narração se tornam tão importantes. O político não faz outra coisa do que se adequar a uma sociedade dominada pelo individualismo e pela vida privada. Mas assim a política se torna objeto de conversação em vez de mobilização.

Colocando em cena a sua vida privada, os políticos tentam se colocar no mesmo plano dos eleitores?

Certamente, querem parecer pessoas normais. A narração dos seus amores, dos seus divórcios, dos seus problemas é útil para construir uma imagem mais próxima daquela do cidadão comum. Mas essa banalização enfraquece ainda mais o seu estatuto. Enfim, é um círculo vicioso em que a política perde a dimensão carismática que tinha na origem. Sem se esquecer que a utilização do privado para afastar a atenção dos verdadeiros problemas da sociedade sempre é uma operação perigosa que pode fugir do controle a qualquer momento.

Para ler mais:


terça-feira, 19 de maio de 2009

Roberto Ciccarelli

Códigos novos na era do direito pós-humano

O que a biopolítica diz hoje aos juristas é que a relação entre direito e vida é compreensível apenas fora da lógica formal que caracterizou o direito moderno. No seu último trabalho, “Diritto Vivente” [Direito vivo, em tradução livre] (Editora Laterza, 226 páginas, 20 euros), Eligio Resta, professor de filosofia do direito na Universidade III de Roma, assume plenamente esse novo cenário em que emerge um direito não mais ligado a uma “ciência pura”, nem só à esfera estatal, mas a um caráter excedente, o da vida com relação às formas institucionais que a regulam. A análise é de Roberto Ciccarelli, publicada no jornal Il Manifesto, 27-11-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS




Tradicionalmente, a vida foi entendida como uma dimensão “intersticial” entre lei e autoridade. Sobre esse “suporte”, variavelmente definido como “costume”, “comportamento”, ou ainda “história”, o direito exercitou as próprias funções normativas, disciplinárias ou “pastorais”. Resta coloca essa fundamentação de cabeça para baixo e defende que hoje a vida é a da esfera excedente na qual o direito age, tentanto inclinar de tempos em tempos a norma jurídica com relação aos seus movimentos.

Essa modificação completa é explicada com uma ampla genealogia na qual o direito não é mais declinado nos termos conhecidos do nomos basileus. Com relação à genealogia de Carl Schmitt, inspirada pelo poeta grego Píndaro que ligou direito com soberania, Resta propõe a do filósofo Archita, baseada sobre o nomos èmpsychos. É à vida que o “direito vivo” se dirige, não ao estatuto retrospectivo das normas escritas, isto é, ao àpsychos, ao sem-vida. O soberano, como os cidadãos, exerce igualmente a lei, já que compartilham a própria vida e, por isso, “fazem” juntos a lei.

Nessa perspectiva, a atividade do direito não é limitada à prática dos juízes ou dos advogados. O direito é praticado também por grupos sociais, por sujeitos econômicos como bancos, seguradoras ou sociedades imobiliárias e financeiras. Mas o sentido mais profundo está no fato de que o “direito vivo” é essencialmente vir a ser, antagonismo, dialética. Ele recolhe práticas sociais, paixões e vontades políticas que atravessam o texto escrito da lei, mas mantêm um excesso com relação a ele. Falando de “excesso” da vida com relação à lei, os juristas não fazem alusão a uma concessão “vitalista” ou “irracional”, mas ao limite constitutivo do direito capaz de fechar em uma única norma a multiplicidade das formas assumidas por uma vida. Sobre essas bases, Resta consegue defender a idéia de um direito que valoriza a autonomia pessoal, não só o reconhecimento dos sujeitos em um código de leis. Quanto de “vivo” existe no direito é, portanto, essencial seja com relação a casos como o de Eluana Englaro, seja em referência à busca de um futuro mais justo para as novas gerações.

Não faltam, porém, elementos problemáticos nessa “semântica” jurídica. A intenção de Resta é mostrar um direito imanente às formas de vida. Mas em que sentido se fala de um “direito vivo” no caso das políticas securitárias sobre a imigração, ou contra o terrorismo? Aquilo que é “vivo” no direito revela aqui uma ambivalência perigosa, pela qual, de um lado, tende-se a valorizar o “excesso” de algumas formas de vida, mas de outro a atividade do direito mira a um controle preventivo dessas formas, contribuindo à criação de um novo, e muito flexível, “direito vivo” dos aparatos de controle. Tal ambivalência é o enigma do jurista que se confronta com a época “biopolítica” do direito. Muito simples e presunçosa seria a idéia de resolvê-lo. Esperada, pelo contrário, seria a recorrente lamentação nostálgica à “desumanização” do direito. O direito, é a resposta do livro de Resta, entrou na era do “pós-humano”. Tomar consciência da ambivalência constitutiva desse direito permite ao jurista entender as novas instâncias provenientes da sociedade evitando que o seu excesso termine por ser removido do poder.

Para ler mais:



sexta-feira, 15 de maio de 2009

Tzvetan Todorov

Os torturadores voluntários de Bush

Artigo de Tzvetan Todorov, semiólogo, filósofo e historiador de origem búlgara publicado no jornal El País, 14-05-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS




Os documentos relativos às práticas de tortura empregadas nas prisões da CIA que o governo Obama tornou público lançam uma nova luz sobre este tema. Como explicar a facilidade com que a tortura tenha sido aceita e aplicada contra os prisioneiros por pessoas que atuam em nome do governo estadunidense?


Os documentos recém publicados não revelam casos de tortura concretos, estes são de conhecimento de todos. Entretanto, revelam abundantes informações sobre a forma em que se levavam a cabo as sessões de tortura e como as entendiam os agentes que as praticavam.


O mais surpreendente é descobrir a existência de uma normativa incrivelmente meticulosa, formulada nos manuais da CIA e retomada, a sua maneira, pelos responsáveis jurídicos do governo de George W. Bush. Até agora era possível imaginar que tais práticas eram uma mostra do que se pode denominar “atropelos”, infrações involuntárias das normas provocadas pela urgência do momento. Ao contrário, o que se percebe nos documentos é que se trata de procedimentos pautados até em seus mínimos detalhes, aos milímetros, perfeitamente cronometrados.


Assim, as formas de tortura são 10, número que posteriormente é elevado a 13. Dividem-se em três categorias, cada uma delas com diversos graus de intensidade: preparatórias (desnudez, manipulação da alimentação, privação de sono), corretivas (golpes) e coercitivas (duchas de água fria, encerramento em caixas, suplício da banheira).


No caso das bofetadas, o interrogador, segundo os manuais, deve golpear com os dedos separados em um ponto equidistante entre o extremo do queixo e a parte inferior do lóbulo da orelha. A ducha fria aplicada ao prisioneiro sem roupa pode durar 20 minutos se a água está a cinco graus, 40 minutos se está a 10 graus e até 60 minutos se está a 15 graus.


A privação de sono não deve ser superior a 180 horas, mas depois de um repouso de oito horas, pode recomeçar. A imersão na banheira pode durar até 12 segundos, durante um período que não deve exceder a duas horas diárias, e durante 30 dias seguidos (um preso particularmente resistente passou por este suplício 183 vezes em março de 2003). O encerramento em uma caixa de dimensões reduzidas não deve ser superior a duas horas, mas se a caixa permite que o prisioneiro fique de pé, pode se prolongar até oito horas seguidas, 16 por dia. Caso se introduza um inseto, não se deve dizer ao prisioneiro que a picada será dolorosa ou inclusive mortal.
E segue assim sucessivamente por páginas e páginas.


Inteiramo-nos também por estes documentos de como se formam os torturadores. A maioria dessas torturas é reproduzida do programa que seguem os soldados americanos que se preparam para enfrentar situações extremas (o que permite aos responsáveis concluir que se trata de provas absolutamente suportáveis). E o que é mais importante, se escolhe os torturadores entre aqueles que tenham tido “uma longa experiência escolar”, nesse tipo de provas, os próprios torturadores foram torturados em sua primeira fase de sua formação – um curso intensivo de quatro semanas para prepará-los para o seu novo trabalho.


Os sócios indispensáveis dos torturadores são os conselheiros jurídicos, cujo trabalho é garantir a impunidade dos seus colegas. Isto constitui outra novidade: a tortura já não se apresenta como uma infração da norma comum, mas sim que se converte na própria norma legal. Nesse caso, os juristas recorrem a outra série de técnicas. Para se livrar da lei, os interrogatórios devem se realizar fora do território nacional dos Estados Unidos, mesmo que em bases americanas em outros países.


Tal como se define legalmente, a tortura implica a intenção de produzir um grande sofrimento. Sugere-se, por conseguinte, aos torturadores que neguem essa intenção. De tal modo que não se esbofeteia o preso para produzir dor, mas sim para surpreendê-lo e humilhá-lo. Quanto ao objetivo de encerrá-lo em uma caixa de reduzidas dimensões não se trata de provocar desordem sensorial, mas sim produzir certa sensação de incômodo.


O verdugo deve insistir sempre em sua “boa fé”, em suas “convicções sinceras” e no razoável de suas premissas. Utilizam-se sistematicamente de eufemismos: “Técnicas reforçadas” no lugar de tortura, “especialista em interrogatórios” no lugar de torturador. Também se evita deixar sequelas físicas e, por esta razão, se preferirá a destruição mental dos danos físicos, assim mesmo, se destruirá imediatamente as possíveis gravações ou imagens das sessões.


Outros coletivos colaboram na prática da tortura: o contágio se estende para além do limitado círculo dos torturadores. Além dos juristas que se encarregam de dar legitimidade a suas atividades, os documentos e mencionam sistematicamente os psicólogos, os psiquiatras e os médicos (obrigatoriamente presentes em todas as sessões), e também as mulheres (os torturadores são homens, mas a humilhação é ainda maior, mais grave, quando há mulheres presentes), e aos professores de universidade que provêem justificações morais, legais ou filosóficas.


A quem devemos responsabilizar por esta perversão da lei e dos princípios morais mais elementares? Os executores voluntários da tortura são menos responsáveis do que aqueles dos altos cargos e os magistrados que a justificaram e a fomentaram; e estes, menos responsáveis, por sua vez, daqueles que tendo o poder de tomar decisões políticas lhes pediram que fizessem.
Os governos estrangeiros aliados, sobretudo os europeus, também têm a sua parte de responsabilidade. Em que pesem terem estado sempre cientes da existência dessas práticas e de terem sido beneficiados pelas informações obtidas por estes meios, nunca, nem antes, nem agora, se preocuparam em levantar o mais mínimo protesto, nem sequer fizeram o mais leve sinal de desaprovação. Quem cala consente. Teríamos que coloca-los no banco dos réus?


Em uma democracia, a condenação de políticos consiste em privá-los de sua reeleição. E em relação aos outros profissionais, esperar-se-ia que sejam os seus iguais que imponham o castigo. Quem gostaria de ser aluno de semelhante professor, paciente de um médico ou ser julgado por um juiz assim?


Se se quer compreender porque estes valentes estadunidenses aceitaram tão facilmente se converter em torturadores, não adianta procurar argumentos no ódio em um meio ancestral dos muçulmanos ou árabes. Não. A situação é muito mais grave. O que mostram os documentos estadunidenses que acabam de se tornar públicos é que sempre e quando se faça parte de um coletivo e se esteja respaldado por ele, qualquer homem que obedeça aos nobres princípios ditados pelo “sentido do dever”, pela necessária “defesa da pátria”, ou que se deixe arrastar por um temor elementar pela vida e o bem estar dos seus, pode converter-se em um torturador.

sábado, 9 de maio de 2009

Entrevista - René Girard

O ciclo do desejo e da violência

Para o filósofo e historiador francês René Girard, a tendência das multidões é canalizar a violência coletiva em um único indivíduo. A entrevista é de Melissa Antunes de Menezes e publicada na Revista Cult, n. 134, edição de abril de 2009, p. 30-32.
Fonte: UNISINOS








“A concepção romântica do desejo é ilusória”, afirma René Girard, 85 anos, membro da Academia Francesa e professor de Literatura Francesa na Universidade de Stanford. Sua teoria do desejo mimético indica que entre o sujeito e o objeto não existe somente o desejo, mas também o modelo, o mediador do desejo, ou o rival. O conceito de mimesis aqui estabelece o ponto central da articulação. Desde as sociedades primitivas, o desejo mediado é o desejo causador dos conflitos. Pela imitação, aprendemos a falar, a andar e a desejar. E, pela imitação do desejo alheio, competimos e rivalizamos, dando início a um ciclo de violência, capaz de se atenuar pelo sacrifício, neste caso, de uma vítima que acaba por aliviar as tensões do coletivo, restabelecendo a paz momentânea. Torna-se inevitável, dentro deste esquema, que também o ciúme e a inveja façam parte da mimesis do desejo.

Radicado nos Estados Unidos há mais de 50 anos, Girard estudou o Antigo Testamento sob a ótica sociológica e vê no cristianismo a primeira religião que consegue amenizar a violência pela expediente da crucificação.

O historiador fala sobre alguns dos temas presentes naquele que é considerado seu mais importante livro, Coisas ocultas desde a fundação do mundo, publicado originalmente em 1978 e lançado neste mês de abril pela editora Paz e Terra. Nele, Girard aprofunda, através de diálogos como dois psiquiatras franceses, suas hipóteses sobre a violência, o desejo e a representação do sagrado, desenvolvidas a partir de temas de seu livro anterior, A violência e o sagrado.

Fala-se muito hoje em violência. Mas não vivemos uma época em que há maior controle social e cultural da violência do que em qualquer outro período da história?

Temos um grande controle da violência no que se refere ao local. Entretanto, as pessoas não estão cientes da violência em si. A mediação externa resolve o problema da violência de forma imperfeita porque o faz através de uma vítima. Considero que temos paz no âmbito individual, mas a ameaça está no coletivo. Tanto o rito quanto a proibição somente adiam a explosão da violência.

Sistemas religiosos como o cristianismo atuam no sentido de conscientizar sobre o uso da vítima expiatória. E não existe uso deste mecanismo de forma consciente. O bode expiatório é inconsciente, ou não é.

Em um nível exponencialmente maior, estamos lidando hoje com a possibilidade da destruição total, do uso da violência em termos absolutos, através do crescente desenvolvimento de tecnologias novas como a nanotecnologia – manipulação de partículas que podem desencadear reações de potencial altamente destrutivo.

Assim como Peter Gay, o senhor afirma que o coletivo é assassino por natureza e não o homem. Poderia explicar?

Penso que o indivíduo não é assassino em sua natureza e, sim, o coletivo. As descobertas coletivas são perigosas em vários aspectos do desenvolvimento humano.

A primeira metade do século XX foi intensamente bélica. O século XXI traz novos desafios e preocupações, que são o desenvolvimento científico e as descobertas para as quais não estamos novamente preparados.

Acredito que nossa natureza mimética é responsável pela tendência das multidões de focalizar sua violência em um único indivíduo que se transforme, arbitrariamente, no bode expiatório de alguma comunidade. A matança unânime de uma vítima inocente, no passado, pacificava multidões perigosamente perturbadas e tornou possível sua estabilização.

Acredito que o bode expiatório tem um papel essencial na criação e na perpetuação de religiões arcaicas. As culturas arcaicas foram essencialmente a repetição de sacrifícios religiosos, evacuando a violência interna através destas vítimas substitutas. Isto não significa que eu recomende o mecanismo do bode expiatório para a manutenção da paz dentro das comunidades. Uma vez que o ciclo do sacrifício é compreendido, ele perde sua eficácia, como uma arma contra a violência interna.

Os deuses arcaicos, na minha opinião, são vítimas da matança daqueles que põem fim à violência disruptiva e são considerados divindades da violência e da paz.

Thomas Mann se perguntava: “Não é a paz um elemento de corrupção civil e a guerra purificação, liberação, uma enorme esperança?” O rito sacrificial – o uso da violência para apaziguar ânimos – vem sendo há muito tempo discutido pela literatura universal?

Não concordo que a guerra traga purificação. Na literatura há comentários sobre o comportamento mimético tanto do desejo, quanto da violência. O rito sacrificial é arcaico, é gênese da violência humana. O uso do bode expiatório está presente na literatura, como em Shakespeare, por exemplo.

Esta declaração de Thomas Mann reflete a atitude à época do início da Primeira Guerra e foi compartilhada por muitos ingleses e franceses. Este espírito durou até, aproximadamente, 1916. Estas opiniões sofreram mudanças extremas devido às terríveis perdas da guerra e do progressivo aumento do poder militar.

Mann era muito comprometido e leal às ideias antinazistas e perdeu sua crença no poder enobrecedor do aparato de guerra. Concordo com o Thomas Mann mais velho. No futuro, ou não haverá nenhuma guerra como aquelas do século XX, ou nós veremos a destruição da civilização.

Em Coisas ocultas desde a fundação do mundo, o senhor diz que os ritos sacrificiais perderam força sob influência do judaísmo e do cristianismo. No que concerne à relação entre Israel e Palestina, existe o uso do mecanismo sacrificial?

Devemos tentar ver todos os conflitos e guerras que temos hoje sob a ótica do mecanismo mimético. Mimesis tanto do desejo, quanto do uso da violência. No cristianismo, quebra-se o ciclo. Cristo oferece a outra face e redime seus algozes. Não busca vingança, não derrama mais sangue. É pela cruz, pelo amor, que se dá a interrupção do ciclo de violência. O cristianismo mostrou que a sociedade humana produzia vítimas únicas. A crucificação desobstruiu o caminho para o entendimento do processo da vítima expiatória.

Mimetizamos o desejo e também a violência? Ou, ao mimetizar o desejo, criamos a violência?

Sim, as duas sentenças estão corretas. Criamos rivalidades na mimesis, competindo pelo mesmo objeto, desejando os desejos do nosso modelo, o outro. Esta admiração velada do prestígio do outro, do que o outro possui, é a constatação clara de ser insuficiente. Constatação esta muito angustiante e incômoda. Já o modelo, o intermediário, não é passivo dentro deste mecanismo. Pelo contrário, faz de tudo para provocar o desejo do outro sobre seu objeto. Pois, que valor tem o objeto, senão pelo desejo de outrem? Este é o ciclo infernal do desejo. E também dos conflitos.

Para Freud, o mal-estar do homem moderno ocorreria devido à repressão de sua violência natural, que gera outros problemas de ordem interna e também conflitos sociais de diferentes naturezas. A teoria de Freud não vem de encontro à sua?

Sim, há uma oposição entre as ideias de Freud e as minhas. Muitos diriam que tanto na repressão da libido em Freud, quanto no uso do mecanismo de vítimas arbitrárias para aplicar explosões, reside uma ideia similar. Mas não concordo com Freud e com sua teoria de que tudo está relacionado ao desejo sexual. Freud justifica todo comportamento humano baseando-se nesta ideia. Ele foi o primeiro a ver a profunda influência que uma pessoa tem sobre a outra. Mas discordo de sua visão de que a influência dos pais delinearia a personalidade. A visão de Freud ficou muito restrita ao período em que viveu, no qual predominava um certo tipo de estrutura familiar.

E quanto àqueles que somente desejam o impossível? Ou, como disse Kierkegaard, “cometem o pecado capital de não querer nada profunda e autenticamente”?

Minhas ideias estão bem mais próximas às de Kierkegaard do que foi visto nas entrevistas que dei e nos artigos escritos sobre minha obra. Para mim, o desejo do impossível e o não-desejo ainda estariam de acordo com mecanismos miméticos.

Kierkegaard constatou, em sua análise dos três estágios do ser, a presença de um homem que se escora no outro. Possuindo um vazio existencial aterrador, ele procura na observação do outro, do que o outro possui, do que o outro aparenta, uma forma de saber quem é e como sentir-se pleno. Portanto, para ser ele mesmo, este homem necessita tomar conhecimento do outro, como no mecanismo do desejo mimético, onde este desejo somente se faz possível pela intermediação do que é e deseja um outro.

Para ler mais:


sexta-feira, 8 de maio de 2009

Massino Cacciari

A lógica do dinheiro e a existência de Deus

Filósofo italiano, Massimo Cacciari é professor de Estética na Universidade de Veneza desde 1985 e fundador da Faculdade de Filosofia da Universidade Vita-Salute San Raffaele, em Milão. Com este texto, inaugura-se nesta quinta-feira, na Aula Magna de Santa Lucia na Bolonha, Itália, a oitava edição da manifestação "Os Clássicos", dedicada neste ano ao tema do dinheiro com o título "Rainha pecúnia". O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 06-05-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


Rainha pecúnia... mas de qual "pecúnia" falamos? Da qual no mesmo nome ressoa a relação com a substancialidade da coisa, com a posse do "pecus", do animal do campo, do animal doméstico, que o "pastor" cuida zelosamente? Essa "pecúnia" foi destronada há tempos. Todas as propriedades da coisa, enquanto valor de troca, se apresentam separadas da sua forma natural no dinheiro. O dinheiro torna homogêneo, enquanto mercadoria, tudo o que, por natureza, é diferente. "A comum prostituta do gênero humano" torna um o coração de Antônio e os cães, os porcos, os escravos e os palácios dos seus zelosos amigos. Shakespeare docet, Marx discit.

Mas o dinheiro se distingue radicalmente da antiga pecúnia não só porque dessubstancializa o mundo, mas também porque exclui toda avareza. Se o mantivermos parado, ele se "evapora". O avaro gostaria que o seu dinheiro não se "solidificasse" nunca, gostaria que fosse "líquido" sempre, e que justamente dessa forma pudesse se multiplicar. Mas isso é impossível. O dinheiro, para se reproduzir, precisa "desaparecer" de novo no valor de uso, transformando-se em mercadoria. O dinheiro deve "morrer" para "renascer". A "mística" desse dinheiro foi explicada por Marx de uma vez por todas.

Mas isso que talvez não foi bem apreendido da lição marxista é a imanente e insuperável contradição de tal dialética. Se o dinheiro sempre deve "jogar" novas mercadorias para fora de si "como combustível no fogo" (Marx) e portanto criar e recriar necessidades, nada assegura que tais mercadorias podem se transformar novamente em valores. O sujeito que, ao consumir a mercadoria, faz "renascer" o dinheiro não é o mesmo que o "arrisca" na produção. Aqui surge a tendência ou a "tentação" insuperável de não "solidificá-lo", de tentar multiplicá-lo sem deixá-lo sair da sua "abstração". Mas não existe nenhuma "mina" onde o dinheiro pode estar protegido sem se anular. Assim como não há nenhum "mercado" que garanta o seu retorno para "casa", mais forte e mais preparado para novas aventuras.

O dinheiro é sinal de crise. Também para o indivíduo. As entidades-mercadorias das quais ele é o equivalente universal são todas perecíveis. Ele só parece ser indestrutível. E, portanto, o desejo para ele não pode ser aplacado na posse. O dinheiro produz um desejo ilimitado, que nenhum dos produtos em que se encarna jamais poderá satisfazer. O pastor podia "ficar-contente" com o seu "pecus". Quem possui o dinheiro nunca poderá ficar e está obrigado a "jogá-lo" na circulação, a "perdê-lo" para buscar reencontrá-lo. E quem, graças ao infinito poder do dinheiro, não adquire a não ser a "miséria" dessas efêmeras mercadorias, também não poderá.

Porém, é necessário falar da essência metafísica do dinheiro, sem nenhum moralismo e distante de todo desprezo reacionário. É verdade que o processo de circulação que o dinheiro gera produz a perene insatisfação do consumo, mas é verdade também que nisso se representa a minha autonomia, a "liberdade" da pessoa com relação a toda medida ou lei universal de felicidade ou de bem-estar. Apenas eu posso saber quanto ele me custou e apenas eu posso saber qual grau de bem-estar me dão a aquisição e o consumo que ele permite. Não existem medidas objetivas de felicidade, nem existe a possibilidade de determinar, em absoluto, onde circula a discriminação entre necessidades necessárias e supérfluas.

Certamente, nada de essencial pode se expressar no desejo individual e, por isso, nada de essencial pode ser buscado por meio do poder universal do dinheiro. Mas, longe de levar à conclusão vetero-moralista "o dinheiro não conta", "não pode nos fazer felizes" etc., isso não representa nada mais do que aquela "lei individual", que Georg Simmel ilustrou no seu magnum opus "A filosofia do dinheiro", publicado em 1900, pedra angular da contemporaneidade: nada pode nos impor a "medida" do nosso ser feliz. O dinheiro é universal justamente ao expressar a impossibilidade de uma tal "medida" e a não essencialidade do nosso desejo, "libertando-nos" assim da "soberba" de erigi-lo de alguma forma como norma ou modelo. No espelho do dinheiro, revela-se apenas a infinitude do desejo. E este apenas nos é comum. Mas como o dinheiro, para ser, deve "morrer" na individualidade determinada das mercadorias, assim a infinitude do desejo, para viver, deve se encarnar na não essencialidade do meu ser feliz ou infeliz.

Essa onipotência paradoxal do dinheiro nunca resolvível em curso, sempre incompleta, pode ser entendida como "mundanização" do deus judaico-cristão? Ainda Simmel considerava isso como certo. Devemos hoje nos tornar todos mais cautos ao aplicar, em todo o lugar, como passe-partout, a ideia de secularização. A onipotência infinita da imagem do dinheiro é a de um poder comprar tudo. Mas isso é justamente um actu irrealizável. E tudo o que é comprável é não essencial.

A onipotência divina, pelo contrário, se "esvazia" de si para poder amar tudo aqui-e-agora. O amar também nunca chega à meta, nunca está "contente", mas não porque passe de consumo para consumo. Ao invés: porque o seu "amado" está além de toda lógica da posse e do consumo. A sua troca é puramente dom, enquanto o dinheiro "funciona" apenas naquela relação em que nada de "gratuito" intervém. "Isso é algo gratuito", assim fala o dinheiro – e entende: "isso é algo insensato, ilógico, inútil". Porém, o seu poder deve, no fim, reconhecer essa "lei individual" que afirma a não essencialidade do desejo e do consumo que ela permite. E assim, paradoxal e negativamente, o próprio dinheiro acena àquele "inútil" da gratuidade do dom, onde se protege o inconsumível e indestrutível, que continuamos, apesar de tudo, a advertir em nós, "no coração" mesmo da nossa perene busca e do seu contínuo falir.

Para ler mais:



quinta-feira, 7 de maio de 2009

Reyes Mate

Guantánamo, as pegadas da tortura


Artigo de Reyes Mate, professor do Instituto de Filosofia do Conselho Superior de Pesquisas Científicas (CSIC), na Espanha, publicado no jornal El País, 02-05-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS




O candidato à presidência dos EUA Barack Obama se fixou em Guantánamo para viabilizar a mudança que prometia, por isso, no dia seguinte à sua posse, anunciou o fechamento desse estranho lugar, declarando como ilegal a tortura que ali se praticava. Era um gesto ético que devia devolver a confiança de seus concidadãos nos valores humanitários, sobre os quais o país havia se construído e que era preciso manter "também nos tempos difíceis".

Mas a ética tem suas exigências. Há uma ética complacente que interpreta o crime ou a tortura como atentados à moralidade da lei, de sorte que bastaria ajustar a lei aos direitos humanos para que tudo ficasse sanado. E há outra ética que exige, a quem a invoque, que nos encarreguemos dos destroços que as torturas legais causam na sociedade para poder "olhar para frente e não para trás", como quer o seu chefe de gabinete, Rahm Enmanuel. A ética política própria dos tempos que correm é desse tipo. A autoridade da lei, por ser importante, é menos do que os danos na humanidade que um crime ou a tortura causam na sociedade, isto é, no verdugo, na vítima e no resto dos cidadãos.

A sociedade, é verdade, não reage da mesma maneira diante do crime político do que diante da tortura, porque vê no crime uma ameaça mais propriamente e, na tortura, um instrumento do Estado, às vezes exagerado, destinado a proteger vidas e bens. Menosprezar a tortura é, no entanto, um grave erro, porque sua prática mina as bases da convivência.

O crime mata, com efeito, fisicamente, enquanto que a tortura busca a desumanização do torturado. Jean Améry, um sobrevivente de Auschwitz que nunca pôde se desfazer da ignomínia dos castigos que padeceu, deixou escrito um testemunho esclarecedor dessa descida aos infernos. "Com o primeiro golpe", diz, "quebrava-se a confiança no mundo do qual você espera que cuide do seu ser físico e metafísico. É como uma violação sexual. A violação corporal é uma forma consumada de aniquilação total da existência". Aniquilação da existência humana porque a dor obriga a renunciar às convicções mais profundas para se concentrar no corpo. Só se é pele, carne e ossos. A vergonha por ter sacrificado sua vida espiritual lhe acompanhará por toda a vida. A última etapa desse processo de desumanização consiste em reconhecer a superioridade do torturador. "Como é possível receber golpes?", diz Robert Antelme, outro sobrevivente, "e pretender ter razão?". Quem é capaz de reduzir um homem a mero corpo tem que ser "um deus, ou ao menos um semideus", precisa Améry.

O que sim é inegável é que, mediante a tortura, o ser humano alcança a êxtase do poder, isto é, expulsar o outro da condição humana. De Guantánamo, nos chegou uma sóbria confissão que coincide com as notícias que nos chegaram dos campos nazistas: "Agora sou meio animal e, dentro de um mês, serei um animal por inteiro".

A desumanização alcança também o torturador. Na escola de Himmler preparavam-se os filhotes nazistas para suas futuras tarefas ensinando-os "a suportar o sofrimento alheio". Recebiam o certificado de aptidão quando conseguiam extirpar de si mesmos todo sentimento de piedade. E não se viola a dignidade do outro em vão. É preciso pagar com o preço da própria indignidade. O funcionário da prisão de Guantánamo poderá voltar para casa, uma vez cumprido o horário, e ouvir música, mas continuará com a infâmia que ganhou. A lei da obediência devida, que Obama invoca, poderá libertar-lhe da condenação, mas não do destroço humanitário.

Também não fica intocada a humanidade do espectador. O cidadão de uma sociedade com Guantánamo de fundo só pode viver sua vida se considera aquele lugar como um espaço marginal em que se suspenderam excepcionalmente os direitos humanos. Um lugar assim só é suportável de boa consciência se nos é apresentado como um parêntese, como uma excepcionalidade.

Guantánamo é, por isso, um lugar marginal, excepcional, extramuros da polis norte-americana. Não uma prisão, onde sim há direitos, mas um "espaço sem lei", em que os retidos não são acusados de nada preciso, nem há tribunais aos quais recorrer, nem juízo à vista, nem sequer são declarados prisioneiros de guerra, mas inscritos como "combatentes ilegais". São privados do direito, mas não são deixados em paz, porém ficam sim submetidos à sorte do carcereiro, cuja vontade é a única lei.

Guantánamo era muito parecido a um campo de concentração, com um agravante. Uma das poucas normas que os nazistas observavam com regularidade prussiana com os deportados consistia em desnaturalizá-los completamente, isto é, despojá-los dos poucos direitos civis que as leis de Nürenberg de 1935 lhes havia deixado. Por isso, uma ordem do capitão da SS, Dannecker, ordenava que os judeus "deveriam ser privados de sua cidadania bem antes ou no mesmo dia de sua deportação". Chegavam ao Lager desprovidos de sua categoria de sujeitos de direitos, para que o uso de toda forma de violência fosse legal. Pelo que sabemos, aos "combatentes ilegais" de Guantánamo, economizava-se essa formalidade, mesmo que as consequências eram parecidas enquanto à privação de direitos.

O problemático de Guantánamo é que, mesmo que física e legalmente seja um lugar marginal ou excepcional, moralmente está no centro. Essa cidade sem lei não foi inventada pelos carcereiros, mas foi decidida pelos Bush, Cheney, Rice, Rumsfeld, isto é, pelos estrategistas de uma política que sacudiu o mundo.

Essas são as sequelas sociais da tortura, um processo de desumanização que afeta o torturado, o torturador, o dirigente e o cidadão que viveu sua vida nesse tempo como se Guantánamo não existisse.

Se Obama se propõe deixar para trás o legado de George W. Bush e "colocar os EUA no bom lugar da história", não será suficiente fechar Guantánamo, mudar a lei sobre torturas e aceitar que o fiscal geral persiga os advogados dos informes que enquadraram o círculo fazendo com que os atos de lesa humanidade adquirissem o papel de práticas legais. No fim das contas, os advogados fazem relatórios, dão opiniões, e isso não parece ser delito, por mais disparatados que sejam. A responsabilidade alcança, por isso, os dirigentes políticos, e, além das responsabilidades políticas, o problema é a saúde moral de uma sociedade que viveu de maneira feliz, tendo um campo de concentração ao lado.

Refletindo sobre o significado de Guantánamo, o politólogo italiano Giorgio Agamben chegou a dizer que o campo é o símbolo da política moderna. É, claro, um exagero, mas a indelicadeza aponta para uma direção que deveria dar o que pensar. Multiplicam-se, por um lado, os "espaços sem lei" aplicados preferencialmente a emigrantes sem papéis, enquanto que, por outro, "três quartas partes do mundo recorreram à tortura nos últimos anos", segundo a Anistia Internacional. Será que vamos rumo a uma democracia com muitas leis e pouco direito?

Elie Wiesel deixou dito que "os santos são os que morrem antes do final". A resistência do ser humano com relação à tortura tem um limite. Enquanto não se superar esse ponto, a dignidade é possível, mas, uma vez alcançado, não há santidade nem heroísmo que tenham valor. O torturador busca esse limite porque nele está o segredo que espera arrancar do torturado. Dick Cheney o justifica dizendo que, graças a essas confissões, garantiu-se a segurança dos que agora o criticam. Em "O processo", Kafka fala de um ser vivo tão obsessivo com a segurança que, no final, os túneis que deveriam protegê-lo converteram-se em sua própria armadilha.

Para ler mais:



quarta-feira, 6 de maio de 2009

Adela Cortina

Economia sem ética


"No documento da última cúpula do G-20, os líderes mundiais fazem uma afirmação assombrosa: 'Reconhecemos a dimensão humana da crise'. Mas existiu alguma vez uma atividade econômica sem dimensão humana?". Essa é a questão levantada em artigo para o jornal El País, 05/05/2009, pela professora de Ética e Filosofia Política da Universidade de Valencia, na Espanha, e diretora da Fundação Étnor, Adela Cortina. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



A catastrófica crise econômica que vivemos, tão dolorosa para milhões de pessoas com nome e sobrenome, estourou quando o discurso da Responsabilidade Social Empresarial (SER) está frutífero em memórias anuais, índices de empresas responsáveis, pós-graduações e publicações. A pergunta é inevitável: era cosmética ou ética? Maquiagem para ter boa aparência ou vitaminas que fortalecem por dentro?

Há de tudo, é claro, e existem causas de gêneros muitos diferentes. Mas a crise é também uma prova de que boa parte das organizações do mundo econômico e político não assumiram esse discurso, quando, na realidade, ele pertence à própria entranha desses mundos: não vem de fora, mas é seu.

Uma empresa inteligente – diz o discurso – não opta por uma ética do desinteresse, coisa impossível para uma empresa moderna, mas sim do interesse comum. Não abandona o mundo dos incentivos, da busca do benefício e a viabilidade, mas tenta conseguir seu benefício por meio do benefício compartilhado. Por isso, tenta se converter nessa "empresa cidadã", que as pessoas veem como coisa sua, porque gera riqueza material, trabalho e valores intangíveis no seu entorno. Aposta pela transparência que vai gerando confiança e forjando a reputação, valores sem os quais é difícil manter a viabilidade. Por isso, a empresa prudente tenta conhecer as aspirações de seus grupos de interesse e responder a elas. Responsabilidade, transparência e confiança são, então, imprescindíveis para alcançar o bem da empresa a médio e longo prazo. Sempre que exista um marco institucional capaz de assegurar razoavelmente que as regras do jogo sejam cumpridas.

Em muitos casos, não funcionou o marco institucional, encarregado de controlar as atuações financeiras, de colocar de sobreaviso os investidores e os consumidores. Os marcos falharam, e por isso o controle é necessário. Mas apesar da convicção leninista de que "a confiança é boa, mas o controle é melhor", os dois são imprescindíveis. Sem controle, os bancos jogam no risco excessivo, no subprime em um dia e em não emprestar no dia seguinte, os governos avalizam requalificações, os consumidores se endividam além do razoável e chega um tempo em que o trem da atividade econômica dá uma freada brusca. Que parece que, pelo menos em parte, é o que aconteceu conosco. Mas, sem confiança, as transações decaem, o investimento diminui, os empréstimos escasseiam, as empresas fecham, o desemprego aumenta, e o sofrimento cresce.

O discurso da RSE, como José Ángel Moreno disse, está, na realidade, desvinculado dos sistemas de governo corporativo? Ele não se incorporou ao núcleo duro de uma grande parte das empresas, quando na realidade lhes é consubstancial?

Talvez o que ocorre é que existam dois tipos de incentivos, os bons e os maus, os que pertencem ao jogo limpo da empresa e os espúrios. Os últimos podem ser úteis em alguma ocasião, mas não podem ser os principais, como o filósofo MacIntyre mostrava com o exemplo de uma criança, cujos pais querem que ela aprenda a jogar xadrez e, como ela não gosta, prometem-lhe doces a cada vez que jogar. O incentivo das balas pode servir para que ela conheça o jogo e se interesse por ele, mas, se com o tempo, ela seguir sem gostar por si mesma, trapaceará quando puder.

Se o diretor de um banco, ao assessorar os clientes, está pensando que o seu salário ou a sua ascensão dependem de que eles invistam em determinados fundos, tentará persuadir-lhes de que é um risco admissível com o qual ganharão consideravelmente. As demais opções são "conservadoras", adjetivo que já tem um sentido pejorativo. Claro que, diferentemente do xadrez, o diretor também conta com a ambição do cliente. Mas nem aquele que adverte dos riscos previsíveis, nem o que concede subprimes são um bom profissional, porque não é esse o sentido de sua profissão e por isso geram desconfiança.

Se globalizarmos a partida de xadrez, ocorrerá que, além das turbulências das quais os economistas falam, houve organizações e pessoas concretas que não creram no valor de sua profissão, que arriscaram aquilo que era seu e aquilo que não era, convencidos de que iriam se dar bem. O pior de tudo é que nesse jogo, algumas vezes, os protagonistas pagam, mas em todas as ocasiões quem pagam são os pior situados. Os que ficaram sem trabalho, os que não puderam pagar a hipoteca, os que tiveram que fechar a sua pequena empresa, os imigrantes que voltaram para os seus países, e acabaram as remessas, principal fonte de ingressos para esses países.

No documento da última cúpula do G-20, os líderes mundiais fazem uma afirmação assombrosa: "Reconhecemos a dimensão humana da crise". Mas existiu alguma vez uma atividade econômica sem dimensão humana? Não é verdade que a economia deve ajudar a se construir uma boa sociedade e, quando não consegue, fracassa rotundamente, tendo em conta que essa boa sociedade hoje deve ser mundial?

John Rawls

Um Deus injusto

O jornal italiano Il Sole-24 Ore, 03-04-2009, publicou artigo de John Rawls, o mais conhecido e celebrado filósofo político norte-americano, falecido aos 81 anos em 2002, em que o autor questiona o porquê de suas crenças religiosas terem mudado. A tradução é de Benno Dischinger.
Fonte: UNISINOS



Perguntei-me com freqüência por que minhas crenças religiosas tenham mudado e isso tenha ocorrido de modo particular durante a guerra. Comecei como fiel da Igreja episcopal, para abandoná-la completamente a partir de junho de 1945. Três episódios se destacam na minha memória: Kilei Ridge; a morte de Deacon; ter sido noticiado sobre o Holocausto e refletir sobre isso. O primeiro episódio ocorreu pela metade de dezembro de 1944. Terminara a batalha que a companhia F do 128º regimento de infantaria da XXXII divisão conduziu para conquistar o cume acima da cidade de Limon, na ilha de Leyte; a companhia limitava-se a manter a posição. Certo dia chegou um pastor luterano. Durante a função religiosa pronunciou uma breve homilia na qual afirmou que Deus apontava os nossos projéteis contra os japoneses e ao mesmo tempo nos protegia deles. Não sei por que, mas esta afirmação me irritou. Critiquei o pastor (que era um tenente) porque dizia o que eu considerava que ele soubesse perfeitamente – era um luterano – que eram mentiras sobre a divina providência. Que razão podia tê-lo impulsionado senão levar conforto às tropas? No entanto, a doutrina cristã não devia ser utilizada para este fim, embora eu soubesse perfeitamente que o era.

O segundo episódio – a morte de Deacon – foi em maio de 1945, sobre a pista de Villa Verde na ilha de Luzon. Deacon era uma pessoa esplêndida; tornamo-nos amigos e compartilhamos uma barraca no regimento. Um dia, o primeiro sargento veio até nós em busca de dois voluntários, um que devia ir com o coronel a um lugar onde este pudesse observar as posições japonesas, e o outro que devia doar sangue do qual tinha extrema necessidade um soldado ferido do hospital de campo, ali naquele lugar. Ambos consentimos, mas o que cada um de nós haveria de fazer dependia de quem tivesse o grupo sanguíneo adequado. Já que o meu o era e o de Deacon não, ele foi com o coronel. Sem dúvida os japoneses devem tê-los localizado, uma vez que logo começaram a chegar em sua direção 150 tiros de morteiro. Deacon e o coronel saltaram dentro de uma trincheira, mas, quando uma granada explodiu lá dentro, morreram ambos na mesma hora. Fui totalmente incapaz de encontrar consolo, nem conseguia afastar de minha mente o episódio. Não sei por que este episódio tenha me golpeado tanto, bem além de meu afeto por Deacon, já que a morte era um evento comum. Mas, penso que me tenha golpeado pelas formas das quais farei menção daqui a pouco.

O terceiro episódio é, na verdade, algo mais que um episódio, uma vez que perdurou por um longo período de tempo. Em minhas recordações, teve início em abril, em Asigan, onde o regimento estava fazendo uma pausa da linha de frente e recebendo substituições. Fomos aos espetáculos cinematográficos seriais para o exército, onde também foi dada notícia dos comunicados do serviço informativo do exército. Creio ter sido ali que ouvi pela primeira vez sobre o Holocausto, já que foram tornados públicos os primeiríssmos relatórios das tropas americanas que se defrontaram com os campos de concentração. Naturalmente muitas coisas já eram sabidas bastante tempo antes, mas não eram conhecidas aos soldados no campo de batalha.

Estes episódios, especialmente o terceiro, logo que chegaram ao domínio público, me golpearam do mesmo modo, sob forma de uma pergunta sobre a possibilidade da prece. Como podia orar e pedir a Deus que me ajude, ou ajude minha família, ou meu país, ou qualquer outra coisa amada e no centro de minhas preocupações, quando ele não havia salvo milhões de judeus de Hitler? Quando Lincoln interpreta a Guerra Civil americana como punição divina pelo pecado da escravidão, uma punição igualmente merecida pelo Norte e pelo Sul, se vê que Deus age justamente. Mas, o Holocausto não pode ser interpretado nesta ótica, e toda tentativa sobre a qual tenho lido de interpretá-lo desta maneira é horrível e malvada. Para interpretar a história como expressão da vontade de Deus, tal querer divino não pode não adequar-se com as mais fundamentais idéias de justiça, como são por nós conhecidas. Para que outro fim podem ser as mais fundamentais idéias de justiça? Cheguei tão rapidamente a refutar isso, como considerei igualmente horrível e malvada a idéia da supremacia do querer divino. Os meses e anos que se seguiram conduziram-me a uma crescente refutação de muitas das principais teorias cristãs e o cristianismo se tornou para mim cada vez mais estranho. Minhas dificuldades eram sempre de cunho moral, desde o momento em que meu fideismo permanecia íntegro diante de todas as preocupações sobre a existência de Deus. As assim ditas provas da existência de Deus contidas em Santo Tomás e em outros autores não provavam, em todo o caso, nada que tivesse um significado religioso. Parecia-me claro. Todavia, as idéias de justo e de justiça, expressas nas teorias cristãs, eram uma questão diversa.

Cheguei a considerar muitas delas como erradas e, em alguns casos, também repugnantes. Ente estas estavam as doutrinas do pecado original, do paraíso e do inferno, da salvação por meio da verdadeira fé e com base na aceitação da autoridade sacerdotal. A menos que alguém não fizesse uma exceção para si mesmo e assumisse a própria salvação, cheguei a ter a sensação que a teoria da predestinação fosse tremenda, uma vez que se refletisse bem além e se compreendesse o que significava. A dupla predestinação, no modo como foi expressa de modo rigoroso por Santo Agostinho e por Calvino, parecia particularmente tremenda, embora eu tivesse que admitir que também estava presente em Santo Tomás e Lutero e, sem dúvida, fosse apenas uma conseqüência da própria predestinação. Tornou-se para mim impossível levar a sério todas estas teorias, mas, não no sentido de que as provas a seu favor fossem débeis ou incertas. Elas antes pintam Deus como um monstro movido somente pelo próprio poder e pela própria glória. Como se marionetes miseráveis e deformadas, como eram descritos os seres humanos, pudessem glorificar qualquer coisa! Também cheguei a pensar que poucas pessoas aceitassem essas teorias ou sequer as entendessem. Para estes a religião é puramente convencional e lhes oferece conforto e consolação nos momentos difíceis.

Nos anos imediatamente subseqüentes à guerra interessei-me muito pela história da Inquisição e pelo modo pelo qual foi desenvolvida. Li numerosos livros sobre o tema, inclusive partes da história da Inquisição na Idade Média, de Henry Lea, a recensão de Lorde Acton a esta obra e as teses de Acton sobre a corrupção do poder dos sacerdotes e também do poder político. Acabei tendo a sensação de que a grande maldição do cristianismo era a de perseguir os discordantes e os hereges desde a época de Irineu e Tertuliano. Isto me pareceu ser algo novo: a religião grega e romana era uma religião civil e era finalizada a instilar a lealdade à polis ou ao imperador, especialmente em épocas de guerra e de crise. Gregos e romanos insistiam neste aspecto, mas, além disto, a sociedade civil podia ser livre em ampla medida e muitas religiões diversas floresceram na polis e no império romano. A história da Igreja inclui, ao invés, uma prestação de contas dos seus duradouros elos históricos com o Estado e de seu uso do poder político para estabelecer a própria hegemonia e oprimir as outras religiões.

Sendo uma religião da salvação eterna que requer verdadeira fé, a Igreja se viu na posse da justificação para a repressão da heresia. Assim, cheguei a considerar a negação da liberdade religiosa e da liberdade de consciência como um mal enorme, o que torna as pretensões de infalibilidade dos papas impossíveis de serem aceitas por mim. É verdade, a Igreja afirma a infalibilidade somente em questões de fé e de moral; a doutrina não prevê que o papa seja infalível enquanto homem, mas que Deus fará de modo que o homem que é papa não fale de maneira mentirosa? No entanto, se a liberdade de religião e a liberdade de consciência não são questões de fé e de moral, que outra coisa são? Estas liberdades se tornaram pontos fixos das minhas opiniões morais e políticas. No final, também se tornaram elementos políticos fundamentais de minha visão da democracia constitucional, institucionalmente realizada pela separação entre Estado e Igreja.

Para ler mais:



sexta-feira, 1 de maio de 2009

Karl Marx

INTRODUÇÃO À CRÍTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL


Na Alemanha, a crítica da religião chegou, no essencial, ao fim. A crítica da religião é a premissa de toda crítica. A existência profana do erro ficou comprometida, uma vez refutada sua celestial oratio pro aris et focis [oração pelo lar e pelo ócio]. O homem que só encontrou o reflexo de si mesmo na realidade fantástica do céu, onde buscava um super-homem, já não se sentirá inclinado a encontrar somente a aparência de si próprio, o não-homem, já que aquilo que busca e deve necessariamente buscar é a sua verdadeira realidade.

O homem faz a religião, não é a religião que faz o homem. A religião é, na realidade, a consciência e o sentimento próprio do homem que, ou na se encontrou ainda, ou já se perdeu de novo. Mas o homem não é um ser abstrato, exterior ao mundo real. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Esse Estado, essa sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque constituem, eles próprios, um mundo invertido

A religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica popular, sua dignidade espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua razão geral de consolo e de justificação. É a realização fantástica da essência humana por que a essência humana carece de realidade concreta. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo que tem na religião seu aroma espiritual.

A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espirito. É o ópio do povo. A verdadeira felicidade do povo implica que a religião seja suprimida, enquanto felicidade ilusória do povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões. Por conseguinte, a crítica da religião é o germe da crítica do vale de lágrimas que a religião envolve numa auréola de santidade.

A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas para que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva. A crítica da religião desengana o homem para que este pense, aja e organize sua realidade como um homem desenganado que recobrou a razão a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol. A religião é apenas um sol fictício que se desloca em torno do homem enquanto este não se move em torno de si mesmo. Assim, superada a crença no que está além da verdade, a missão da história consiste em averiguar a verdade daquilo que nos circunda. E, como primeiro objetivo, uma vez que se desmascarou a forma de santidade da autoalienação humana, a missão da filosofia, que está à serviço da história, consiste no desmascaramento da autoalienação em suas formas não santificadas. Com isto, a crítica do céu se converte na crítica da terra, a crítica da religião na crítica do direito, a crítica da teologia na crítica da política.

A exposição seguinte - uma abordagem a este trabalho - não se prende diretamente ao original, senão a uma cópia deste, à filosofia alemã do direito e do Estado, pelo simples fato de se ater à Alemanha. Se nos quiséssemos ater ao status quo alemão, ainda que da única maneira adequada, isto é, de modo negativo, o resultado continuaria a ser anacrônico. A mesma negação de nosso presente político já se acha coberta de pó no sótão de trastes velhos dos povos modernos. Ainda que nos recusemos a recolher estes materiais empoeirados, continuaremos conservando os materiais sem poeira. Ainda que neguemos as situações existentes na Alemanha de 1843, apenas nos situaremos, segundo a cronologia francesa, em 1789, e ainda menos no ponto focal dos dias atuais.

E o caso da história alemã gabar-se de um movimento ao qual nenhum povo do firmamento histórico se adiantou a ela, nem a seguirá. Com efeito, os alemães compartem as restaurações dos povos modernos, sem haver participado de suas revoluções. Passamos por uma restauração, em primeiro lugar, porque outros povos se atreveram a fazer uma revolução e, em segundo lugar, porque outros povos sofreram uma contra-revolução; a primeira vez porque nossos senhores tiveram medo e a segunda porque não o tiveram. Tendo à frente nossos pastores, só uma vez nos encontramos em companhia da liberdade: no dia de seu enterro.

Uma escola que legitima a infâmia de hoje com a infâmia de ontem; uma escola que declara ato de rebeldia todo grito do servo contra o knut, da mesma maneira que este é um knut pesado de anos, tradicional, histórico; uma escola a que a história só mostre seu a posteriori, como o Deus de Israel a seu servo Moisés, numa palavra, a Escola histórica do Direito teria sido inventada pela história alemã se já não fosse por si uma invenção desta. É Shylock, mas o criado Shylock, que por cada libra de carne cortada do coração do povo, jura e perjura por sua escritura, por seus títulos históricos, por seus títulos cristão-germânicos.

Em troca, certos entusiastas bondosos, germanistas pelo sangue e liberais pela reflexão, vão buscar além da história, nas selvas teutônicas virgens, a história da nossa liberdade. Mas, se só se encontra na selva, em que se distingue a história da nossa liberdade da história da liberdade do javali? Além disso, é fato sabido que quanto mais alguém se interna no bosque, tanto mais ressoa sua voz fora deste. Por conseguinte, deixemos em paz a selva virgem teutônica. Guerra aos estados de coisas alemães! É certo que se encontram abaixo do nível da história, abaixo de toda crítica, mas continuam a ser, apesar disto, objeto de crítica, assim como o criminoso, por não se achar abaixo do nível da humanidade, não deixa de ser objeto do verdugo.

Na luta contra eles, a crítica não é uma paixão do cérebro, mas o cérebro da paixão. Não é o bisturi anatômico, mas uma arma. Seu objeto é o adversário, que não procura refutar, mas destruir. O espírito daquelas situações já foi refutado. Não são dignas de ser lembradas; devem ser desprezadas como existências proscritas. Não há necessidade da crítica esclarecer este objeto frente a si mesma, pois dele já não se ocupa. Esta crítica não se conduz como um fim em si, mas, simplesmente, como um meio. Seu sentimento essencial é a indignação; sua tarefa essencial, a denúncia.

Trata-se de descrever a surda pressão mútua de todas as esferas sociais, umas sobre as outras, a alteração geral e imprudente, a limitação que tanto se reconhece quanto se desconhece, enquadrada dentro do modelo de um sistema de governo, que, vivendo da conservação de tudo aquilo que é lamentável, não é outra coisa senão o que há de lamentável no governo. Espetáculo lamentável! A divisão da sociedade até o infinito nas raças mais diversas, que se enfrentam umas às outras com pequenas antipatias, más intenções e brutal mediocridade e que, precisamente em razão de sua mútua posição cautelosa são tratadas por seus senhores, Sem exceção e com algumas diferenças, como existências sujeitas a suas concessões. Até isto, até o fato de se verem dominadas, governadas e possuídas tem que ser reconhecido e confessado por elas como uma concessão do céu! E, por outro lado, aqueles senhores, cuja grandeza se encontra em relação inversa ao numero delas!

A crítica que se ocupa deste conteúdo é a crítica da competição. Durante a competição não interessa saber se o adversário é nobre, da mesma categoria, se é um adversário interessante; trata-se de vencê-lo. Trata-se de não conceder aos alemães nem um só instante de ilusão e de resignação. Há que tornar a opressão real ainda mais opressiva, acrescentando àquela a consciência da opressão; há que tornar a infâmia ainda mais infamante, ao proclamá-la. Há que pintar a todas e a cada uma das esferas da sociedade alemã como a partie honteuse [partes pudendas] da sociedade alemã; há que obrigar estas relações escravizadas a dançar, cantando-lhes sua própria melodia. Há que ensinar o povo a ter pavor de si mesmo, para infundir-lhe ânimo. Com isto, se satisfaz uma indisfarçável necessidade do povo alemão; as necessidades dos povos são, em sua própria pessoa, os últimos fundamentos de sua satisfação.

Esta luta contra o status quo alemão tampouco carece de interesse para os povos modernos, pois o status quo alemão é a consagração franca e sincera do antigo regime, e o antigo regime, a debilidade oculta do Estado moderno. A luta contra o presente político alemão é a luta contra o passado dos povos modernos; as reminiscências deste passado continuam a pesar ainda sobre eles e a oprimi-los. É instrutivo para estes povos ver como o antigo regime, que neles conheceu sua tragédia, representa agora sua comédia; é instrutivo para estes povos vê-lo como o espectro alemão. Sua história foi trágica enquanto encarnou o poder preexistente do mundo e a liberdade como uma ocorrência pessoal; numa palavra, enquanto acreditou e devia acreditar na sua legitimidade.

Enquanto o antigo regime e a ordem existente no mundo lutavam contra um mundo em estado de gestação, traziam de sua parte um erro histórico-universal e não de caráter pessoal. Portanto, sua catástrofe foi trágica. Pelo contrário, o atual regime alemão, que é um anacronismo, uma contradição flagrante com todos os axiomas geralmente reconhecidos, a nulidade do antigo regime posta em evidência frente ao mundo inteiro, só imagina crer em si próprio e exige do mundo a mesma fé ilusória. Se acreditasse em seu próprio ser, acaso iria escondê-lo sob a aparência de um ser estranho e procurar sua salvação na hipocrisia e no sofisma? Não, o moderno regime antigo já não é mais do que o comediante de uma ordem social cujos heróis reais já morreram. A história é conscienciosa e passa por muitas fases antes de enterrar as velhas formas. A comédia é a última fase de uma forma histórico universal. Os deuses da Grécia, já tragicamente feridos no Prometeu acorrentado de Ésquilo, morreram ainda outra vez, comicamente, nos colóquios de Luciano. Por que esta trajetória histórica? Para que a humanidade possa separar-se alegremente de seu passado. Este alegre destino histórico é que nós reivindicamos para as potências políticas da Alemanha.

Não obstante, tão logo a moderna realidade político-social se veja submetida à crítica, isto é, tão logo a crítica ascende ao plano dos problemas verdadeiramente humanos é que se encontra fora do status quo alemão, pois de outro modo abordaria seu objeto por baixo de si mesma. Um exemplo: a relação entre a indústria, o mundo da riqueza em geral e o mundo político é um problema fundamental da época moderna. De que forma este problema começa preocupar os alemães? Sob a forma de normas protetoras, de sistema proibitivo, da economia nacional. O germanismo passou dos homens a matéria e, um belo dia, nossos donos do algodão e nossos heróis do ferro viram-se convertidos em patriotas. Assim, pois, na Alemanha começa-se pelo reconhecimento da soberania do monopólio rumo ao interior, conferindo-lhe a soberania rumo ao exterior. Isto significa que na Alemanha se começa por onde terminam a França e a Inglaterra. A velha situação insustentável contra a qual se levantam teoricamente estes países e que só são suportáveis como são suportados os grilhões, é saudada na Alemanha como a primeira luz do amanhecer de um belo futuro, que apenas se atreve a passar de uma ladina teoria à mais implacável prática. Enquanto na França e na Inglaterra o problema é colocado em termos de economia política ou império da sociedade sobre a riqueza, na Alemanha os termos são outros: economia nacional ou império da propriedade privada sobre a nacionalidade. Portanto, na França e na Inglaterra trata-se de abolir o monopólio, que chegou a suas últimas conseqüências; na Alemanha, trata-se de levar o monopólio a suas últimas conseqüências.

No primeiro caso, trata-se da solução; no segundo, simplesmente da contradição. Exemplo suficiente da forma alemã que ali adotam os problemas modernos, de como nossa história, tal qual o recruta imbecil, não teve até agora outra missão senão a de praticar a repetir exercícios já feitos. Por conseguinte, se todo o desenvolvimento da Alemanha não saísse dos marcos do desenvolvimento político alemão, um alemão apenas poderia, muito bem, participar dos problemas do presente, do mesmo modo como um russo deles pode participar.

Mas, se um indivíduo livre não se acha vinculado às cadeias da nação, ainda menos livre se vê a nação inteira diante da libertação de um indivíduo. Os citas não investiram um só passo contra a cultura grega porque a Grécia contasse um deles entre seus filósofos. Por sorte, nós, alemães, não somos citas. Assim como os povos antigos viveram sua pré-história na imaginação, na mitologia, nós, alemães, vivemos nossa pós-história no pensamento, na filosofia. Somos contemporâneos filosóficos do presente, sem ser seus contemporâneos históricos. A filosofia alemã é o prolongamento ideal da história da Alemanha. Portanto, se ao invés das oeuvres incompletes [Obras incompletas] de nossa história real, criticamos as oeuvres posthumes [Obras póstumas] de nossa história ideal, a filosofia, nossa crítica figura no centro dos problemas dos quais diz o presente: That is the question [Eis a questão].

O que para os povos progressistas é a ruptura prático com as situações do Estado moderno, na Alemanha, onde estas situações nem sequer existem, isto significa, antes de mais nada, a ruptura crítica com o reflexo filosófico destas situações. A filosofia alemã do Direito e do Estado é a única história alemã que se acha a par com o presente oficial moderno. Por isto, o povo alemão não tem outro remédio senão incluir também esta sua história feita de sonhos entre suas situações existentes e submeter à crítica não só estas mesmas situações mas, também e ao mesmo tempo, seu prolongamento abstrato.

O futuro deste povo não pode limitar-se nem à negação de suas condições estatais e jurídicas reais, nem à execução indireta das condições ideais de seu Estado e de seu direito, já que a negação direta de suas condições reais já está envolvida em suas condições ideais e a execução indireta de suas condições ideais quase a fez sobreviver ao contemplá-las nos povos vizinhos. Assim, ao reclamar a negação da filosofia, o partido político prático da Alemanha tem toda razão. Seu erro não reside na exigência, mas em deter-se na simples exigência, que não coloca nem pode colocar seriamente em prática. Acredita colocar em prática aquela negação pelo fato de voltar as costas à filosofia e de resmungar, olhando para o lado oposto, umas tantas frases banais e mal-humoradas. A limitação de seu horizonte visual não inclui também a filosofia da realidade alemã no Estreito de Bering, nem chega a imaginá-la quimericamente, inclusive, entre a prática alemã e as teorias que a servem. Exige-se uma conexão com os germes reais da vida, mas esquece-se que o germe real da vida do povo alemão só brotou, até agora, de sua caixa craniana. Numa palavra, não podereis superar a filosofia sem realizá-la.

A mesma injustiça, só que com fatores inversos, cometeu o partido político teórico, que partia da filosofia. Este partido só via na luta atual a luta crítica da filosofia com o mundo alemão, sem imaginar sequer que a filosofia anterior pertencia ela mesma a este mundo e era um complemento, ainda que apenas seu complemento ideal. Assumia uma atitude crítica frente à parte contrária, mas não adotava um comportamento crítico para consigo mesmo, já que partia das premissas da filosofia e, ou se detinha em seus resultados adquiridos ou apresentava como postulados e resultados diretos da filosofia, os postulados e resultados de outra origem, embora estes supondo que sejam legítimos - só podem manter-se de pé, pelo contrário, mediante a negação da filosofia anterior, da filosofia como tal.

Propomo-nos a tratar mais a fundo deste partido. Seu erro fundamental pode resumir-se assim: acreditava poder realizar a filosofia sem superá-la. A crítica da filosofia alemã do direito e do Estado, que encontra em Hegel sua expressão máxima, a mais conseqüente e a mais rica, é simultaneamente as duas coisas, tanto a análise crítica do Estado moderno e da realidade a ele relacionada como a negação decisiva de todo o modo anterior de consciência política e jurídica alemã, cuja expressão mais nobre, mais universal, elevada à ciência, é precisamente a mesma filosofia especulativa do direito.

Assim como a filosofia especulativa do direito - este pensamento abstrato e superabundante do Estado moderno cuja realidade continua a ser o além, apesar deste além se encontrar do outro lado do Reno - só poderia processar-se na Alemanha, assim também, por sua vez e inversamente, a imagem alemã, conceitual, do Estado moderno - abstraída do homem real - só se tornou uma possibilidade porque e enquanto o mesmo Estado moderno se abstrai do homem real ou satisfaz o homem total de modo puramente imaginário. Em política, os alemães pensam o que os outros povos fazem. A Alemanha era sua consciência teórica. A abstração e a arrogância de seu pensamento corria sempre em parelha com a limitação e a mesquinhez de sua realidade. Por conseguinte, se o status quo do Estado alemão exprime a perfeição do antigo regime, o acabamento da lança cravada no Estado moderno, o status quo da consciência do Estado alemão expressa a imperfeição do Estado moderno, a falta de consistência de seu próprio corpo.

Enquanto adversário decidido do modo anterior de consciência política alemã, o Estado orienta a crítica da filosofia especulativa do direito não para si mesma, mas para tarefas cuja solução exige apenas um meio: a prática. Indagamo-nos: pode a Alemanha chegar a uma prática à la hauter des principes [à altura dos princípios], isto é, a uma revolução que a eleve não só ao nível oficial dos povos modernos mas, também, ao nível humano que será o futuro imediato destes povos!

As armas da crítica não podem, de fato, substituir a crítica das armas; a força material tem de ser deposta por força material, mas a teoria também se converte em força material uma vez que se apossa dos homens. A teoria é capaz de prender os homens desde que demonstre sua verdade face ao homem, desde que se torne radical. Ser radical é atacar o problema em suas raízes. Para o homem, porém, a raiz é o próprio homem.

A prova evidente do radicalismo da teoria alemã e, portanto, de sua energia prática, consiste em saber partir decididamente da superação positiva da religião. A crítica da religião derruba a idéia do homem como essência suprema para si próprio. Por conseguinte, com o imperativo categórico mudam todas as relações em que o homem é um ser humilhado, subjugado, abandonado e desprezível, relações que nada poderia ilustrar melhor do que aquela exclamação de um francês ao tomar conhecimento da existência de um projeto de criação do imposto sobre cães: Pobres cães! Querem tratá-los como se fossem pessoas!

Até historicamente a emancipação teórica tem um interesse especificamente prático para a Alemanha. O passado revolucionário da Alemanha é, de fato, um passado histórico: é a Reforma. Como então no cérebro do frade, a revolução começa agora no cérebro do filósofo. Lutero venceu efetivamente a servidão pela devoção porque a substituiu pela servidão da convicção. Acabou com a fé na autoridade porque restaurou a autoridade da fé. Converteu sacerdotes em leigos porque tinha convertido leigos em sacerdotes. Libertou o homem da religiosidade externa porque erigiu a religiosidade no interior do homem. Emancipou o corpo das cadeias porque sujeitou de cadeias o coração.

Mas, se o protestantismo não foi a verdadeira solução, representou a verdadeira colocação do problema. Já não se tratava da luta do leigo com o sacerdote que existe fora dele, mas da luta com o sacerdote que existe dentro de si próprio, com sua natureza sacerdotal. E, se a transformação protestante do leigo alemão em sacerdote emancipou os papas leigos, os príncipes, com toda sua clerezia, se emancipou privilegiados e filisteus, a transformação filosófica dos alemães com espírito sacerdotal em homens emancipará o povo. Mas, do mesmo modo que a emancipação não se deteve nos príncipes, tampouco a secularização dos bens se deterá no despojo da igreja, realizada sobretudo pela hipócrita Prússia. A guerra dos camponeses, fato mais radical da história alemã, lançou-se contra a teologia. Hoje, com o fracasso da própria teologia, o fato mais servil da história alemã, nosso status quo, se lançará contra a filosofia. As vésperas da Reforma, a Alemanha oficial era o servo mais submisso de Roma. As vésperas de sua revolução, é o servo submisso de algo menos que Roma, Prússia e Áustria, de fidalguetos rurais e filisteus.

Não obstante, uma dificuldade fundamental parece opor-se a uma revolução alemã radical. Com efeito, as revoluções necessitam de um elemento passivo, de uma base material. A teoria só se realiza numa nação na medida que é a realização de suas necessidades. Ora, ao imenso divórcio existente entre os postulados do pensamento alemão e as respostas da realidade alemã corresponderá o mesmo divórcio existente entre a sociedade alemã e o Estado e consigo mesma!

Não basta que o pensamento estimule sua realização; é necessário que esta mesma realidade estimule o pensamento. Todavia, a Alemanha não escalou simultaneamente com os povos modernos as fases intermediárias da emancipação política. Praticamente, não chegou sequer às fases que superou teoricamente. Como poderia, de um salto mortal, remontar-se não só sobre seus próprios limites, como também e ao mesmo tempo, sobre os limites dos povos modernos, sobre limites que na realidade devia sentir e aos quais devia aspirar como a emancipação de seus limites reais! Uma revolução radical só pode ser a revolução de necessidades radicais, cujas premissas e lugares de origem parecem faltar completamente.

Não obstante, se a Alemanha só abstratamente acompanhou o desenvolvimento dos povos modernos, sem chegar a participar ativamente das lutas reais deste, não é menos verdade que, de outro lado, partilhou os sofrimentos deste mesmo desenvolvimento, sem usufruir seus benefícios e satisfações parciais. A atividade abstrata de um lado, corresponde o sofrimento abstrato do outro. Assim, numa bela manhã, a Alemanha se encontrará em nível idêntico à decadência européia antes mesmo de haver atingido o nível da emancipação européia. Poderíamos compará-la a um idólatra que agonizasse, vítima do cristianismo.

Fixemo-nos, antes de mais nada, nos governos alemães, e os veremos de tal modo impulsionados pelas condições da época, pela situação da Alemanha, pelo ponto de vista da cultura alemã e, finalmente, por seu próprio instinto certeiro, a combinar os defeitos civilizados do mundo dos Estados modernos, cujas vantagens não possuímos, com os defeitos bárbaros do antigo regime, de que nos podemos jactar até a saciedade, que a Alemanha, senão por prudência, pelo menos à falta desta tem que participar cada vez mais da constituição de Estados que estão muito além de seu status quo.

Acaso, por exemplo, há no mundo algum país que partilhe tão simplesmente como a chamada Alemanha constitucional todas as ilusões do Estado constitucional sem partilhar de suas realidades. Ou não teria que ser necessariamente uma ocorrência do governo alemão o fato de associar os tormentos da censura aos tormentos das leis de setembro na França, que pressupõem a liberdade de imprensa. Assim como no panteão romano se reuniam os deuses de todas as nações, no sacro império romano germânico se reúnem os pecados de todas as formas de estado. Que este ecletismo chegará a alcançar um nível até hoje inimaginado, o garante, de fato, o enfado estético-político de um monarca alemão que aspira desempenhar, se não através da pessoa do povo, pelo menos em sua própria, se não para o povo, pelo menos para si mesmo, todos os papéis da monarquia: a feudal e a burocrática, a absoluta e a constitucional, a autocrática e a democrática. A Alemanha, como a ausência do presente político constituído num mundo próprio, não poderá derrubar as barreiras especificamente alemães sem derrubar a barreira geral do presente político.

Para a Alemanha, o sonho utópico não é a revolução radical, não é a emancipação humana geral, mas, ao contrário, a revolução parcial, a revolução meramente política, a revolução que deixa de pé os pilares do edifício. Sobre o que repousa uma revolução parcial, uma revolução meramente política? No fato de emancipar uma parte da sociedade burguesa e de instaurar sua dominação geral, no fato de uma determinada classe empreender a emancipação geral da sociedade a partir de sua situação especial. Esta classe emancipa toda a sociedade, mas apenas sob a hipótese de que toda a sociedade se encontre na situação desta classe, isto é, que possua, por exemplo, dinheiro e cultura ou que possa adquiri-los.

Nenhuma classe da sociedade burguesa pode desempenhar este papel sem provocar um momento de entusiasmo em si e na massa, momento durante o qual confraterniza e se funde com a sociedade em geral, com ela se confunde e é sentida e reconhecida como seu representante geral, que suas pretensões e direitos são, na verdade, os direitos e ais pretensões da própria sociedade, que esta classe é realmente o cérebro e o coração da sociedade. Somente em nome dos direitos gerais da sociedade pode uma classe especial reivindicar para si a dominação geral. E, para atingir esta posição emancipadora e poder, portanto, explorar politicamente todas as esferas da sociedade em benefício da própria esfera, não bastam por si sós a energia revolucionária e o amor próprio espiritual.

Para que coincidam a revolução de um povo e a emancipação de uma classe especial da sociedade burguesa, para que uma classe valha por toda a sociedade, é necessário, pelo contrário, que todos os defeitos da sociedade se condensem numa classe, que uma determinada classe resuma em si a repulsa geral, que seja a incorporação do obstáculo geral; é necessário, para isto, que uma determinada esfera social seja considerada como crime notório de toda a sociedade, de tal modo que a emancipação desta esfera surja como autoemancipação geral. Para que um estado seja par excellenee o estado de libertação, é necessário que outro seja o estado de sujeição por antonomásia. O significado negativo geral da nobreza e do clero franceses condicionou a significação positiva geral da classe inicialmente delimitadora e contraposta, da burguesia.

Todavia, todas as classes especiais da Alemanha carecem de conseqüência, rigor, arrojo e intransigência capazes de convertê-las no representante negativo da sociedade. Além do mais, todas carecem da grandeza de espírito que pudesse identificar uma delas, ainda que momentaneamente, com o espírito do povo; todas carecem da genialidade que infunde o entusiasmo do poder político ao poder material, da intrepidez revolucionária que lança o desafio ao inimigo: Nada sou e tudo deveria ser. Esse modesto egoísmo que faz valer e permite que outros também façam valer suas próprias limitações é o fundo básico da moral e da honradez de indivíduos e classes na Alemanha. Por isto, a relação existente entre as diversas esferas da sociedade alemã não é dramática, mas épica. Cada uma delas começa a sentir e a fazer chegar às outras suas pretensões, não ao se ver oprimida, mas quando as circunstâncias do momento, sem intervenção sua, criam uma base social sobre a qual, por sua vez, possa exercer pressão.

Até mesmo o amor próprio moral da classe média alemã repousa sobre a consciência de ser o representante geral da mediocridade filistéia de todas as demais classes. Portanto, não são apenas os reis alemães que ascendem ao trono mal à propos [inoportunamente], mas todas as esferas da sociedade burguesa, que sofrem sua derrota antes de terem festejado a vitória, que desenvolvem seus próprios limites antes de terem ultrapassado os limites que se opõem a estes, que fazem valer sua pusilanimidade antes de fazer valer sua arrogância, de tal modo que até mesmo a oportunidade de desempenhar um grande papel desaparece antes de existir e que cada classe, tão logo começa a lutar com aquela que lhe está acima, vê-se envolvida na luta com aquela que lhe está abaixo. Daí porque os príncipes estão em luta contra a burguesia, os burocratas contra a nobreza e os burgueses contra todos eles, enquanto o proletário começa a lutar contra o burguês. A classe média nem sequer se atreve a conceber o pensamento da emancipação de seu ponto de vista, já que o desenvolvimento das condições sociais, do mesmo modo que o progresso da teoria política, se encarregam de revelar este mesmo ponto de vista como algo antiquado ou, pelo menos, problemático.

Na França, basta que alguém seja alguma coisa para querer ser todas as coisas. Na Alemanha, ninguém pode ser nada se não quiser renunciar a tudo. Na França, a emancipação parcial é o fundamento da emancipação universal. Na Alemanha, a emancipação universal é a conditio sine que non de toda emancipação parcial. Enquanto na França é a realidade da emancipação gradual que tem de engendrar a liberdade total, na Alemanha, ao contrário, é justamente a sua impossibilidade. Na França, toda classe é um político idealista que se sente como representante das necessidades sociais em geral, ao invés de sentir-se como representante de uma classe especial. Por isto, o papel emancipador passa por turnos, em movimento dramático, entre as distintas classes do povo francês até atingir, finalmente, a classe que já não realiza a liberdade social sob a hipótese de certas condições que se encontram à margem do homem e que, não obstante, foram criadas pela sociedade humana, mas que organiza todas as condições de existência a partir da hipótese da liberdade social.

Pelo contrário, na Alemanha, onde a vida prática tão pouco tem de espiritual assim como a vida espiritual de prático, nenhuma classe da sociedade burguesa sente a necessidade nem a capacidade de emancipação geral até ver-se obrigada a isto por sua situação imediata, pela necessidade material, pelas suas próprias cadeias. Onde reside, pois, a possibilidade positiva da emancipação alemã? Resposta: na formação de uma classe com cadeias radicais, de uma classe da sociedade burguesa que não é uma classe da sociedade burguesa; de um estado que é a dissolução de todos os estados; de uma esfera que possui um caráter universal por seus sofrimentos universais e que não reclama nenhum direito especial para si, porque não se comete contra ela nenhuma violência especial, senão a violência pura e simples; que já não pode apelar a um título histórico, mas simplesmente ao título humano; que não se encontra em nenhuma espécie de contraposição particular com as conseqüências, senão numa contraposição universal com as premissas do Estado alemão; de uma esfera, finalmente, que não pode emancipar-se sem se emancipar de todas as demais esferas da sociedade e, simultaneamente, de emancipar todas elas; que é, numa palavra, a perda total do homem e que, por conseguinte, só pode atingir seu objetivo mediante a recuperação total do homem. Esta dissolução da sociedade como uma classe especial é o proletariado.

O proletariado só começa a surgir na Alemanha, mediante o movimento industrial que desponta, pois o que forma o proletariado não é a pobreza que nasce naturalmente, mas a pobreza que se produz artificialmente; não é a massa humana oprimida mecanicamente pelo peso da sociedade, mas aquela que brota da aguda dissolução desta e, em especial, da dissolução da classe média, ainda que gradualmente, como se compreende, venham a incorporar-se também a suas fileiras a pobreza natural e os servos cristãos-germânicos da gleba. Ao proclamar a dissolução da ordem universal anterior, o proletariado nada mais faz do que proclamar o segredo de sua própria existência, já que ele é a dissolução de fato desta ordem universal. Ao reclamar a negação da propriedade privada, o proletariado não faz outra coisa senão erigir a princípio de sociedade aquilo que a sociedade erigiu em princípio seu, o que já se personifica nele, sem intervenção de sua parte, como resultado negativo da sociedade.

O proletariado está amparado, então, em relação ao mundo que nasce, da mesma razão que assiste o rei alemão em relação ao mundo existente, ao denominar o povo seu povo, como ao cavalo seu cavalo. Ao declarar o povo sua propriedade privada, o rei se limita a expressar que o proprietário privado é o rei. Assim como a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais. Com a mesma rapidez que o raio do pensamento penetra a fundo neste puro solo popular, se efetuará a emancipação dos alemães como homens.

Resumindo e concluindo: A única emancipação praticamente possível da Alemanha é a emancipação do ponto de vista da teoria, que declara o homem essência suprema do homem. Na Alemanha, a emancipação da Idade Média só é possível como emancipação paralela das superações parciais da Idade Média. Na Alemanha, não se pode derrubar nenhum tipo de servidão sem derrubar todo tipo de servidão em geral. A meticulosa Alemanha não pode revolucionar sem revolucionar seu próprio fundamento. A emancipação do alemão é a emancipação do homem. O cérebro desta emancipação é a filosofia; seu coração, o proletariado. A filosofia não pode se realizar sem a extinção do proletariado nem o proletariado pode ser abolido sem a realização da filosofia. Quando se cumprirem todas as condições interiores, o canto do galo gaulês anunciará o dia da ressurreição da Alemanha.

Karl Marx, 1843

Fonte: 4shared


Transparência Brasil

Projeto Ficha Limpa

Acervo CULT

Acervo CULT
A revista CULT acaba de digitalizar o conteúdo integral dos DOSSIÊS publicados mensalmente, desde 1997, que se tornaram fonte de pesquisa não apenas para estudantes e professores, mas também para aqueles interessados na obra e na biografia das grandes figuras do pensamento ocidental. CULT é reconhecida por trazer textos exclusivos, produzidos pelos maiores especialistas nacionais. Caso encontre dificuldades, enviar uma mensagem para site@revistacult.com.br.

Quem sou eu

Minha foto
Teresina, Piauí, Brazil
Powered By Blogger