sábado, 30 de janeiro de 2010

Paulo Roberto Konzen

Fonte: REVISTA ELETRÔNICA ESTUDOS HEGELIANOS
Revista Semestral do Sociedade Hegel Brasileira - SHB
Ano 4 - N.º 06 Junho de 2007

O conceito de Estado e o de liberdade de Imprensa na Filosofia do Direito de Hegel

Paulo Roberto Konzen – Mestrando PPG/FIL/UFRGS e Membro do Núcleo de Estudos Hegelianos (NEHGL) - E-mail: prkonzen@yahoo.com.br



Resumo

O trabalho pretende apresentar sucinta análise sobre a concepção hegeliana de Estado, procurando demonstrar que a Filosofia do Direito de Hegel, marco do seu pensamento, é sobretudo uma obra de filosofia política, não de política, e, ainda, que nela Hegel trata do conceito de Estado e não das suas origens históricas ou das formas estatais vigentes em sua época. A análise dos elementos essenciais do conceito hegeliano de Estado espera evidenciar que Hegel não visou a justificação do então Estado prussiano, pois, por exemplo, apesar da rigorosa vigência da censura, que se fez sentir na Alemanha, a partir de 1819, Hegel questiona, na Filosofia do Direito, de 1820, e em suas aulas na Universidade de Berlim, a censura, defendendo, por sua vez, a liberdade de imprensa.


1. A relevância da Filosofia do Direito na Filosofia de Hegel

Inicialmente, é preciso reconhecer o lugar e o papel privilegiado que cabe ao escrito da Filosofia do Direito, de 1820 (o frontispício da edição original traz a data de 1821, mas a publicação é de outubro de 1820[i]), na filosofia política de Hegel nos anos de Berlim, por ter sido publicado em vida pelo próprio Hegel, tornando-se o compêndio de referência de suas aulas, objeto de anotações pessoais, e por ser a obra específica que versa sobre a sua Filosofia do Espírito Objetivo[ii].

Mas, o texto da Filosofia do Direito tem sido, até hoje, campo de intermináveis disputas. Há os que visualizam na concepção hegeliana de direito, aí exposta, a correspondência dialética que se estabelece entre os momentos do direito e a realização efetiva da liberdade, e na sua doutrina política, a primeira e mais profunda visão do Estado moderno como obra da razão e intento de efetivação concreta da liberdade. Mas, em contrapartida, há os que descobrem na Filosofia do Direito a figura de um Hegel “conservador”, defensor do status quo, fazendo apologia da monarquia absolutista e, ainda, mentor de uma teoria da “divindade” do Estado, que absorve as liberdades individuais (Cf. VAZ, 1975, p. 120).

Contudo, não será possível demonstrar que o texto publicado por Hegel mostra-se capaz de oferecer um argumento decisivo para acabar com a contenda? Bem, houve vários esforços para resolver essa polêmica: 1) Na edição das Obras Completas, o primeiro editor da Filosofia do Direito (Werke, vol. VIII, 1833), Eduard Gans, completou o texto de 1820 com “adendos” (Zusatze) redigidos a partir dos ditados de aula de H. G. Hotho (curso de 1822-1823) e de K. G. V. Griesheim (curso de 1824-1825); 2) Depois, numerosas notas manuscritas deixadas por Hegel, em vista das explicações em aula, à margem do seu exemplar pessoal da Filosofia do Direito, foram editadas por G. Lasson e reproduzidas em edições como a de Hoffmeister e Moldenhauer-Michel; 3) Além disso, Karl-Heinz Ilting reuniu os sete cursos ministrados por Hegel em Heidelberg e Berlim, nos semestres de inverno, entre 1817 e 1831. Mas, mesmo assim, muitos intérpretes hegelianos continuam suscitando interpretações discordantes (Cf. VAZ, 1975, p. 120-122).

2. As circunstâncias históricas da edição da Filosofia do Direito de Hegel

Um fator normalmente cogitado, para explicar alguns elementos, tidos como ambíguos da Filosofia do Direito, é a situação histórica que reinou na Prússia quando de sua publicação por Hegel. Pesquisas relatam que houve um clima político de repressão e de vigilância, sobretudo nos meios universitários, que se fez sentir em toda a Alemanha e, com mais rigor, na Prússia, em conseqüência dos decretos de Karlsbad. Ora, a Filosofia do Direito foi publicada apenas 18 meses depois da rígida censura imposta em 1819. Ou seja, no verão de 1819, teria tido início violenta reação dos absolutistas contra os liberais e os então chamados “demagogos”, ocasião em que várias pessoas próximas de Hegel teriam sido presas. Nessa época, cogita-se que Hegel já tinha pronto para a impressão o texto da Filosofia do Direito (Cf. VAZ, 1975, p. 121). E, em vista disso, há quem diga que Hegel, cedendo às pressões políticas, tenha refundido o seu texto, escrevendo inclusive um novo Prefácio. Porém, tais elementos não são compartilhados, de forma integral, por todos os intérpretes hegelianos. Assim, por exemplo, T. M. Knox, tradutor inglês da Filosofia do Direito, mesmo reconhecendo a importância das mudanças políticas na Prússia de 1819 e sua repercussão sobre o texto que Hegel se preparava para publicar, aceita tão somente que tal repercussão tem efeito sobre alguns pormenores, não alterando as linhas essenciais do pensamento hegeliano. E. Weil, por sua vez, procurou encontrar para a sua interpretação teórica uma base histórica, tentando descobrir uma correspondência entre a concepção hegeliana do Estado e a situação da Prússia entre os anos de 1819 e 1831. Segundo a sua opinião, há traços nítidos de um Estado progressista e liberal, quando comparado aos Estados da França da Restauração, da Áustria de Metternich ou da Rússia tsarista (Cf. VAZ, 1975, p. 121). Ora, sobre tais aspectos históricos, cabe dizer que a monarquia de Frederico Guilherme III da Prússia - sobre o qual Weil[iii] observa que se tratava da mais estável e progressista na época da redação da Filosofia do Direito -, de fato, apresenta grandes similaridades; contudo, apresenta também diferenças significativas em relação ao conceito de Estado hegeliano, tais como, entre outras, a existência efetiva da monarquia constitucional e do parlamento.

3. O texto da Filosofia do Direito de Hegel

Ora, se Hegel escreveu ou não deliberadamente algumas proposições de seu texto de forma ambígua ou se algumas opções políticas hegelianas são ou não dignas de crítica[iv], importa ressaltar que a análise do seu pensamento político precisa ser sobre o texto da Filosofia do Direito. Para tal, urge, por fim, tocar o ponto central da filosofia política de Hegel, ou seja, as relações entre o lógico e o político (Cf. ROSENFIELD, 1983, p. 278). Isso porque:

Uma leitura atenta do texto hegeliano evidencia claramente - e Hegel o diz claramente - que se trata do conceito pensado do Estado e não das suas origens históricas ou das formas estatais vigentes em sua época. O caráter "divino" do Estado não é o de um Estado historicamente existente, mas o de seu desenvolvimento lógico” (ROSENFIELD, 1983, p. 219).

Assim sendo, na Filosofia do Direito, na seção Estado[v], § 257 (p. 25), Hegel afirma que “o Estado é a realidade efetiva da Idéia ética”, e no § 258 A (p. 27), ele diz que:

Ora, qual seja ou tenha sido porém a origem histórica do Estado em geral ou, antes, a de cada Estado particular, dos seus direitos e da suas determinações, se ele primeiro proveio de relações patriarcais, do medo ou da confiança, da corporação etc., e como, em seguida, foi apreendido e consolidado na consciência o fundamento de tais direitos, se como direito divino, como direito positivo ou contrato, como costume e assim por diante, isso não concerne à Idéia do Estado, mas, em relação ao conhecimento científico do Estado, de que aqui unicamente se fala, constitui, como fenômeno, uma questão histórica”.

Além disso, no § 258 Z (p. 34), reafirma que: “Na consideração da Idéia do Estado não se deve ter diante dos olhos os Estados particulares, [também] não instituições particulares, mas tem de se considerar por si, antes, a Idéia”. Ou seja, a concepção de Estado, tal como apresentada, não representa um Estado em particular, mas como definição está se referindo a uma forma da realidade, tal que ela existe somente se satisfazer tais condições. Isto é, se ele não preenche tais categorias, então ainda não é um Estado segundo o seu conceito.

O Estado é, então, uma instância que, engendrada pela sociedade, lhe é contudo exterior, pois o seu fim lhe é específico, o de promover os interesses da coletividade. A sua função é fundamentalmente política e o seu exercício vital, pois, sem ele, a sociedade sucumbe à própria falta de fundamento, à luta desregrada dos interesses particulares e egoístas. Depende, assim, da atividade dos cidadãos o fazer viver a liberdade, o realizar o Estado segundo o seu conceito” (ROSENFIELD, 1983, p. 54-55).

Para Hegel, em síntese, um Estado perfeito é aquele no qual o conceito de Estado não está mais encoberto e as determinações particulares desse conceito chegaram onde a liberdade tornou-se efetiva (Cf. § 260, p. 35: “O Estado é a realidade efetiva da liberdade concreta”).

4. A definição do conceito hegeliano de Estado na Filosofia do Direito

Ora, Hegel bem sabe que do ponto de vista conceitual a relação pode não ser de conflito, mas o mesmo não se dá empiricamente, pois aí o conflito é iminente. Ou seja, Hegel tem consciência e ressalta que o empírico “Estado não é uma obra de arte”, pois ele se “encontra no mundo, por conseguinte, na esfera do arbítrio, do acaso, do erro” (§ 258 Z, p. 34). Mas, mesmo que seja “mais fácil descobrir defeitos do que conceber o afirmativo” (§ 258 Z, p. 34), isto é, que “encontrar defeitos é fácil, ao passo que o difícil é conhecer o seu bem” (§ 268 Z, p. 44), é necessário observar o afirmativo, a vida, pois isso subsiste apesar de toda a falha.

Mas, qual seria a formulação sucinta e clara que Hegel apresenta como sendo o seu conceito de Estado? Creio que seja impossível indicar uma única referência, que apresente todos os inúmeros elementos deste complexo conceito. São, enfim, muitos os elementos a serem destacados, mas, o de ser “a realização efetiva da liberdade” (§ 260, p. 35) aparece como uma das características essenciais de sua definição: “o Estado em si e para si é o todo ético, a realização efetiva da liberdade, e o fim absoluto da razão é que a liberdade seja efetivamente real” (§ 258 Z, p. 33). Ou seja, segundo Hegel, a realização efetiva do Estado, segundo o seu conceito, envolve necessariamente a realização efetiva da liberdade.

5. A realização efetiva ou não do conceito de Estado hegeliano

Se o conceito de Estado hegeliano enfatiza a realização efetiva da liberdade, então as leis do Estado precisam vir a ser ponderadas racionalmente. Na verdade, entrementes, “Hegel considera igualmente danosas tanto a ausência de um poder estatal quanto uma forma de Estado que tudo organiza e controla, não deixando nada à iniciativa dos cidadãos e apoderando-se das esferas social e privada” (ROSENFIELD, 1993, p. 21). Ou seja, “a filosofia hegeliana é o contrário de uma filosofia que afirmaria o princípio da passividade dos cidadãos. É somente pela atividade e pela consciência dos cidadãos que o conceito atualiza-se, libera-se, no devir dos acontecimentos históricos” (ROSENFIELD, 1993, p. 50). Além disso, outro elemento importante do conceito é que “sem o direito à diferença, o Estado não pode ser uma unidade livre, pois o Estado só é livre através do movimento de produção de suas diferentes figuras”; ou seja, “uma universalidade estatal que não respeitasse os direitos da vontade particular poderia ser tudo, menos a concretização da idéia da liberdade, o que constitui propriamente o objeto da pesquisa filosófica de Hegel” (ROSENFIELD, 1993, p. 224).

Para Hegel, o Estado verdadeiro não é uma renúncia senão realização da liberdade individual. Uma ordem totalitária na qual todo ato privado esteja submetido à lei, e no qual a polícia decida sobre a vida cotidiana, não merece ser chamado um organismo vivo senão uma máquina e como tal, carece da capacidade de gerar alguma vida. É certo que faz reinar a ordem e o direito, mas o logra a custa de que "a confiança, a alegria, o amor e todas as potencialidades da vida ética terminem reduzidas a cinzas"” (PÉREZ CORTÉS, 1987, p. 186)[vi].

Assim, por exemplo, o pleno exercício da liberdade de imprensa, para Hegel, coincide com a realização efetiva ou não do conceito de Estado, o que pode ser visto no § 319 da Filosofia do Direito, pois, em Hegel, “as proibições dirigidas contra a liberdade de imprensa [só] ocorrem quando o Estado afasta-se do seu conceito” (ROSENFIELD, 1983, p. 260). Ou seja, a filosofia de Hegel tem, no conceito de Estado, em vista a concretização da idéia da liberdade, da qual a liberdade de imprensa é simplesmente uma faceta.

6. O conceito de liberdade na Filosofia de Hegel

Na filosofia hegeliana, o termo liberdade é tão recorrente, que é correto afirmar que, em Hegel, “pensar a liberdade aparece como a indeclinável e mais essencial tarefa da filosofia” (VAZ, 1999, p. 378), ou, ainda, “pensar a liberdade ou unir dialeticamente liberdade e razão, eis a única tarefa da filosofia” (VAZ, 1997, p. 80). Em outras palavras, o eixo temático da filosofia hegeliana, tal como bem destacou Bourgeois[vii], é a questão da liberdade.

Em todas essas dimensões da definição hegeliana de espírito, está sempre presente a preocupação no estabelecimento das condições para tornar efetiva a própria liberdade. Aliás, esse é um meta-tema da filosofia hegeliana, isto é, um problema que lhe percorre transversalmente: pensar os requisitos não apenas para uma correta definição do conceito de liberdade, mas, sobretudo, indicando as condições para sua efetivação” (PERTILLE, 2005, p. 114).

O conceito de liberdade

[viii] pode e deve ser considerado o tema básico da filosofia hegeliana, pois o objetivo do pensamento de Hegel, assim como o dos demais filósofos do Idealismo Alemão, inseridos no âmbito da filosofia moderna[ix], é a busca pela realização efetiva da liberdade.

Nenhuma filosofia colocou com tanta acuidade o problema da liberdade ao ponto de fazer desse conceito a idéia central de toda filosofia. É uma convicção partilhada por todos esses filósofos, apesar de suas diferenças às vezes profundas, que a liberdade foi alçada ao patamar de princípio mesmo do pensamento” (ROSENFIELD, 1988, p. 18-19).

Todos os filósofos do Idealismo Alemão elaboraram suas concepções filosóficas, orientando-se por uma compreensão do conceito-chave de liberdade.

Ora, o termo “liberdade”, em português, tal como nos principais idiomas (“libertas”, em latim; “eleuteria” [“έλεύθερία”], em grego; “liberté”, em francês; “libertà”, em italiano; “libertad”, em espanhol; “liberty” ou “freedom”, em inglês; “Freiheit”, em alemão; ...), está, normalmente, vinculado só a idéia de um estado sócio-político, sem opressão, por parte de um indivíduo.

Como nos ensina o dicionário etimológico, a palavra "Freiheit" ("liberdade", em alemão) procede do termo gótico "freihals" ou do vocábulo alemão medieval "frihals": pois enquanto os escravos deviam levar um grilhão em torno do pescoço, seus donos tinham o "pescoço livre" ("frein Hals"); eram, por isso mesmo, "livres" ("freie")” (DAHRENDORF, 1982, p. 244).

Mas, dado de que, desde os primórdios da filosofia, a questão da liberdade constitui tema de debate e de tentativa de definição, torna-se nítido que sua acepção envolve mais questões.

A palavra liberdade é (...) uma palavra ambígua se nos ativermos apenas a seus usos empíricos através da história. Ela deixará de sê-lo se nos perguntarmos sobre as condições de possibilidade que tornaram esses diferentes usos possíveis, ou ainda, se nos interrogarmos sobre a compatibilidade, sobre a coerência e sobre a articulação destes diferentes empregos. Ou seja, podemos chegar ao significado da liberdade se adotarmos uma perspectiva de análise que se situe acima de cada um dos seus usos, adequando-as às diversas regras do seu emprego e pensando as diferentes regras de sociabilidade a partir de uma posição normativa capaz de responder à pergunta de por que um modelo de sociabilidade é preferível a um outro” (ROSENFIELD, 1990, p. 62).

Assim, por exemplo, Aristóteles (384-322 a.C.), depois de destacar a contingência de certos atos futuros, no Organon, mostrou, na Ética a Nicômaco (1111b), que o mérito ou demérito não podem ser atribuídos senão aos atos que nós temos ou não a liberdade de executar, pois “o que não é senhor de si mesmo é capaz de desejar, mas não de agir por livre escolha”. Tal caracterização, como outras, que se poderia citar, expressa, em síntese, parte do pensamento de tal filósofo sobre a liberdade, o que, mesmo sendo importante, infelizmente não expõe o todo de sua análise, pois perde, entre outras coisas, o grau adequado de detalhamento. Por isso, não convém aqui citar, sem a devida análise, trechos sobre as concepções de liberdade de outros filósofos, mas tão somente destacar que todos eles buscaram oferecer aspectos enriquecedores para nossa noção atual de liberdade. Tal monumental trabalho, digno de reconhecimento, acabou desembocando também na Alemanha, sobretudo a partir do século XVIII, criando aí um ambiente próprio de debate sobre a liberdade, tornando-se, inclusive, o conceito-chave do Idealismo Alemão e, em especial, de Hegel.

Na trajetória do desenvolvimento das questões do Idealismo Alemão, uma vez posta a questão da liberdade no lugar central da reflexão, Hegel tratará de avançar até o ponto de não mais apenas pensar na exata definição de liberdade, mas também, e principalmente, de conceber os modos possíveis de sua efetiva realização possível” (PERTILLE, 2005, p. 171).

Eis, assim, uma busca comum visando efetivar a liberdade. Ou seja, a análise da concepção de liberdade procurou não só o domínio teórico, mas também prático da realidade, no sentido de tornar o ser humano comprometido com a direção de sua história, a partir de certas condições objetivas. Entre elas, por exemplo, existe o processo de entrelaçamento das liberdades, onde a liberdade de alguém só pode se tornar efetiva quando ele próprio a busca, na medida em que se vincula com a liberdade dos outros. A liberdade da comunicação pública ou da imprensa, entre outras formas, é um exemplo do problema acima citado, merecendo, por isso, ser devidamente analisado.

7. O conceito de liberdade da comunicação pública em Hegel

Hegel trata, entre outros, dos conceitos de liberdade da comunicação pública (“Freiheit der öffentlichen Mitteilung”), de liberdade de imprensa (“Preßfreiheit”), de imprensa livre (“freie Presse”), de imprensa (“Presse”), e, ainda, o de publicidade (“Öffentlichkeit”) e o de opinião pública (“öffentliche Meinung”), em especial na Filosofia do Direito, nos §§ 270 e 314-319.

Mas, por exemplo, na análise do § 270 da Filosofia do Direito, Marx, autor de inúmeros textos sobre a liberdade de imprensa, diz que iria tratar da nota hegeliana [x], que analisa as relações entre a Religião e o Estado, mas ele não o faz explicitamente em parte alguma. Ora, nela, inclusive, Hegel ressalta que “da parte do Estado procedeu a liberdade do pensamento e da ciência” (§ 270 A, p. 58). Assim, Hegel enumera mais um ponto necessário de sua definição do conceito de Estado.

Depois, Marx conclui sua crítica da Filosofia do Direito de Hegel no § 313, exatamente no parágrafo anterior ao que Hegel trata dos méritos e da necessidade da publicidade das assembléias estamentais para a expansão do conhecimento universal. Além disso, é interessante também notar que Hegel, no § 315, ressalta que a publicidade é uma poderosa oportunidade de desenvolvimento e eminente formadora da opinião pública dos cidadãos. Para Hegel, a opinião pública é formada pela participação nas assembléias dos Estados ou pelo conhecimento delas através da sua publicidade, porque estas são ocasiões de informação e elas fornecem à opinião pública a oportunidade de desenvolver, na conjuntura da época, o pensamento verdadeiro sobre a realidade. É assim que se adquire a capacidade de julgar racionalmente a realidade. Dessa maneira, a opinião pública aprende a conhecer e examinar as ocupações, os talentos, as virtudes e as aptidões das autoridades e dos funcionários do Estado. No § 315 A, chega a ser dito que a publicidade é o melhor meio de formação dos cidadãos, especialmente nos interesses do Estado em geral, o que se assemelha até ao que foi defendido pela Constituição norte-americana, citada por Marx [xi], onde a liberdade de imprensa era tida como instrumento para proteger e promover a liberdade em geral, sendo considerada abusiva qualquer ação que tende a diminuí-la.

A prática da cidadania exige a publicidade dos debates parlamentares, pois eles não são propriedade de um grupo de indivíduos isolados do resto do povo. Hegel opõe ao segredo das deliberações e debates o seu caráter essencialmente público. A opinião pública tem o direito de se informada. (...) Um povo bem informado é um povo que não se deixa manipular, por esta razão o conhecimento público dos assuntos do Estado torna-se um “meio de cultura” (ROSENFIELD, 1983, p. 258).

Mas, por que Marx não faz menção ao que Hegel examinou sobre a liberdade de imprensa? Qual terá sido o motivo pelo qual Marx, entre outros[xii], desprezou as considerações de Hegel e, ainda, em contrapartida, o acusou de ter sido defensor do status quo [xiii]? Confesso que não sei dizer, mas bem sabemos que Hegel visava a efetivação da idéia da liberdade e, assim, entre outros elementos, analisou o conceito de liberdade de imprensa. Ora, além disso, a filosofia hegeliana não visava, a princípio, a justificação do Estado prussiano, pois, por exemplo, quando da estrita observância da censura, de 1819 a 1830, realidade que Marx registra[xiv], Hegel, como poucos, foi capaz de questionar, na Filosofia do Direito, publicada em 1820, e em suas aulas, a censura. Ou seja, apesar do clima de repressão e de vigilância, que se fez sentir em toda Alemanha, Hegel defende a liberdade de imprensa. Mas, para tal, vejamos, o que Hegel nos diz sobre a imprensa, um dos tantos meios atuais da comunicação pública, procurando ressaltar todos os aspectos, a princípio, relevantes.

7.1. Noções sobre a comunicação pública e sua função

Bem, comunicação pública é algo que não se refere somente à transmissão verbal, explícita e intencional de mensagens. Mas, o conceito de comunicação inclui todos esses processos por meio dos quais as pessoas influenciam de certo modo outras pessoas. Esta definição se baseia na premissa de que todas as ações ou eventos têm aspectos comunicativos, no momento em que são percebidos por alguém. Ou seja, tal percepção, a princípio, modifica o conjunto de informações que um indivíduo possui e, assim, em algum aspecto, o influencia.

Além disso, as funções básicas que têm sido, convencionalmente, atribuídas aos muitos meios de comunicação são quatro: informar, divertir, persuadir e ensinar. A primeira diz mais respeito à difusão de notícias, relatos, comentários, etc, sobre a realidade, acompanhada, ou não, de interpretações ou explicações. A segunda função atende à procura de distração, de evasão, de divertimento, etc, por parte do público. A terceira função visa persuadir o indivíduo, convencê-lo, por exemplo, a adquirir um produto, a votar em certo candidato, a se comportar de acordo com os desejos de um anunciante. A quarta função - ensinar - é realizada de modo indireto ou direto, intencional ou não, por meio de material visando a formação do indivíduo ou para ampliar seus conhecimentos, planos, etc.

7.2. Os diferentes meios de comunicação pública

A liberdade da comunicação pública envolve muitos meios, entre eles o da imprensa. Mas, quando Hegel fala de comunicação, ele se refere só à escrita e ao discurso oral: a primeira, segundo Hegel, se avantaja ao discurso oral, pelo maior alcance do seu contato, mas em contrapartida, lhe fica atrás em vivacidade (Cf. § 319, p. 124). Na época de Hegel (1770-1831), ainda não existia o rádio, a televisão, a internet e todos os demais meios de comunicação pública da atualidade. Apesar disso, Hegel já destaca, por exemplo, a necessidade de transmitir pelos veículos de comunicação o que realmente se passa e que tal tipo de informação não deveria ser sonegado por decisão de autoridade ou determinação do editor do veículo.

7.3. A história da descoberta da tipografia e o seu processo de regulamentação

Antes mesmo da descoberta da tipografia[xv], sobre todos os escritos já costumava pesar rigorosa regulamentação, tanto de origem religiosa quanto laica. A tipografia, no princípio, é encorajada e favorecida. Mas, já no início do século XVI, os poderes civis e religiosos se coligam a fim de frear as supostas intemperanças dos impressores. Assim, a imprensa periódica foi, até o fim do século XVIII, especialmente na França, submetida a um regime preventivo e arbitrário. Esse regime comportou, ao mesmo tempo, a obrigação de obter um privilégio mais ou menos acompanhado de monopólios para a edição e uma prévia censura de todas as publicações. Para tal, não existia regra nenhuma que limitasse o poder discricionário de conceder ou recusar as autorizações. As profissões de impressor, livreiro-editor ou vendedor, a princípio livres, eram todas sujeitas a regulamentação corporativa cada vez mais minuciosa e repressiva, dada a regulamentação estatal.

7.4. A história da expansão dos meios de comunicação

Somente no século XIX, a imprensa começa a adquirir, propriamente, as características de um meio de comunicação dirigido às massas. Com o desenvolvimento impetuoso da tecnologia, desencadeado pela Revolução Industrial, as atividades de editoração perdem o feitio artesanal e adotam as técnicas da industrialização. No contexto da produção em massa, os novos bens fabricados pela indústria editorial, principalmente os jornais e as revistas, têm o custo barateado, tornando-se produtos de consumo popular. Assim, o período de 1815 a 1850 vai apresentar grande importância para a história da imprensa. Até então, os jornais só eram editados em pequeno número de exemplares (entre 300 e 3.000). Dado o crescimento do número de habitantes dos Estados, aparece, também, a noção de massa. Com isso, a imprensa precisou se adaptar, já que sempre mais pessoas recebiam instrução, ou seja, passam, então, ter condições de ler e escrever, e podem, em conseqüência, querer adquirir os impressos. As técnicas industriais transformam-se também radicalmente com o desenvolvimento da máquina a vapor (que foi adaptada à imprensa) e da mecânica. Porém, a imprensa se converte, efetivamente, num autêntico e amplo veículo de comunicação de massas somente depois de Hegel, com o surgimento do rádio, do cinema, da televisão, da informática, etc, como conseqüência do progresso eletrônico, e rapidamente, eles incorporam-se à estrutura da sociedade.

Mas, a importância da liberdade da comunicação para a educação da pessoa e da sociedade foi logo reconhecida. August Ludwig Schlözer, da Universidade de Göttingen, Alemanha, entre outros, tratou da imprensa em suas conferências de história. Em 1777, Schlözer teria observado os conteúdos e a função das notícias, de diferentes partes do mundo, e oferecido alguns comentários críticos sobre suas descobertas. Inclusive, das muitas declarações sobre a liberdade, com algum viés sobre a comunicação pública, até Hegel, acredito que se deva destacar: a) a Magna Carta, de 15.06.1215; b) o reconhecimento dos direitos das comunas por Carlos I, em 1628; c) a lei de “Habeas-Corpus”, por Carlos II, de 1679; d) a “Declaração dos Direitos”, em Virgínia, de 15.05.1776; e) a “Declaração da Independência”, de 04.07.1776, e a “Constituição Federal” dos Estados Unidos da América, de 1789, e as emendas de 1791, quando foram incluídos direitos fundamentais; e f) a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, na França, de 26.08.1789.

7.5. A experiência de censura vivenciada por Hegel

Ora, Hegel conheceu bem os meandros da comunicação pública, pois ele trabalhou como diretor da Gazeta de Bamberg, de 1807 a 1808. Esse jornal, composto de quatro pequenas folhas de formato in-quarto, durante o período em que Hegel tinha a responsabilidade, aparecia em todos os dias da semana, impresso de manhã e colocado à venda depois do meio-dia.

Mas, no momento em que Hegel tomou suas funções de redator, ainda desenrolavam-se os últimos atos da guerra franco-prussiana, com o cerco de Dantzig e de Kolberg. Com isso, quanto à censura, Hegel bem sabia, por um caso recente provindo da vila vizinha de Erlangen, do que poderia acontecer a um jornalista imprudente em tempos de guerra. O governador francês tinha suspendido a Gazeta de Erlangen e prendeu por oito dias o diretor Stutzman e o censor, pois ousaram difundir, em suas publicações, notícias e comentários suscetíveis de perturbar a ordem pública. Ora, na Bavária, a censura da imprensa tinha sido regulamentada por um edito promulgado em 1799, por iniciativa de Montgelas. Assim, as questões da censura foram incumbidas a um responsável designado para este efeito pelo comissário do distrito, enquanto funcionário provincial do mais alto grau. Ora, até o outono de 1808, o jornal de Hegel não tinha recebido nenhuma observação do Ministério dos Assuntos Estrangeiros, de Munique, donde provinham todas as requisições de censura dos governos estrangeiros. Mas, no outono de 1808, a Gazeta de Bamberg atraiu, involuntariamente, a atenção, do governo. A causa foi um artigo publicado, em 19 de agosto, sobre as posições da Bavária, pois se preparava a revolta austríaca. Este artigo continha certo número de indicações precisas sobre as posições das tropas. Essas informações provinham, literalmente, de uma ordem real, evidentemente tida como secreta. Hegel elaborou o artigo, a partir, de uma cópia de uma ordem militar, que um dos empregados de sua gráfica lhe entregara. Porém, isso não escapou a Munique, que através do Ministério dos Assuntos Estrangeiros, ordenou investigação para descobrir a origem do artigo. Hegel relatou o que sabia. Na segunda metade de dezembro, uma nova requisição de informações teve lugar a propósito deste artigo. A Gazeta de Bamberg respondeu de novo. Não se sabe bem o que aconteceu depois disso. Mas, em 1° de novembro de 1808, um decreto do rei foi promulgado em Munique e dirigido a todos os comissários gerais do distrito, segundo o qual somente as informações, emanadas de fontes oficiais, poderiam ser publicadas. Quanto às outras notícias, o decreto confiava a responsabilidade de censurá-las às pessoas designadas pelas autoridades provinciais. Desde então, o ministério tornou-se vigilante e Hegel se ressentia da fragilidade de sua posição. Entrementes, no fim do mês de novembro de 1808, Hegel assumiu a função de professor de Filosofia em Nürnberg. Isso lhe evitou a necessidade de enfrentar uma situação que se tornou bem mais difícil. Depois da saída de Hegel, dois números da Gazeta de Bamberg ainda suscitaram a ira de Napoleão. Com isso, a Gazeta de Bamberg foi suspensa em 07 de fevereiro de 1809. Enquanto tais fatos se desenrolavam, Hegel já era, depois de três meses, diretor e professor no liceu real de Nürnberg. Mas, com razão, atribuiu em parte a sua própria direção, a censura causadora da suspensão que atingiu seu sucessor. Hegel, portanto, conheceu a experiência da censura e até da suspensão do jornal onde trabalhara, isto é, vivenciou toda a relevância da comunicação pública, como, também, as suas dificuldades (Cf. BAVARESCO, 2003, p. 98-102, e BAVARESCO, 2001, p. 115-119).

7.6. As resoluções da Convenção de Karlsbad

Mas, outro fato histórico relevante aconteceu em 23 de março de 1819, quando o estudante de Teologia Karl Ludwig Sand, membro da Burschenschaften, assassinou August von Kotzebuze, escritor e dramaturgo que editava um semanário, considerado, por muitos, conservador e simpatizante da política russa, isto é, hostil ao liberalismo e ao nacionalismo alemão, além de ser considerado, por alguns, como um espião do Czar russo[xvi]. Ora, tal incidente, ocorrido em Mannheim, alertou aos meios oficiais e foi o pretexto para o chanceler Metternich convocar uma Conferência para Karlsbad, dos dias 06 a 31 de agosto de 1819, com a participação dos ministros de dez Estados Confederados Alemães (Áustria, Prússia, Baviera, Saxônia, Hannover, Württemberg, Baden, Mecklenburg, Nassau e Karlsbad), tem como resultado as referidas Resoluções de Karlsbad. O objetivo básico era cercear o movimento liberalista nos Estados alemães, onde a agitação revolucionária, localizada principalmente nos círculos intelectuais e universitários, havia encontrado espaço especialmente nas organizações estudantis, as quais já haviam provocado desordens em vários Estados da confederação germânica. Em resumo, foram três resoluções[xvii], aprovadas mediante decisão da assembléia ministerial, as quais entraram em vigor em 20 de setembro de 1819. Trata-se da [1] Lei Universitária Federal (“Resolução federal provisória sobre as providências a serem tomadas na consideração da Universidade”), da [2] Lei de Imprensa Federal (“Determinação provisória sobre a Liberdade de Imprensa”) e, ainda, da [3] Lei de Investigação Federal (“Resolução relativa ao pedido da autoridade central acerca da investigação para descobrir, nos diferentes Estados confederados, intrigas revolucionárias”)[xviii].

Na “Lei de Investigação Federal”, se destaca o Art. 2: “A finalidade desta Comissão é a investigação e a verificação em comum, quanto mais escrupulosa e abrangente possível dos atos efetivos, da procedência e das variadas ramificações contra a existente constituição e interior tranqüilidade, tanto em toda Confederação, quanto em cada um dos Estados confederados, constituídas as revolucionárias intrigas e as demagógicas associações, das quais os mais próximos ou distantes indícios já existem, ou se querer intervir no andar da investigação”[xix]. E, na “Lei de Imprensa Federal”, cabe destacar o § 1: “Enquanto a presente resolução permanecer em vigor, não poderá ser impresso nenhum escrito, este na forma de periódico diário ou caderno aparente, igualmente semelhante, não excedendo acima de 20 folhas no prelo, em nenhum Estado confederado alemão sem conhecimento prévio e precedente revisão geral pelo serviço público de imprensa local”[xx].

7.7. O conceito de liberdade da comunicação pública na Filosofia do Direito

Mas, tais questões históricas, não impediram Hegel de afirmar que: “A liberdade da comunicação pública” (envolvendo todos os meios, principalmente o da imprensa), “a satisfação daquele impulso que comicha de dizer e ter dito a sua opinião”, propriamente, “tem sua garantia direta nas leis e disposições de direito e nas de polícia, que em parte impedem, em parte punem as suas extravagâncias, [e] a sua garantia indireta, porém, na inocuidade fundada precipuamente na racionalidade da constituição, na solidez do governo e, também, na publicidade das assembléias estamentais” (§ 319, p. 124)[xxi].

Em primeiro lugar, cabe destacar que, segundo Hegel, não compete ao Estado imiscuir-se em um conteúdo, na medida em que este se refere ao lado interno da representação[xxii]. No entanto, quando um conteúdo sai da esfera interna e penetra na esfera mundana, então, com isso, ele passa a estar no domínio do Estado. Isto é, sendo da esfera externa, então passa estar sob as leis do Estado[xxiii]. Em Hegel, na medida em que uma doutrina qualquer se torna pública, isto é, quando externalizada, ela fica em geral sob a possível supervisão das leis do Estado.

Destarte, conforme Hegel, todas as externações pessoais de opinião são uma ação levada a termo e, assim, alcançam uma existência efetivamente real. Deste modo, tais ações devem ser avaliadas segundo o seu efeito próprio e a sua periculosidade para os indivíduos, para a sociedade e para o Estado. Isto é, tudo depende do caráter próprio da situação em que elas se deram, pois uma faísca lançada sobre um monte de pólvora tem uma periculosidade inteiramente diferente do que aquela faísca lançada em terra sólida, onde desaparece sem rastros (Cf. § 319 A, p. 126-127).

Para Hegel, portanto, cabe avaliar uma externação de opinião, condicionada pela respectiva realidade, segundo o perigo que ela representa para os indivíduos, para a sociedade e para o Estado (Cf. § 218[xxiv]). Com isso, dependendo do caso, cabe “impedir” [verhindernden] e “punir” [bestrafenden] as extravagâncias da liberdade de comunicação pública (Cf. § 319, p. 124).

Mas, por outro lado, segundo Hegel, não cabe impedir ou punir as externações científicas, pois elas “não caem na categoria do que constitui a opinião pública” (§ 319 A, p. 126). “A expressão científica tem o seu direito e a sua garantia na sua matéria e no seu conteúdo”, pois elas “não se encontram no terreno da opinião e das maneiras de ver subjetivas, nem também a sua apresentação consiste na arte dos torneamentos verbais, das alusões, das meias-palavras e dos encobrimentos, mas, na expressão inequívoca, determinada e aberta da significação e do sentido” (§ 319 A, p. 127). Ora, segundo Hegel, a filosofia, enquanto elevada à condição de ciência, nunca deverá vir a ser restringida. Tal aspecto explica a nota de J.-F. Kervégan no § 319, quando do exame hegeliano sobre o conceito de liberdade da comunicação pública.

“Esta passagem apresenta sua atualidade imediata (a repressão dos “demagogos” e de seus aliados na Universidade: a destituição do De Wette é manifestamente o ápice da resolução) justifica, de um lado, as medidas repressivas contra os delitos da opinião e, de outro lado, pretende preservar a ciência, ao menos a ciência autêntica, dos rigores da censura. Porém, convém notar, em defesa de Hegel, que esta posição tem sido freqüentemente adotada pelos pensadores do Iluminismo, a começar por Kant. Por outro lado, ela está conforme a convicção exposta pelo Prefácio, de que esta ciência (a ciência especulativa, também a ciência do entendimento) tem enquanto tal um valor ético que justifica a confiança que o Estado deve lhe testemunhar” (KERVÉGAN, 1998, p. 397)[xxv].

Ora, de fato, na Filosofia do Direito, Hegel pretende preservar a ciência, ao menos a ciência autêntica, dos rigores da censura. Segundo Hegel, “é do lado do Estado também que a ciência tem o seu lugar, pois ela tem o mesmo elemento da forma que o Estado, ela tem o fim do conhecer, a saber, da verdade objetiva pensada e da racionalidade” (§ 270 A, p. 58-59). Se assim for, ou seja, se a ciência tiver o mesmo elemento da forma que o Estado, não haverá motivo para qualquer censura. Porém, no § 270 A (p. 59), Hegel também ressalta a possibilidade do conhecimento poder decair do nível da ciência para o do opinar. Por isso, conforme Hegel, a ciência não é mera opinião subjetiva. Segundo o § 317 (p. 122), a opinião é tanto mais peculiar quanto pior é o seu conteúdo, ou seja, ela é ruim na medida em que é inteiramente particular e peculiar no seu conteúdo; contudo, o racional, pelo contrário, ele é o universal em si e por si.

Ora, segundo Hegel, o processo de formação da opinião pública envolve toda a complexidade de elementos resultantes da circulação ou não das devidas informações. A liberdade de comunicação pública está, assim, sim associada à liberdade de formar e de cultivar opiniões. Ou seja, tal como quando da relação com as instituições religiosas, também com as demais, principalmente as ideológicas, cabe lembrar sempre a questão da supremacia da doutrina do conceito de Estado, delimitando, inclusive, a diferença entre formação e doutrinamento, informação e propaganda, etc. Por isso, perante tais opiniões, em Hegel, o Estado ou 1) pode praticar a indiferença, isto é, desprezá-las, na medida em que tal prática tem um conteúdo subjetivo, e, por isso, sem verdadeira força e poder dentro de si, ou 2) deve tomar em sua proteção a verdade objetiva e os princípios da vida ética, tão somente na medida em que tal opinar de falsos princípios, corrói a realidade efetiva.

Assim, o Estado, para Hegel, deve sempre se comportar da maneira mais liberal possível[xxvi], desprezando inteiramente pormenores que o afetam e até suportar certas anomalias, desde que tal atitude tenha o amparo do vigor, que advém por outros meios. Um Estado plenamente formado é, por isso mesmo, forte e, assim, capaz de confiar no poder dos seus costumes e na racionalidade interna das suas instituições, sem necessidade de impedir ou punir tais externações.

As proibições dirigidas contra a liberdade de imprensa ocorrem quando o Estado afasta-se do seu conceito, um afastamento que, de todo modo, não deve restringir o livre exercício do pensamento. Poder-se-ia dizer que Hegel tem em vista o nível concreto de uma atividade jornalística cujo fim seria aproximar-se cada vez mais de critérios propriamente científicos, sabendo contudo que o ideal filosófico de uma opinião pública permanecerá sempre um ideal, pois a crônica de um instante está submetida aos seus acasos. Isto, no entanto, não deve impedir um trabalho de conscientização da opinião pública, pois o que está em jogo é a conscientização do direito de dizer não. (...) A história o contradisse, embora ele [Hegel] tivesse logicamente razão. Historicamente, o Estado se impôs contra o exercício da liberdade individual, ou, em todo caso, não contribuiu para o seu desenvolvimento” (ROSENFIELD, 1983, p. 260-261).

Contudo, cabe ressaltar que, para Hegel, a liberdade de expressão, de manifestação do pensamento ou a liberdade de cada pessoa dirigir-se a outras, verbalmente ou por escrito, pública ou sigilosamente, não exclui jamais a responsabilidade por abusos cometidos.

A princípio, Hegel é partidário da liberdade da comunicação pública. Para que isso se realize ele põe duas garantias. A garantia direta se exerce através dos dispositivos legais ou ordens, que podem ser utilizados, antes, como prevenção, ou depois, como punição. Outros vêem nas disposições legais ou ordens, uma censura prévia, embora Hegel não utilize esta palavra. E nós sabemos que essa passagem é uma das mais delicadas, é aqui que Hegel exige a abolição da censura, à qual seu livro era ainda submetido, para poder dizer livremente e não de um modo técnico somente o que tem a dizer, isso que diriam mais tarde, provavelmente, seus alunos. É verdade que o governo tem razão de intervir logo que a liberdade de expressão ultrapassa certos limites. Mas a supressão pura e simples da imprensa conduz sempre à revolta do cidadão e isso é contrário à natureza mesma da liberdade de expressão. A garantia direta da comunicação pública deve sempre ter em conta o fato de que a expressão livre da opinião é, em si, um direito objetivo no Estado” (BAVARESCO, 2001, p. 120).

Dos elementos destacados por Hegel é interessante notar que muitos aparecem em várias exposições posteriores sobre a liberdade de imprensa. Hegel, por exemplo, ressalta que a liberdade de imprensa é apenas um dos meios, talvez o principal, do que chama liberdade da comunicação pública. Outros autores chamam tal conjunto de liberdade de expressão, onde além da liberdade de imprensa, destaca-se a livre manifestação do pensamento e o sigilo de correspondência, que se relacionam igualmente com a liberdade de reunião e de associação, os quais, sem exceção, têm grande relevância para que um indivíduo possa formar livremente a sua consciência.

Conclusão

Enfim, em resumo, a liberdade de comunicação pública ou de imprensa, não exclui jamais a responsabilidade por abusos cometidos. Tais atos lesivos, segundo as palavras de Hegel, como são do âmbito da externação, colocam-se, através disso, imediatamente sob as leis do Estado. Todo indivíduo tem, segundo Hegel, (1) liberdade para fazer o que quer e (2) isenção de coerções injustificáveis para obter o que quer, desde que não sejam produzidos danos nem riscos de danos para os outros indivíduos. Ou seja, ser livre não é ter a liberdade para meramente fazer o que se quer, mas é ter a devida responsabilidade pelo que se faz. Do mesmo modo, segundo a liberdade de expressão, alguém tem todo direito de expressar tudo o que pensa, mas também tem o dever de pensar tudo o que expressa, pois precisará arcar com a responsabilidade pelo que expressar.

Assim, a apresentação de Hegel como liberal ou, então, como o filósofo da liberdade, requer antes a elucidação das nuanças de tal caracterização. Por exemplo, do ponto de vista histórico, o texto da Filosofia do Direito e os demais da obra editados pessoalmente por Hegel, sem exceção, foram todos sujeitados ao crivo da censura vigente. Portanto, urge considerar que Hegel exprimiu sua filosofia política numa época, onde a manifestação pública, escrita ou oral, de certas opiniões não era autorizada e, inclusive, em algumas ocasiões, era pretexto para perseguições e penalidades. Mas, apesar de Hegel não poder se expressar livremente em seu tempo, é nítido que ele não foi subserviente à política da época, pois o fato de vigorar forte censura não o impediu de lutar contra ela. Ou seja, além de Hegel não ter escrito nada sem antes o ter pensado, a Filosofia do Direito, como obra de filosofia política, trata do conceito de Estado e não das suas origens históricas ou das formas estatais vigentes em sua época, aspecto evidente quando da devida apreciação da sua concepção de Estado, em particular, em vista da sua relação com o seu conceito de liberdade de imprensa.

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