sexta-feira, 17 de abril de 2009

Resenha - Paul Ricoeur

RICOEUR, P. 2007. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas, Unicamp, 536 p.

Por Roberto Lauxen
E-mail: rrlauxen@yahoo.com.br
Fonte: Revista Filosofia UNISINOS


A Memória, a história e o esquecimento (2007) é a tradução brasileira de uma das últimas obras de Paul Ricoeur (1913-2005). Como é característica de seu empreendimento teórico fragmentário, esta obra vem preencher certa “lacuna” no seu percurso intelectual mais recente. Memória e esquecimento, são “níveis intermediários” entre a experiência temporal humana e a operação narrativa, temas amplamente discutidos em Tempo e narrativa, e Si-mesmo como um outro, obras com as quais podemos conceber um vínculo mais direto.

Há certo exagero em ver neste livro uma espécie de “suma” do trabalho do autor, como menciona Mario Seligmann-Silva na orelha da tradução de Alain François, embora haja uma continuidade de seu engajamento teórico mais reconhecido e uma reconciliação com as tradições fenomenológica e historiográfica da França. Há também a retomada de temas que estão em continuidade com seu projeto da juventude como Finitude e culpabilidade e a coletânea de ensaios História e verdade. Mas é claro que só devemos compreender essa retomada num movimento em espiral, após um longo desvio de percurso.

A complexidade da obra exigiu que o autor inaugurasse um novo recurso, as “notas de orientação” que pipocam a cada novo capítulo. A parte dois e três é precedida também de um prelúdio que tem a intenção de apresentar a tensão entre memória e história e história e existência. Esse é o motivo de não haver prelúdio na primeira parte.

Cada parte do livro, dividido em três capítulos, desenvolve níveis metodológicos distintos. A primeira parte é decisiva, uma vez que as aporias da memória repercutem em toda a obra. O mesmo pode ser dito do esquecimento, que é anunciado em todo o percurso e fi gura em pé de igualdade com memória e história, pois essa dupla dimensão do passado se perde quando há esquecimento.

A primeira parte desenvolve uma fenomenologia da memória, que parte da convicção do autor, face a Husserl, da primazia da intencionalidade objetal sobre a problemática egológica. Essa decisão metodológica joga o problema do sujeito da memória para o último capítulo dessa primeira parte. No plano da memória, a primazia concedida durante muito tempo à questão “quem”, à idéia de que o sujeito gramatical da memória é o “eu”, suscitou um grande impasse, com a entrada em cena da memória coletiva. Ricoeur parte primeiro da coisa (“o quê?”) para, na seqüência, tratar da questão do sujeito (“quem?”) que, então, será extensiva a todas as pessoas gramaticais, ao si, aos outros, aos estrangeiros, aos próximos, constituindo a memória coletiva de interesse particular para a história.

A intencionalidade objetal da memória revela uma primeira aporia, o aspecto cognitivo e pragmático que remete ao uso dos termos gregos mnèmè e anamnèsis, os quais signifi cam, respectivamente, ter uma lembrança e ir em busca dessa lembrança. Assim, a memória é dada e exercida e a questão “o quê?” desdobra-se na questão “como?”. Essa aporia subdivide os dois primeiros capítulos da primeira parte. O desejo de reconhecimento de uma coisa ausente ocorrida antes joga um papel decisivo em todo o percurso do texto. Por isso, a afi rmação de Aristóteles de que “a memória é do passado” permite a Ricoeur enfrentar a aporia entre memória e imagem (eikon), vinculando a memória à temporalidade da condição humana. Essa mesma aporia repercute no plano da história, pela sobreposição entre narrativa histórica e ficção literária.

A memória, enquanto exercida na prática, está exposta à aporia do uso e abuso. O autor explora a larga tradição das técnicas de memorização (ars memoriae). A memória, enquanto exercida, é, ainda, impedida (enferma) no nível patológicoterapêutico; manipulada, em função da manutenção da identidade individual e coletiva (ideologia). A memória coletiva integra e forma a identidade do grupo mediante datas comemorativas e outros expedientes. Além disso, a memória pode ser uma obrigação (dever de memória) um “recorda-te” que também é um “não te esqueças” relacionado a acontecimentos traumatizantes de nosso século, em especial a Shoah.

O que o autor denomina “dever de memória”, que, em seu desdobramento semântico, pode ser entendido como um dever de fazer justiça à vítima, com a qual contraímos uma dívida que temos obrigação de saldar, está situada no contexto do uso e abuso. Esse problema moral é também evocado em relação ao esquecimento e ao perdão. Embora ele conteste a idéia de um “dever de esquecer” e da anistia, na terceira parte, não descarta a possibilidade da reconciliação com o passado por meio da perspectiva escatológica do perdão.

A demanda de uma “política da justa memória” (p. 17) reivindicada pelo autor como um de seus temas de reconhecimento público encontra seu limite a partir da mediação da análise fenomenológica, epistemológica e hermenêutica, que apenas toca de leve na questão moral.

A segunda parte da obra desenvolve uma epistemologia da história. A tese constante é a de que a história é uma escrita, por isso o autor transporta para a escrita histórica o mito platônico do Fedro sobre a invenção da escrita, a saber, se ela é remédio (pharmakon) ou veneno da memória. Esse é o eixo da argumentação na segunda parte que prolonga um diálogo interrompido com historiadores “sobre os vínculos entre a memória e a história” (p. 17).

Embora o autor reconheça que seu livro é “uma apologia da memória como matriz da história” considera perigosa a “reivindicação da memória contra a história” (p. 100) pelo excesso de comemoração de memórias feridas e passionais quando se sobrepõem ao “enfoque mais vasto e crítico da história” (p. 102). As aporias da memória da primeira parte refl etem-se no plano da história. Seguindo o esquema de Michel de Certeau, o autor propõe-se a explicitar as três fases (imbricadas) da operação historiográfi ca, que estruturam os três capítulos da segunda parte: fase documental, fase explicativa/compreensiva e fase reconstrutiva. Apenas nessa última fase tem-se “a intenção de representar em verdade as coisas passadas” (p. 147), a partir da qual se define o projeto do historiador.

É precisamente no nível de uma hermenêutica da condição histórica, terceira parte da obra, que podemos avaliar a intensidade do julgamento histórico que extrapola o agenciamento epistemológico e documental da história. A hermenêutica da condição histórica vem ocupar o lugar de uma fi losofi a especulativa da história. Suscita dois tipos de investigações, uma crítica e outra ontológica: crítica, porque impõe “limites a qualquer pretensão totalizadora ligada ao saber histórico” (p. 299) e valida as operações objetivantes que regulam a escritura da história; ontológica, porque explicita a estrutura do nosso modo de ser histórico a partir do qual compreendemos a história.

Por intermédio dessa hermenêutica da condição histórica, “a representação do passado” aparece confiada à nossa custódia, também “exposta às ameaças do esquecido” (p. 18). “O esquecimento é o emblema de quão vulnerável é nossa condição histórica” (p. 300). Há esquecimento onde houve marca, por isso se relaciona com a memória e a fi delidade ao passado, sendo seu pólo oposto. O esquecido não é só o inimigo da memória e da história, há uma fi gura positiva do esquecido, o “esquecido de reserva”, que constitui um recurso irredutível e “reversível” a qualquer balanço de fiabilidade com o passado, por meio da memória ou da história. É uma existência inconsciente do recordar-se que pode reaparecer com a força da impressão original e que atesta nossa persistência na existência, o que evoca o conatus de Spinoza.

O perdão aparece apenas no epílogo, porque é “um componente suplementar” (p. 300) da obra e faz referência à culpabilidade e à reconciliação com o passado, por isso “propõe-se como horizonte escatológico de toda a problemática da memória, da história e do esquecimento” (p. 301). O perdão quebra a dívida, mas não a esquece, é um esquecimento da dívida, não do fato. O perdão não é uma exigência, mas um pedido que deve enfrentar a recusa, o imperdoável. O perdão é incógnito, é sem conhecimento possível, pois se trata de gestos inatingíveis que rompem a esfera do ódio e da vingança; é um desafio impossível, entretanto aceitável. Por isso, o perdão é possível, mas difícil.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Franco Volpi

Contra Nietzsche: a acusação do Papa contra o filósofo niilista

O filósofo italiano Franco Volpi comenta as recentes declarações de Bento XVI sobre Nietzsche. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS







Pobre Nietzsche! Foi o único filósofo ao qual coube o singular privilégio de ser considerado o responsável nada menos do que de uma guerra mundial. Durante o conflito de 1914-1918, em uma livraria de Piccadilly, estavam expostos na vitrine os 18 volumes das suas obras completas em inglês, com uma inscrição em letras enormes: "The Euro-Nietzschean-War: leiam o diabo para poder combatê-lo melhor!".

Depois, veio o nacional-socialismo, e algumas de suas doutrinas – o super-homem no sentido da seleção biológica, a vontade de poder, a antropologia do animal predador [1] e da "besta loira" [2] – foram consideradas, da mesma forma, como uma fonte de inspiração da ideologia racista e do totalitarismo.

Mais tarde, dado que ele diagnosticou algumas experiências negativas do século XIX como a "morte de Deus", a decadência dos valores tradicionais e o advento do niilismo, produziu-se uma singular transferência: trocou-se o seu pensamento pela causa da crise que ele, na realidade, queria só analisar e superar. Nietzsche se tornou, então, o destruidor da razão, o mestre do irracional, o teorizador do niilismo e do relativismo.

Todos esses estereótipos condicionaram fortemente a sua imagem e o seu destino. E por isso ele suscitou entusiasmos e atraiu anátemas, inspirou movimentos de vanguarda, modas culturais e estilos de pensamento, mas também provocou reações e rejeições também determinadas. Obviamente, também do lado católico.

Mesmo que notáveis intérpretes – padre Paul Valadier, por exemplo, ou o teólogo Eugen Biser – tenham procurado mostrar o contrário, não há dúvida de que, entre algumas doutrinas nietzscheanas e ensinamentos fundamentais do cristianismo, haja uma profunda incompatibilidade. Não admira, por isso, que o Papa considere Nietzsche um mau mestre e que remeta à sua filosofia alguns dos males do mundo contemporâneo. Nos últimos anos, ele não se cansou de denunciar o perigo do relativismo e do niilismo, fomentado por Nietzsche. Agora, ao criticar o ideal de humanidade predominante no mundo atual, baseado no valor da autoafirmação individual, egoísta e libertária, recorda a responsabilidade de Nietzsche: "Ele desdenhou a humildade e a obediência como sendo virtudes servis, pelas quais os homens teriam sido reprimidos. No seu lugar, colocou a ufania e a liberdade absoluta do homem".

Ora, além do fato de que a obra de Nietzsche é um autêntico quebra-cabeças, repleto de fragmentos e aforismos cuja combinação em uma doutrina de conjunto é tudo menos comprovada, seria um erro não aprofundar os motivos que surgem dessas críticas com alguma pergunta. E é melhor tomar Nietzsche não pelas respostas que ele dá, mas pelas perguntas que coloca.

Primeiro: depois que a história nos ensinou que, muitas vezes, a possessão de Verdade produz fanatismo, e que um indivíduo armado de verdade é um potencial terrorista, surge a questão: o relativismo e o niilismo são verdadeiramente o mal radical que nos é apresentado? Ou talvez eles não produzem também a consciência e da relatividade de todo ponto de vista, portanto também de toda religião? E então não veiculam, talvez, o respeito do ponto de vista do outro e, por isso, o valor fundamental da tolerância? Há coisas bonitas também no relativismo e no niilismo: inibem o fanatismo.

Quanto à concepção aristocrática e libertária do homem, também aqui seria um erro limitar-se à superfície dos aforismos singulares de Nietzsche. Seria como, em um quadro impressionista, ver só os toques cromáticos e não o conjunto da obra. Bem, como trágico observador do vazio espiritual em que o mundo moderno desemboca, Nietzsche não quer ser um "pregador de morte".

Ele não pretende se debruçar sobre a negação dos valores e o "cupio dissolvi" [desejo dissolver-me, morrer]. Pelo contrário, quer superar o niilismo: quer, sim, fazer com que ele se cumpra de modo a "tê-lo atrás de si, debaixo de si, fora de si". É esse fim que um contra-movimento do qual nascem novos valores deseja, e ele o localiza na criatividade dionisíaca da arte.

A sua crítica da mentalidade e da moral "do rebanho", a sua defesa do que podemos definir como um "direito à excelência", é uma tentativa de superar a esterilidade da simples proibição, da abnegação e da renúncia, que mortificam a vida. Nietzsche quer que a vida se realize em todas as suas potencialidades. Porém, aconselha uma atitude "criativa" que dê à vida toda a sua plenitude, análoga à do artista que imprime em sua obra uma forma bela. Nesse sentido, a sua nova moral é uma espécie de "estética da existência", cujo imperativo recomenda: "Torna-te aquilo que és!". E mesmo que a vida não seja bela, cabe a nós procurar torná-la assim.

Um dos problemas da Igreja atual é que a produção da felicidade escapou-lhe das mãos. Mas não é culpa de Nietzsche se a força dos Evangelhos se esvaece e a condição do homem ocidental é sempre mais paganizada.

Notas:

1. Na genealogia dos sentimentos morais de Nietzsche está a vontade de poder, pois este homem que se diz humano, para Nietzsche, é um tipo de animal predador que se utiliza de uma linguagem racional para justificar e mascarar sua ânsia de domínio. Nietzsche desconfia das boas ações, pois no fundo delas há apenas uma espécie de vontade de poder.

2. A "besta loira", para Nietzsche, significava o homem que nada temia e para o qual tudo era válido e permitido desde que dai resultasse algo de útil. Devia, por conseguinte, eliminar todos aqueles que parecessem fracos ou doentes.


Gianni Vattimo

Para a política, Deus é natimorto

O filósofo italiano Gianni Vattimo, em artigo para o jornal La Stampa, 11-04-2009, comenta o novo livro de Mark Lilla, "The Stillborn God" [O Deus natimorto, em tradução livre]. "A insatisfação difusa do homem "ocidental" contemporâneo [...] que explica o renascimento, também de forma aberrante, da religiosidade [...] não será o sintoma de uma necessidade de 'utopia', sem a qual nem mesmo um sóbrio liberalismo de tipo anglo-saxão pode sobreviver?", questiona. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Fonte: UNISINOS








Se a importância de um livro de não-ficção está na pesquisa de informações que nos comunica e das ideias e dos problemas que nos deixa, tanto que não podemos abandoná-lo facilmente, então o ensaio de Mark Lilla, "The Stillborn God" [O Deus natimorto, em tradução livre], que foi agora publicado em italiano com uma extraordinária tempestividade, é seguramente um livro importante e significativo.

A ideia da morte de Deus já era um tema de Heinrich Heine e depois de Nietzsche. Mas Lilla, sem se referir explicitamente a nenhum dos dois, fala até de um "Deus natimorto". Que é, para ele, o Deus da teologia liberal do século XVIII, cristã (não católica, adverte o autor, que deixa esse aspecto de fora, reservando-se o direito de lhe dedicar talvez um outro trabalho) e também judaica. Uma teologia cujo mestre principal é Schleiermacher, mas antes dele Kant e Rousseau, e que realizou a última grande tentativa de curar aquela "grande separação" entre religião e política iniciada por Thomas Hobbes na metade do século XVI com o seu famoso "Leviatã".

Pode acontecer que, apresentado dessa forma, o trabalho de Lilla pareça um ensaio muito acadêmico de história das ideias, de escasso interesse para os não especialistas. Os quais, pelo contrário, farão bem ao lê-lo e relê-lo: por ser uma espécie de grande narração da modernidade ocidental reconstruída com estilo plano e escrita cativante. E depois, sobretudo, porque fala de nós e da nossa atualidade, obrigando-nos a repensá-la, talvez, como é o caso de quem escreve, não concordando com as suas conclusões. Dizendo-o de forma bruta, o livro é uma espécie de hino – mesmo que sóbrio – à tradição liberal anglo-saxã. Portanto, escrito e pensado em um espírito que hoje chamaríamos de moderado, reformista, atlântico, de qualquer forma neoiluminista.

Todas as religiões, e sobretudo a nossa tradição bíblica judaica e depois cristã, contêm uma teologia política mais ou menos explícita: o Deus criador é o autor de uma ordem cósmica que funda também a ordem da vida associada e a legitimidade da autoridade política.

Quando Hobbes escreveu as suas obras, a Europa ainda era marcada pelas grandes guerras de religião seguidas pela Reforma protestante. Mas, para Hobbes, a intervenção da fé religiosa na vida política sempre gerou violência e guerra na história. O "Leviatã" é uma análise puramente materialista da existência humana e da sociedade. O homem é dominado por duas pulsões fundamentais, a autoconservação e a do prazer. Antes da existência da sociedade, existia apenas a luta de todos contra todos; da qual surge o contrato social, em base ao qual o poder de vida e de morte é conferido a um soberano que é como um Deus na terra, um "terceiro" que tem a autoridade de fazer com que o pacto social seja respeitado e que não deve ter limite no exercício dessa autoridade, nem por parte dos súditos, pelo menos até que garanta a paz interna e a observância das leis.

Obviamente, nem mesmo a Igreja pode limitar a autoridade do soberano, que é também o chefe da Igreja (como de fato ocorreu na Inglaterra com o cisma anglicano). A doutrina de Hobbes foi criticada como uma teoria do Estado absoluto. Mas Lilla vê nela a base da "grande separação" que destaca radicalmente a religião da política, fazendo desta última uma questão puramente humana, que não tem nenhuma necessidade do absolutismo e que pode dar lugar ao liberalismo e ao constitucionalismo moderno, que vivem enquanto excluem a fé religiosa (com as suas pretensões de absoluto) da luta política.

A grande separação preparada por Hobbes, porém, sempre encontrou muitas dificuldades para se fazer valer. A teologia política é muito difícil de morrer e também hoje – mesmo que Lilla não trate explicitamente do problema – ela renasce sempre de novo nos movimentos político-religiosos que inspiram os diversos fanatismos e terrorismos. Kant, Rousseau e depois a teologia liberal alemã do século XIX expressam o esforço mais maduro de conciliar o "naturalismo" de Hobbes (a religião como expressão pura de uma necessidade humana de garantia) e a referência a Deus. No século XVIII e no início do XIX, teólogos liberais cristãos e judeus leram a religião como um fator determinante para a legitimidade da sociedade burguesa. Mas, com a Primeira Guerra Mundial e as suas sanguinárias destruições, essa visão tranquilizante da religião cai em crise com o mundo burguês do qual ela era a apologia e o sustento.

Duas grandes figuras de teólogos, Karl Barth para o cristianismo protestante e Franz Rosenzweig para o judaísmo, propõem uma concepção messiânica e apocalíptica da religião, à qual Lilla conecta a afirmação de dois milenarismos políticos do século XX, o comunismo soviético e o nazismo. E também hoje, sugere, nós teremos o problema de evitar que a crise que estamos vivendo (Lilla escreve em 2007) faça renascer utopias milenaristas (e, entenda-se, revolucionárias).

Como se imagina, coloca-se aqui uma quantidade de problemas. Por exemplo: a grande crise que desembocou na Primeira Guerra Mundial e a atual crise do sistema capitalista que ameaça fazer com que perigosos milenarismos renasçam são "culpa" da teologia política? E ainda: a insatisfação difusa do homem "ocidental" contemporâneo (Lilla não fala dos povos do Terceiro Mundo), que explica o renascimento, também de forma aberrante, da religiosidade tanto conservadora quanto revolucionária, não será o sintoma de uma necessidade de "utopia", sem a qual nem mesmo um sóbrio liberalismo de tipo anglo-saxão pode sobreviver?

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Gilles-Gaston Granger

Filosofar sobre a Filosofia

Se aos olhos de muita gente filosofar é fugir da realidade, filosofar sobre a filosofia será na opinião destes, distanciar-se um pouco mais da realidade e ser condenado a percorrer, indefinidamente, o círculo no qual teríamos encerrado a nós mesmos. Poderíamos responder, talvez, que quem quer evitar, de toda a maneira, qualquer caminho circular, deve renunciar a pensar, de uma vez. Sublinho: a qualquer pensar, uma vez que na própria ciência, a necessidade irreprimível de voltar a algum ponto de partida firmemente estabelecido ou leva o pensamento a uma regressão rigorosamente indefinida, ou leva a justificar pelas consequências aquilo que se acreditava incondicionado. O verdadeiro problema, para uma disciplina do conhecimento, o único problema cuja solução seria, aparentemente, acessível, consistiria não em evitar o círculo a qulaquer preço, mas em definir, em cada campo, um certo modo de rompê-lo; de dizer, até onde se pode, de algum modo, remontar mais longe sem falhar; e, segundo a expressão do mestre Aristóteles, dizer como podemos e devemos parar. Nesta altura, a atividade filosófica se apresentaria como a busca mais geral concernente aos diferentes modos de decidir o ponto de interrupção. Se considerarmos, então, que pensar a vida e pensar as obras humanas, como a filosofia o faz, é permanecer na vida, ainda, ou ao menos em suas bordas e afastar-se dela só na aparência, então, filosofar sobre a filosofia não nos afastaria da vida, enquanto filosofar sobre a filosofia é ainda; literalmente, filosofar. É preciso dizer, até, que desta duplicação, desta reflexão sobre si mesma, a filosofia é inseparável. É aquilo que Platão designa pela palavra ................; aquilo que Aristóteles faz na sua Metafísica, são as difíceis análises kantianas das três críticas, enquanto figuras diversas e excepcionalmente bem sucedidas de uma atividade de pensamento que não pode subtrair-se, sem falhar, à questão que sua própria presença põe a si mesma. Seria vão querer indagar sobre os caracteres discriminativos que marcariam o uso reflexivo da filosofia. Como notou Wittgenstein, a filosofia da filosofia não se distingue da filosofia em geral mais que a ortografia geral se distinguiria da ortografia da própria palavra "ortografia" (Philosophische Untersuchungen, 1.121,p.82). E se se quer sugerir uma diferença a qualquer preço, melhor seria, com Wittgenstein, falar dos "espelhos da filosofia, colocados de modos diferentes, grandes e pequenos..." (Notebooks, 6 de março de 1915).

Não há, pois, propriamente falando, "metafilosofia" ou, se se prefere, toda filosofia já é "metadisciplina". A metafísica seria "o estudo do método filosófico", lê-se numa obra recente que tem exatamente este título. Mas oficializar, por assim dizer, esta distinção, impõe que tratemos então a filosofia como uma ciência visando um objeto capaz de constituir-se como objeto num grau superior. Este é, exaamente, o ponto de vista do filósofo do qual emprestamos a definição e para quem

a convergência efetiva, largamente difundida, das ciências em relação umas às outras e de todas elas em relação à filosofia, é um resultado impressionante de pesquisa recente (On Philosophical Method, p.27)


Não é pois de espantar que, para ele, o método da filosofia seja,

Como o método das ciências empíricas, exegético, hipotético, dedutivo, iterativo e cumulativo.

Ver-se-á que, longe de subescrever esta afirmação peremptória, tentaremos fazer e compreender como a filosofia pode ser um modo de conhecimento válido, permanecendo irredutível e insubstituível em relação à ciência. A primeira marca desta diferença profunda seria justamente o fato de que o conhecimento científico exige e suscita um metaconhecimento que o examina, descreve, critica ou fundamenta, mas que não poderia, sem impostura, pretender-se inteiramente científico; é, ao mesmo tempo, lógica e filosofia da ciência. A filosofia, ao contrário, qualquer que seja seu ponto de apoio primeiro, exige e suscita um reconhecimento de si mesma, que se deve admitir como homogêneo a ela. O operador "filosofar", de modo semelhante aos operadores idempotentes da álgebra, por mais que seja reiterado, não produz nada diverso de si mesmo.

Propondo-me explicitamente como tema o conhecimento filosófico, não pretendo absolutamente me elevar acima de uma filosofia considerada em primeiro grau e, assim, mais vulgar. Igualmente, nos guardaremos o máximo possível contra a ilusão de legislar, ilusão da qual o autor da presente obra não se considera nem mais nem menos isento que qualquer outro filósofo, até mesmo - si magna licet componere parvis - os maiores. Trata-se, com efeito, não de afirmar o correto ou estabelecer uma regra mas, num certo sentido que será necessário explicar, de descrever. Trata-se, em suma, do problema transcendental invertido. Em vez de perguntar-nos como uma ciência é possível, propomo-nos a reconhecer como uma filosofia pode ser um conhecimento - e, de certo modo, um conhecimento racional - sem contudo, ser uma ciência mas sem cair, também no uso transcendental da razão. Abordar o exercício filosófico a partir desta perspectiva, não é considerar as coisas de cima, mas apenas tomar um dos diversos acessos que se oferecem ao filósofo, em pé de igualdade como todos os outros; embora seja, é verdade, um dos mais dificilmente praticáveis. Sem dúvida, não se pode, como acabamos de dizer, exercitar a filosofia sem que apareça, no fundo, esta preocupação que queremos pôr em evidência, aqui; mas é de explicitá-la que se trata agora, é de seguir suas incidências, torná-la tema principal e não mais acompanhamento do trabalho do pensamento. Para quem está acostumado com os textos das obras científicas, ou com a obra filosófica singular dos grandes filósofos, a tarefa só pode ser empreendida no temor de acumular os insucessos e as insuficiências. Impõe-se contudo a mim, com a promessa de receber dela as satisfações e as amarguras que dá a certeza prévia de uma execução necessariamente imperfeita, mas apaixonante; com o risco, no entanto, de irritar o leitor, esperando despertar sua atenção benevolente.

De resto, o projeto de tratar filosoficamente o conhecimento filosófico não poderia dar lugar a um procedimento esencialmente distinto de qualquer outro ensaio filosófico. Trata-se, em todo caso, de tomar como ponto de partida, e como texto, uma experiência de cultura, uma experiência expressa ou, ao menos, em via de expressão. É seguramente possível apreender os dados que constituem as obras filosóficas como fenômenos, tomados numa circunstância e numa história, produzidos por homens cujos atos, mesmo os de pensamento, acham-se mais ou menos condicionados por um meio muito complexo; em suma, é possível visar construir uma sociologia e uma psicologia, uma história concreta dos fatos filosóficos. Na nossa opinião, tal conhecimento, na medida em que fosse alcançável, seria um conhecimento científico. Mas é claro que nosso propósito, aqui, é radicalmente diferente, sendo precisamente a natureza dessa diferença que constitui o tema da pesquisa. Nós o abordaremos do exterior, por assim dizer, neste preâmbulo, expondo primeiro sumariamente o que o conhecimento filosófico não é.

A filosofia não é uma ciência

Certamente sempre é permitido dar às palavras o sentido que se escolher, sob a condição de deixar isso claro. Nenhuma regra, nem de discurso nem de pensamento, opõe-se a que se atribua o nome de "ciência" ao que os filósofos produzem. Contudo, se se constatasse que nenhum dos caracteres mais marcantes e distintos das outras ciências são reconhecíveis nas obras filosóficas, não haveria mais inconvenientes que vantagens de designá-las com o mesmo nome, exceto se estivéssemos no reino de Alice? A justificação profunda desta unidade de denominação só poderia ser o desejo de expressar uma identidade subjacente, metafísica e não-empírica, das diversas maneiras de aspirar ao conhecimento, que o ser humano manifesta. E nesta perspectiva, a filosofia seria o modo eminente, no sentido escolástico do termo, diferindo das outras ciências como mais científica que qualquer outra. Mas supondo-se que adotemos esta visão hierárquica do conhecimento, permanece o fato de que a mesma palavra só se aplicaria, em todo o caso, de modo homônimo, às formas "inferiores" e à forma "eminente" do saber. Ora, nosso propósito não é o de embaralhar as linhas nem de apagar as diferenças mas, ao contrário, reconhecer, como dizia Wittgenstein, "o duro no mole". Buscaremos pois, mais que reunir e confundir, fazer explodir o paradoxo: como dois produtos do espírito humano, tão profundamente diferentes, como a filosofia e as diversas ciências habitualmente reconhecidas como tais, podem ser consideradas conhecimentos? Digamos previamente em que a filosofia parece-nos distringuir-se irremediavelmente dos outros conhecimentos que têm o nome de ciência.

As ciências visam construir modelos abstratos dos fenômenos.
Elas os representam em "espaços" cada vez mais distanciados do vivido, como estruturas abstratas dos elementos que são possíveis "calcular". Entenda-se que a palavra calcular não implica, aqui, nada que concerna necessariamente a número ou grandeza, mas somente evoca a ideia de operações explicita e univocamente definidas e reguladas. É verdade que as ciências da natureza, para não mencionarmos as ciências do homem, estão longe de responder, na sua totalidade, a esta caracterização ideal. Mas todas a visam e todas se esforçam por aproximar-se dela. A filosofia, ao contrário, nunca chegou a propor verdadeiros modelos dos fenômenos, pela simples razão de que este não pode ser o seu objetivo. Cada vez que o filósofo, cegando-se a respeito de sua própria terefa, quis oferecer uma representação da experiência através de um sistema abstrato de conceitos no qual se desenvolveria um "cálculo", este aspecto de sua investigação terminou num fracasso, certatamente por si mesmo instrutivo. Poder-se-ia reconhecer estas partes mortas da filosofia até nos monumentos mais admiráveis, mesmo quando o gênio do autor as salva.

A filosofia, contrariamente às diversas ciências, também não pretende explicar fatos.
As ciências definem os fatos de que tratam, com maior ou menor rigor, mas sempre de tal modo que seja possível pôr em dúvida, informar ou confirmar o que afirmam, por meio de operações submetidas a um protocolo determinado de regras e usos. Não se poderia, com certeza, exigir das ciências uma definição universal do "fato": o conhecimento científico, por sua natureza, repousa numa determinação específica e, por assim dizer, regional do fato e, em constante evolução, porque a cada momento de sua históira, cada ramo do pensamento científico delimita a classe de fatos que quer explicar com os meios materiais e conceituais dos quais pode dispor. Desta positividade da ciência falaremos mais, ao longo dos próximos capítulos. Deejamos, aqui, sublinhar o contraste, quanto a este ponto, com a perspectiva dos filósofos, para quem a questão: "Que é em geral um fato?" é, ao contrário, um verdadeiro e fundamental problema. Mas a tal interrogação, a resposta não poderia ser dada pelo estabelecimento de um protocolo universal de operações, mesmo que estas fossem de pensamento. Mesmo que que um filósofo chegue a elucidar, a seu modo, a noção de "fato", não terá contudo determinado nenhum fato que pudesse explorar, à maneira do cientista.

Assim, pode-se dizer que a filosofia não tem objeto, por menos que se tenha a preocupação de dar a esta palavra um alcance racionalmente rigoroso, embora bastante amplo, para ser aplicado ao mesmo tempo aos objetos do senso comum e aos objetos da ciência. A crença, geralmente muito difundida, de que a filosofia fala de tudo é perfeitamente correta no fundo: o campo de aplicação de eu exercício é, com efeito, o conjunto da experiência humana. Mas a flosofia não poderia tratar esta experiência como um mosaico de diferentes classes de fatos, que lhe caberia definir e explicar, colocando-se num nível de generalidade superior ao das ciências. Cada vez que os filósofos acreditaram poder representar este papel, especializando-se no universal e superpondo aos conhecimentos terra a terra das ciências um pretenso conhecimento dominante, mas da mesma ordem que o das ciências, ou abandonaram seu projeto neste ponto, lançando as bases de novas ciências, positivas e regionais - como aconteceu de diversos modos com Aristóteles, com Descartes, com Leibniz - ou então, no mais das vezes, esta parte de sua obra reduziu-se a uma reunão mais ou menos harmoniosa e sedutora de trivialidades equívocas. Entre os maiores, sem dúvida, estes monumentos de um conhecimento positivo imaginário são ainda, de modo indireto, portadores de um conteúdo filosófico. Mas é preciso então fazer abstração de sua aparência de representação sintética de um mundo de fatos, para ver aí só a expressão metafórica de uma intenção oculta. Esta intenção oculta que acreditamos que habita toda filosofia, visa organizar não os fatos, mas significações. Tomaremos esta palavra primeiro tal como existe na linguagem, acentuando contudo a oposição, de um lado, do significado e do fato e, de outro, acentuando o apelo a uma experiência global - ao menos virtualmente global que envolve experiências imediatamente vividas como parciais e que a "significação" põe em perspectiva. Mas a tarefa a que nos propomos aqui é justamente a de dar corpo a esta noção ainda confusa, e, se possível, articulá-la. Expressar o que entendemos por conhecimento filosófico é tentar explicitar em conceitos esta articulação sui generis, mostar um trabalho da forma e do conteúdo que seja de uma natureza diversa da do pensamento científico.

De uma outra natureza, sem contudo afastar-se tanto do pensamento científico a ponto de não mais merecer o título de atividade conceitual. Mas então o que é um conceito filosófico? Propor a qualificação conceitual para a obra do filósofo é dar um nome ao problema e não fornecer a sua solução. Em todo caso, se o conhecimento filosófico é irredutível à ciência; sempre nos pareceu que devesse conservar duas características que, sem dúvida, serviram mais ou mentos claramente de pretextos aos que queriam assimilar o conhecimento filosófico a uma ciência: porque ele é analítico e arquitetônico ao mesmo tempo, mas de modo diferente do das ciências, uma vez que seus atos de análise e de construção não se referem a fatos, não visam uma representação abstrata dos fatos e, propriamente falando, não há objetos filosóficos.

Fonte:
Livro: Por Um Conhecimento Filosófico
Autor: Gilles-Gaston Granger
ISBN: 8530800648
Editora Papirus





domingo, 12 de abril de 2009

Foucault no século 21

Vinte e cinco anos após sua morte, as ideias do filósofo francês continuam no cerne das pesquisas em ciências humanas: da psicologia ao direito; da filosofia à educação

Por André Duarte.
Fonte: Site da Revista CULT



Foucault criou os instrumentos teóricos essenciais para refletirmos sobre as
novas formas de biopolítica no século 21



Poucos pensadores exerceram maior impacto sobre as ciências humanas que Michel Foucault. Vinte e cinco anos após sua morte, ocorrida no dia 25 de junho de 1984, o caráter generoso de suas ideias inovadoras se manifesta na renovação do campo de investigação da psicologia, da psiquiatria, da história, do direito, da arquitetura, da filosofia, da sociologia e da educação, entre outras disciplinas. Dos anos 1960 ao começo da década de 1980, Foucault formulou conceitos e abordagens teóricas que descortinaram novos objetos e demoliram velhas questões ao demonstrar que a história não é o palco pelo qual desfilam os mesmos problemas singulares de sempre. Como poucos dentre seus contemporâneos, Foucault soube apropriar-se do projeto nietzscheano de destruição e transvaloração dos valores vigentes, ensinando-nos a desconfiar da herança metafísica incrustada em conceitos supra-históricos como 'o' Homem, 'a' verdade, 'a' natureza, 'o' poder, 'a' razão, 'o' sexo, 'o' corpo, etc.

As marcas de sua genialidade intelectual já se anunciavam em sua primeira grande obra, A história da loucura na idade clássica, publicada em 1961. Abria-se ali o espaço de pesquisas que Foucault denominou como uma arqueologia das ciências humanas, e que culminaria em obras fundamentais como As palavras e as coisas, O nascimento da clínica e Arqueologia do saber. Nelas, o autor empreendeu uma crítica não epistemológica da razão, isto é, um questionamento que não visava avaliar a evolução histórica da cientificidade das ciências, mas trazer à luz os pressupostos profundos que permitiram à modernidade entronizar a razão como critério absoluto a partir do qual se poderia determinar, por exemplo, o ser da loucura. Assim, ao elaborar sua peculiar história da loucura, Foucault abriu mão da ideia de que a relação histórica entre razão e loucura se dera a partir da contínua e gradual conquista das luzes sobre as sombras, roteiro em que a psiquiatria representava a conquista da suposta verdade da loucura enquanto doença mental e a consequente libertação do louco em relação a velhos preconceitos.

Silenciamento da desrazão

Por outro lado, e de maneira mais ambiciosa, Foucault se perguntou como foi que se definiu a moderna decisão que apartou a razão de seu outro, contando-nos uma história na qual o saber psiquiátrico era compreendido como a etapa derradeira de um longo processo de silenciamento da desrazão, cujos primeiros sintomas já se deixariam evidenciar em acontecimentos do século 17 como a instituição do Hospital Geral, o grande internamento e a metafísica de Descartes. Segundo Foucault, Descartes teria excluído a loucura do processo da dúvida metódica que leva à descoberta do cogito, explicitando assim a decisão fundamental da modernidade em opor a ordem da razão à desordem da desrazão: se duvido, penso, e se penso não posso ser louco.

Em As palavras e as coisas, Foucault formulou o polêmico conceito de épistémè. Aludia-se com ele a uma ordem ou princípio de ordenação dos saberes anterior a qualquer enunciado visando o conhecimento, de modo que a épistémè seria a instância arqueológica profunda que tornaria qualquer enunciado possível: tratava-se de nomear o solo fundamental que conferiria legitimidade e positividade ao saber de cada época. Em outras palavras, Foucault não se propunha a fazer uma história das ciências ou uma história das ideias, mas procurava descrever a configuração e as transformações históricas das diferentes épistémès, as quais marcariam diferentes possibilidades de pensamento e conhecimento, sem qualquer linearidade progressiva na passagem de uma épistémè a outra. Subjacente a toda cultura e, portanto, a toda forma de conhecimento, Foucault detectava a existência de uma ordem, de um espaço de identidades, de similitudes e de analogias por meio das quais classificamos e distribuímos os objetos do conhecimento. A obra era polêmica e despertou grande interesse e muitas críticas, pois Foucault foi acusado de hipostasiar a história e a práxis humana por detrás da ação silenciosa de estruturas anônimas.


Foucault descobriu que os micro-poderes disciplinares exerciam seus efeitos
discretos sobre os indivíduos, visando transformar os corpos em "dóceis e úteis"


Saber-poder-verdade


Em 1970, Foucault foi eleito para o prestigioso Collège de France e sua aula inaugural, A ordem do discurso, sinalizou uma virada em suas reflexões. Por certo, a política não estivera ausente das pesquisas arqueológicas, como testemunha seu acirrado embate com Sartre, a fenomenologia francesa e com os marxistas. Entretanto, agora Foucault não mais se contentava em avaliar as condições arqueológicas de ordenação dos enunciados, mas começava a interrogar os sistemas de exclusão e rarefação que envolvem toda enunciação discursiva. Sob forte inspiração nietzscheana, Foucault passava a questionar certas figuras histórico-políticas da vontade de verdade e da vontade de saber que permearam a história ocidental, perguntando-se, então, quem pode dizer algo e sob quais condições institucionais. Iniciava-se assim o período de suas investigações genealógicas, centradas no questionamento específico das relações intrínsecas entre saber-poder-verdade. Foucault insistirá em que não há verdade fora do poder ou sem o poder, pois toda verdade gera efeitos de poder e todo poder se ampara e se justifica em saberes considerados verdadeiros.

Nas pesquisas genealógicas dos anos 1970, Foucault analisou a constituição histórica das relações de poder em seu caráter produtivo e eficaz em obras fundamentais como Vigiar e punir e o volume I da História da sexualidade. Nelas, ele questionou a concepção filosófica moderna do sujeito constituinte e substituiu-a pela concepção de que o sujeito é constituído historicamente, simultaneamente à constituição das práticas e dos discursos que se multiplicaram nas diversas instituições sociais nascentes a partir do século 17, tais como a escola, o hospital, o quartel, as fábricas.

Quanto à análise das relações de poder, observava-se uma dupla inovação: por um lado, Foucault desviava os olhos da relação jurídica entre o Estado e o cidadão para lançar seu olhar microscópico sobre as múltiplas relações de poder presentes nas instituições sociais nas quais se forjou o indivíduo disciplinado e normalizado. Por outro lado, fugindo à tópica do poder repressor, Foucault descobriu que os micro-poderes disciplinares exerciam seus efeitos positivos e discretos sobre o corpo dos indivíduos visando transformá-lo num corpo dócil e útil, segundo a conhecida fórmula de Vigiar e punir. Com as pesquisas genealógicas, Foucault se propôs a investigar como se produziu o indivíduo moderno, o sujeito sujeitado e disciplinado em seus gestos, comportamentos, discursos, etc.

Biopolítica

Se o ponto de partida da genealogia foucaultiana do poder foi a descoberta dos micro-poderes disciplinares que visavam à administração do corpo individual, seu ponto de chegada foi a descoberta do biopoder e da biopolítica. Tratava-se de uma nova forma de exercício do poder soberano, nascente na passagem do século 18 para o 19, cujo alvo não era mais a produção do indivíduo dócil e útil, mas a gestão calculada da vida da população de um determinado corpo social. Foucault chegou à descoberta do biopoder ao analisar o que chamou, em História da sexualidade, de dispositivo da sexualidade, isto é, a sexualidade como o produto de discursos científicos e morais pautados pela vontade de saber, pelo ideal de normalidade e pela obsessão em esconjurar e escrutinar a anormalidade. Foucault descobriu que o sexo não era apenas a matriz privilegiada para o exercício dos poderes disciplinares, pois também constituía o foco por excelência para o gerenciamento planificado de fenômenos populacionais como as taxas de nascimento e mortalidade, as condições sanitárias das cidades, os índices de contaminação, etc.

A partir do século 19, interessava ao novo poder estatal estabelecer políticas higienistas por meio das quais se poderia sanear o corpo da população, depurando-o de suas infecções internas. Novamente se evidencia a genialidade de Foucault: ali onde nossa consciência iluminista nos levaria a louvar o caráter humanitário de intervenções políticas visando incentivar, proteger, estimular e administrar as condições vitais da população, Foucault descobriu o elo fatal entre higienismo, eugenia, racismo e genocídio. Em uma palavra, ele compreendeu que a partir do momento em que a vida passou a se constituir no elemento político por excelência, tal cuidado político da vida trouxe consigo a exigência contínua e crescente da morte em massa, pois é apenas no contraponto da violência depuradora que se podem garantir mais e melhores meios de sobrevivência a uma dada população. Eis, portanto, o motivo pelo qual o século 20 pôde testemunhar o advento do nazismo e do stalinismo, para não mencionar os inúmeros casos em que democracias liberais valeram-se do racismo e do extermínio para lidar com suas 'enfermidades' e 'patologias' sociais.

O conceito de biopolítica é um dos principais legados teóricos de Foucault, tendo sido retomado e revisado pela reflexão de Giorgio Agamben ( leia artigo neste dossiê), Roberto Esposito, François Ewald, Michel Sennelart, Michael Hardt e Antonio Negri, dentre outros. Com ele, Foucault não apenas nos ofereceu uma ferramenta para pensar os fenômenos extremos do nazismo e do stalinismo, como também nos concedeu um importante instrumento para pensar as novas formas biopolíticas de controle neoliberal de populações. Em Nascimento da biopolítica, curso de 1979, Foucault já indicava que o mercado competitivo tornar-se-ia a instância da produção de uma nova figura subjetiva, aquela que procura responder da melhor maneira possível às exigências e demandas variadas do próprio mercado econômico, tornando-se, para tanto, um empreendedor de si mesmo. Com muita perspicácia, Foucault compreendeu que o mercado das sociedades empresariais seria o lugar privilegiado ao qual nos reportaríamos a fim de nos tornarmos agentes econômicos competitivos. A profecia parece ter se cumprido, pois cada vez mais tornamo-nos presas voluntárias de processos de individuação e subjetivação controlados flexivelmente pelo mercado e seus ideais normativos.

Leia mais sobre o dossiê A herança de Michel Foucault na edição de abril da revista CULT.

Entre o elogio e a crítica, por Ernani Chaves
Fala dos confins, por Peter Pál Pelbart
Pensar a educação depois de Foucault, por Maria Rita de Assis César
A época da norma, por Márcio Alves da Fonseca
A herança em Giorgio Ágamben, por Cláudio Oliveira

terça-feira, 7 de abril de 2009

Ilya Prigogine

Os movimentos de um universo pluralista

Ilya Prigogine, ganhador do Prêmio Nobel de Química de 1977, em artigo publicado no jornal Il Manifesto, 26-03-2009, analisa o significado da realidade, que, segundo ele, não pode ser dissociado do significado do tempo. "Para nós, o tempo e a humana existência, e, por conseguinte também a realidade, são conceitos indissociáveis. Mas, é necessário que seja assim?", questiona Prigogine. A tradução é de Benno Dischinger.
Fonte: UNISINOS



Graças às descobertas mais recentes, a matéria não nos aparece como passiva, como queria a visão mecanicista do mundo, mas está associada à atividade espontânea. Uma mudança tão profunda que faz pensar num novo diálogo entre homem e natureza. Uma antecipação da “Carta Internacional”.

Certa vez, o jovem Werner Heisenberg foi fazer uma excursão com Niels Bohr. O que segue é o conto daquilo que Bohr disse quando chegaram ao Castelo de Kronberg: “Não é estranho o modo como muda este castelo ao imaginarmos que Hamlet viveu aqui? Como cientistas pensamos que um castelo seja feito somente de pedras e admiramos o modo pelo qual o arquiteto as conectou. As pedras, o teto com seu musgo verde, as incisões em madeira da igreja: tudo isto constitui o castelo. Nada disto pode ser mudado pelo fato de que Hamlet vivesse neste lugar – e, no entanto, tudo é diverso. De improviso, os muros e os bastiões falam uma linguagem diversa... No entanto, tudo o que sabemos de Hamlet é que seu nome aparece numa crônica do século treze... Mas, todos conhecemos as grandes questões que Shakespeare lhe pôs na boca, os abismos humanos que teria revelado, e, por isso, também ele devia encontrar um lugar sobre esta terra – aqui, em Kronberg”.

Na base do mundo mecânico

Naturalmente, esta história nos conduz a um problema que é tão antigo quanto a própria humanidade: o significado da realidade. E isso não pode ser dissociado de outro: o significado do tempo. Para nós, o tempo e a humana existência, e, por conseguinte também a realidade, são conceitos indissociáveis. Mas, é necessário que seja assim? Cito uma troca epistolar entre Einstein e seu velho amigo Besso. Nos últimos anos, Besso retornava com muita freqüência sobre o tema do tempo. O que é o tempo? O que é a irreversibilidade? Pacientemente Einstein respondia sempre: a irreversibilidade é uma ilusão, uma impressão subjetiva que deriva de condições iniciais excepcionais. A morte de Besso poucos meses antes da de Einstein, teria interrompido aquela correspondência. Na morte do amigo, numa carta comovente à irmã de Besso e ao filho, Einstein escrevia: “Miguel deixou este estranho mundo, precedendo-me um pouco. Não é importante. Para nós, físicos convictos, a distinção entre passado, presente e futuro é somente uma ilusão, embora persistente”. Somente uma ilusão. Devo confessar que esta frase me atingiu profundamente. Parece-me que ela exprime de maneira extraordinariamente eficaz o poder simbólico da mente.

De fato, em sua carta a Besso, Einstein reiterava o que Giordano Bruno escrevera no século dezesseis e que se tornou o credo da ciência: “È, pois, o universo uno, infinito, imóvel. Una, digo, é a possibilidade absoluta, uno o ato, una a forma ou alma, una a matéria ou corpo, una a coisa, uno o ente, uno o máximo e ótimo; o qual não deve poder ser compreendido; e, no entanto, infindável e interminável, e, portanto, infinito e interminado e, por consequência, imóvel”. Por longo tempo, a visão de Giordano Bruno teria dominado a visão do mundo ocidental. E teria conduzido ao mundo mecânico com os seus dois elementos de base: as substâncias imutáveis como os átomos, as moléculas ou as partículas elementares e o movimento. É verdade, com a teoria dos quanta, intervieram muitas mudanças: todavia, as características de fundo desta concepção permanecem inalteradas. Mas, como compreender a natureza sem tempo que põe o homem fora da realidade que ele descreve? (...)

Em "Cemitério marinho", Paul Valéry descreve a luta do homem para entender-se com o tempo enquanto duração, com seu arco limitado aberto sobre nós. Nos Cadernos – aqueles numerosos volumes de apontamentos que escrevia ao amanhecer – retorna sempre e de novo sobre o problema do tempo: “Duração, ciência a construir-se”. Em Valéry há um senso profundo do inesperado. É verdade, ele não podia contentar-se com um determinismo universal que pressupõe, em certo sentido, que tudo está dado. Escreve Valéry: “O determinismo – sutil antropomorfismo – diz que tudo acontece como numa máquina, do modo como posso compreendê-la. Mas, cada lei mecânica é no fundo irracional – experimental... O sentido da palavra determinismo é tão vago quanto o da palavra liberdade... O determinismo rigoroso é profundamente deísta. Porque precisaríamos de um deus para perceber este encadeamento infinito completo. É preciso imaginar um deus, uma face divina para imaginar esta lógica. É um ponto de vista divino. De modo que o deus, subtraído à criação e à invenção do universo, é restituído para a compreensão deste universo. Quer se queira ou não, um deus é colocado necessariamente no pensamento do determinismo – e é uma rigorosa ironia”.

A herança do século dezenove

Valéry faz uma observação muito importante: o determinismo é possível somente para um observador colocado fora de seu mundo – enquanto nós descrevemos o mundo a partir do interior. O tema do tempo não é um fenômeno isolado na primeira parte do século vinte: podemos citar aleatoriamente, além de Valéry, Proust, Bergson, Teilhard, Freud, Peirce ou Whitehead. Como temos dito, o veredicto da ciência é definitivo: o tempo é uma ilusão. No entanto, como é possível? Estamos verdadeiramente constrangidos a escolher entre uma realidade sem tempo, que conduz à alienação humana, e uma afirmação do tempo que parece romper com a racionalidade científica?

A maior parte da filosofia européia de Kant a Whitehead aparece como uma tentativa de superar de qualquer modo a necessidade desta escolha. A distinção kantiana entre mundo numênico e mundo fenomênico era um passo nesta direção, como também a idéia de Whitehead de filosofia do processo. Nenhuma destas tentativas teve grande sucesso e o resultado é a progressiva decadência da “filosofia da natureza”. Concordo plenamente com Leclerc quando ele escreve: “Neste século sofremos as conseqüências da separação entre ciência e filosofia, que se seguiu ao triunfo da física newtoniana do século dezessete. E não é somente o diálogo entre ciência e filosofia que sofreu”. Eis uma das origens da dicotomia entre as duas “culturas”. Existe uma oposição irredutível entre a razão clássica com sua visão não-temporal e nossa existência com sua visão do tempo bem representada pela pirueta que Nabokov descreve em "Olha os arlequins". Mas, na ciência está acontecendo algo dramático – uma coisa tão inesperada quanto o nascimento da geometria, ou quanto a visão grandiosa do cosmo, como foi expressa na obra de Newton. Tornamo-nos progressivamente sempre mais cônscios do fato de que, em todos os níveis, das partículas elementares até a cosmologia, a ciência está redescobrindo o tempo.

Um diálogo entre ciências naturais e ciências humanas, incluindo as artes e a literatura, pode ser um novo início e talvez desenvolver-se em algo frutuoso, como foi na Grécia clássica ou durante o século dezessete com Newton e Leibniz. Para compreender as mudanças do nosso tempo, pode ser útil partir da herança científica do século dezenove. Esta herança inclui duas contradições fundamentais, às quais não tem sido dada nenhuma resposta. O século dezenove foi essencialmente o século da evolução. Pense-se no trabalho de Darwin no campo biológico, de Hegel em filosofia ou na formulação da famosa lei da entropia em física.

Comecemos por Darwin. À parte a importância de "A origem das espécies", publicado em 1859, há um elemento geral da concepção darwiniana que quero sublinhar: a idéia de flutuações espontâneas nas espécies biológicas que, através da seleção, conduzem a uma evolução biológica irreversível. Seu modelo conjuga, portanto, dois elementos: a idéia de flutuação, de casualidade, de processo estocástico, e a idéia de evolução, de irreversibilidade. Digamos imediatamente que, do ponto de vista biológico, esta idéia conduz a uma evolução que corresponde a uma crescente complexidade, à auto-organização.

Isto está em aberto contraste com o significado que geralmente é associado à lei do aumento entrópico, do modo como foi formulada por Clausius em 1865. O elemento fundamental desta lei é a distinção entre processos reversíveis e irreversíveis. Os processos reversíveis não conhecem nenhuma direção privilegiada no tempo. De outro lado, os processos irreversíveis implicam uma flecha do tempo. Tal distinção é retomada na formulação da segunda lei da termodinâmica que postula a existência de uma função, a entropia, a qual num sistema isolado pode apenas aumentar a causa da presença de processos irreversíveis, permanecendo, ao invés, inalterada no caso de processos reversíveis. Por conseguinte, num sistema isolado, quando o sistema chega ao equilíbrio e os processos irreversíveis chegam a uma conclusão final, a entropia atinge seu máximo.

Probabilidade e irreversibilidade

Um dos maiores físicos teóricos de todos os tempos, Ludwig Boltzmann, foi quem deu a primeira interpretação microscópica do aumento da entropia. Ele se dedicou à teoria cinética do gás com a idéia de que o mecanismo da mudança, da evolução, deva ser descrito em termos de colisões entre moléculas. Sua descoberta mais importante foi que a entropia está estreitamente coligada à probabilidade. De novo, como em Darwin, evolução, probabilidade e casualidade estão estreitamente conexas. No entanto, o resultado de Boltzmann contradiz o de Darwin. A probabilidade chega ao seu máximo quando é atingida a uniformidade. Pense-se num sistema de duas caixinhas que comunicam através de um furinho. Obviamente, o equilíbrio será atingido quando o número de partículas nas duas caixas for o mesmo. Portanto, a aproximação ao equilíbrio corresponde à destruição das condições iniciais, ao esquecimento das estruturas iniciais, em oposição a Darwin, para o qual evolução significa criação de novas estruturas. Assim chegamos à primeira questão, à primeira contradição que herdamos do século dezenove: como podem Boltzmann e Darwin ter ambos razão? Como podemos descrever, de um lado, a destruição das estruturas e, do outro, os processos que comportam a auto-organização? No entanto, ambos os processos usam elementos comuns: a idéia de probabilidade (expressa, na teoria de Boltzmann, em termos de colisão entre partículas) e a irreversibilidade, que emerge como resultado da descrição probabilista.

Mas, antes de explicar de que modo Boltzmann e Darwin tenham ambos razão, analisemos a segunda contradição. As problemáticas que enfrentamos agora são muito mais profundas do que a oposição entre Boltzmann e Darwin. O protótipo da física clássica é a mecânica clássica, o estudo do movimento, a descrição das trajetórias que conduzem um ponto da posição A à posição B. Os dois traços fundamentais da descrição dinâmica são o seu caráter determinista e o reversível. Uma vez indicadas as condições iniciais, podemos predizer rigorosamente a trajetória. Portanto, em nível dinâmico, parece não haver lugar para a causalidade ou para a irreversibilidade. De certo modo, a situação permanece idêntica na teoria dos quanta, onde falamos de função de onda e não de trajetórias. De novo, a função de onda evolui segundo a lei determinista reversível.

Um novo diálogo entre homem e natureza

Consequentemente, o universo aparece como um grande autômato. Já dissemos que, para Einstein, o tempo no sentido de tempo direcional, de irreversibilidade, era uma ilusão. Geralmente, como afirmam muitos livros e publicações, o comportamento clássico ante o tempo tem sido uma espécie de desconfiança. Num universo ambidestro, Martin Gardner escreve que a segunda lei da termodinâmica só torna certos processos improváveis, mas jamais impossíveis. Em outras palavras, a lei do aumento da entropia só se refere a uma dificuldade prática, sem nenhum fundamento profundo.

Analogamente, em "O acaso e a necessidade", Jacques Monod exprime a idéia de que a vida seja apenas um acidente na história da natureza. É uma espécie de flutuação que, por razões não muito claras, está em condições de se manter. É certo que, qualquer que seja nossa compreensão de problemas tão complexos, nosso universo tem um caráter pluralista. As estruturas podem desaparecer como num processo de difusão, mas também podem nascer como em biologia e, de modo ainda mais visível, nos processos sociais. Alguns fenômenos são bem descritos por equações deterministas, como no caso dos movimentos planetários; mas alguns outros, como a evolução biológica, podem comportar processos estocásticos. Mesmo o cientista mais convicto da validez das descrições deterministas hesitaria em afirmar que no momento do Big Bang a data desta minha conferência já teria estado inscrita nas leis da natureza.

Vivemos num único universo. Começamos a ver que a irreversibilidade e a vida estão inscritas nas leis fundamentais, também em nível microscópico. Além disso, a importância que atribuímos aos vários fenômenos que podemos observar e descrever é muito diversa, para não dizer oposta, de quanto sugeria a física clássica, para a qual os processos eram deterministas e reversíveis. Os processos que implicavam causalidade ou irreversibilidade eram considerados exceções, meros artefatos. Hoje, por toda parte vemos em ação processos irreversíveis, de flutuação. Os modelos considerados pela física clássica são para nós limitados a situações que podemos criar artificialmente, por exemplo, pondo certa quantidade de matéria numa caixinha e esperando que ela atinja o equilíbrio.

O artificial pode ser determinístico e reversível. O natural contém elementos essenciais de casualidade e de irreversibilidade. Isto conduz a uma visão da matéria na qual ela não é mais passiva, como afirmava a velha visão mecanicista do mundo, mas está associada à atividade espontânea. Esta mudança é tão profunda que creio que se possa verdadeiramente falar de um novo diálogo entre o homem e a natureza. (...)

Se tivéssemos solicitado a um físico, somente poucos anos atrás, o que a física está em condições de explicar e o que deixa em aberto, provavelmente teríamos podido ouvir responder que obviamente não conhecemos suficientemente as partículas elementares ou as características cosmológicas do universo em seu todo, mas entre estes dois extremos os nossos conhecimentos são bastante satisfatórios. Hoje, uma minoria crescente (à qual também eu pertenço) não compartilharia de um comportamento tão otimista. Pessoalmente estou persuadido que apenas nos encontramos no início de uma compreensão mais profunda da natureza em torno de nós, e isso me parece ser de enorme importância para incluir a vida na matéria e o homem na vida. (...)

* * * * *

Um estudioso da complexidade entre química, física e ecologia Muito conhecido por suas teorias referentes à termodinâmica aplicada aos sistemas complexos (que lhe valeram o Nobel em Química em 1977), Ilya Prigogine nasceu em Moscou em 1917, mas transcorreu grande parte de sua vida em Bruxelas, onde faleceu em 2003, após ter sido diretor do centro de mecânica estatística na Universidade do Texas em Austin, e um dos fundadores do Center for Complex Quantum Systems. O texto, do qual vos propomos amplos excertos nesta página, faz parte de um dossiê que o último número de “Lettera Internazionale” (www.letterainternazionale.it), a sair nas livrarias nos próximos dias, dedica ao tempo e que compreende também escritos de Jerome K. Jerome e André Malraux. A revista dedica, além disso, um dossiê ao “Economia-Pianeta”, no qual intervêm entre outros Serge Latouche, Wolfgang Sachs, Muhammad Yunus, Amitav Ghosh.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Gianni Vattimo

O poder que extingue a caridade


O filósofo italiano Gianni Vattimo analisa os recentes fatos que envolvem a morte de Eluana Englaro em artigo para o jornal La Stampa, 11-02-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Fonte: UNISINOS



Mas quem exerceu um pouco de caridade cristã com relação a Eluana Englaro? Os fiéis que se reuniam nas igrejas e nas praças para esconjurar o "assassinato", ou o pai, que, apoiado por pronunciamentos judiciários precisos, queria ajudá-la a interromper o sofrimento inútil do qual era prisioneira?

É verdade, não havia um documento escrito de seu punho, no qual ela expressasse o desejo de que deixassem-na morrer. Até porque, na Itália, nunca se pôde discutir de verdade sobre testamento biológico, por responsabilidade precípua daquela Igreja que dizia querer defender a sua vida. Mas, na falta do documento, os tutores “naturais”, a família, mereciam ser escutados. Certamente, não tinham nenhum interesse em deixá-la morrer, a menos que se considere interesse o desejo de não vê-la sofrer mais e de não deixá-la reduzir-se a uma larva. (E a menos que compartilhem da suspeita obscena de que o pai queria libertar-se de um fardo incômodo).

Por que mantê-la viva a todo o curto? O direito à vida não pode ser puramente direito à sobrevivência biológica: respiração, processos digestivos, funções vegetativas. Ciência e consciência dos médicos que a seguiam há 17 anos concordavam que não havia esperança de recuperação, portanto, sobreviver não podia ter o sentido de espera de uma cura. Não é, porém, vida vegetativa aquela da qual a tradição cristã ou também o bom senso humano falam. "Propter vitam vivendi perdere causas?" Apenas para sobreviver, renunciar à própria razão da vida? Os mártires cristãos aceitavam a morte para não renegar a fé. Pecavam contra a vida? E os grandes suicidas da tradição clássica que preferiam a morte à escravidão seriam condenáveis? Também quem crê que a vida é “um dom de Deus” não pode não pensar que se trata de aceitar e gerir isso em plena liberdade.

Mas se Eluana tivesse escrito esse testamento biológico que ainda não existe nas nossas leis, poderíamos, como cristãos, respeitar a sua escolha? Pelo que se viu nesses dias, a Igreja não admitiria nunca que alguém pudesse pedir para ser deixado morrer, com a suspensão de alimentação e hidratação – que, descobriu-se agora no Vaticano e arredores, não são terapias (que o paciente pode recusar), mas formas de assistência elementar à vida.

Estão em jogo valores "indisponíveis", questões de princípio. Justamente aqueles que pretenderam legitimar, durante os séculos, tantos delitos eclesiásticos contra a caridade: as fogueiras das bruxas, dos hereges, dos livre-pensadores. É verdade que não se pode admitir que uma pessoa decida se a própria vida é ainda digna de ser vivida ou não? Se nos colocamos essa simples pergunta, vemos como, por trás da questão de princípio (a vida é um bem indisponível), esconde-se uma questão puramente de poder e especificamente de poder eclesiástico: nenhum de nós é capaz de conhecer o próprio bem “verdadeiro”, só a Igreja. E o poder, a história ensina, é conservado com a força e o temor.

Não é totalmente inverossímil que a Igreja, consciente de não dominar mais as consciências com o temor do Inferno, antecipa aquelas penas ao momento do morrer. Hoje que a ciência-técnica pode prolongar a sobrevivência vegetativa ao infinito, tememos, muito mais do que o Inferno, o fato de sermos mantidos em vida em um estado larval, talvez até com dores e sofrimento, pelo menos psicológico (a dor é sempre “redentora”, e “nenhuma lágrima é perdida”, diz o Papa).

É sobre esse terror que a Igreja não quer perder o seu domínio. Também aqueles entre nós, que, como eu, estão convencidos da necessidade da existência da Igreja para transmitir o Evangelho, não se sentem mais dispostos a aceitar por isso, o escândalo das questões de princípio invocadas por pura aspiração ao poder. É verdade, talvez, que, “se quer destruir alguém, Deus o enlouquece primeiro”?

Procurar ser caridosos com Eluana e com todos aqueles que querem poder decidir sobre a própria vida é também um modo de ajudar a Igreja a não se destruir por delírio de onipotência.

Jürgen Habermas

A terceira via entre laicismo e radicalismo religioso


Jürgen Habermas, filósofo alemão, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 19-07-2008.
Fonte: UNISINOS



Os multiculturalistas lutam para adequar respeitosamente o sistema jurídico às pretensões de tratamento igual, avançadas pelas minorias religiosas. Eles põem em guarda sobre os perigos da assimilação forçada e do desenraizamento. O estado laico não deve integrar as minorias no igualitarismo cívico de maneira tão drástica que erradique os indivíduos singulares dos seus contextos identitários. Vista nesta perspectiva comunitarista, uma política de integração abstrata corre o risco de sujeitar as minorias aos imperativos da cultura majoritária. Por exemplo, Timothy Garton Ash sublinha o fato de que há “também mulheres muçulmanas que recusam a maneira com que Hirsi Ali atribui ao islamismo em geral – e não às culturas nacionais, regionais e tribais em particular – a responsabilidade de sua opressão”. E efetivamente, os imigrantes muçulmanos serão integráveis na sociedade ocidental, não a despeito de sua religião, mas somente em harmonia com ela.

Em outra vertente, os secularistas lutam por uma inclusão ‘color-blind’, culturalmente daltônica, de todos os cidadãos, prescindindo de sua origem cultural e de sua pertença religiosa. Este partido põe em guarda sobre as conseqüências de uma política identitária que “dobre” excessivamente o sistema jurídico às exigências específicas das minorias culturais. Nesta perspectiva laicista, a religião deve permanecer como uma questão exclusivamente privada.

Ambas as partes buscam o mesmo objetivo: a convivência civil de cidadãos autônomos no quadro de uma sociedade liberal. Eles se enfrentam, todavia, na disputa de um ‘Kulturkampf’, de um conflito cultural que se reacende a cada provocação.

Embora a interação recíproca dos dois aspectos seja evidente, ambas as partes continuam discutindo se a tutela da identidade cultural deva preceder as garantias da inclusão cívica, ou vice-versa. O tom estrídulo da polêmica deriva das premissas filosóficas que os adversários - com ou sem razão – se atribuem reciprocamente. Ian Buruma observou justamente como após o 11 de setembro de 2001 a disputa, antes somente acadêmica, sobre iluminismo e anti-iluminismo, modernidade e pós-modernidade, tenha surgido das salas universitárias para entrar nas praças. Na realidade, são antes as problemáticas convicções remanescentes que fomentam a disputa: de um lado, um relativismo cultural maquiado de maneira pós-moderna, e do outro lado um laicismo anti-religioso e démodé.

Não é aqui o caso de retornar à incoerência filosófica da crítica-da-razão propugnada pelo relativismo cultural pós-moderno. Trata-se, todavia, de uma posição interessante também por outro motivo. Ela nos ilumina sobre os verdadeiros motivos de certos vira-casacas que passaram da esquerda à direita. Diante do terrorismo islâmico, certos “multiculturalistas” de sistema se transformaram rapidamente em falcões belicistas e acabaram por aliar-se inesperadamente aos “fundamentalistas do iluminismo” de tipo neoconservador.

Evidentemente, na luta contra o islamismo, estes convertidos continuaram vendo no iluminismo aquela mesma “ideologia ocidental” que eles já combatiam anteriormente, julgando-a carente de dimensão universalista. “O iluminismo tornou-se agora de moda, enquanto os seus valores não são somente universais, mas são também valores nossos, ou seja, da Europa e do Ocidente”.

Na visão do laicismo radical pouco importa o realce sociológico que registra, até mesmo nas sociedades secularizadas do Ocidente, o novo papel da religião na formação política da opinião e da vontade. Embora se aceite, por vezes, como empiricamente correta a qualificação de “pós-secular” referida às sociedades da Europa ocidental, é possível ficar filosoficamente convencido que as religiões devam sua ininterrupta influência à obstinada sobrevivência de formas pré-modernas do pensamento (uma sobrevivência que deveria depois ser explicada no plano sociológico). Do ponto de vista dos laicistas, em suma, os conteúdos de fé são, em todo o caso, cientificamente desacreditados. E, precisamente este comportamento científico os impele a polemizarem com vivacidade contra as tradições, pessoas e organizações religiosas que pretendem fazer valer um significado público a elas inerente.

Gostaria, aqui, de fazer uma distinção entre laico e laicista. A pessoa laica ou não crente se comporta com indiferença agnóstica perante as pretensões religiosas válidas. Ao invés disso, ante doutrinas religiosas que conservam relevância pública prescindindo de sua falta de fundamentação científica, os laicistas assumem uma conduta polêmica. Hoje o laicismo se apóia com freqüência num naturalismo ‘hard’, duro, isto é, fundado sobre assuntos científicos. Diversamente do caso do relativismo cultural, não preciso aqui discutir os pressupostos filosóficos que estão por trás. Neste contexto, interessa-me antes perguntar-me se uma desvaloração laicista da religião, que fosse, na hipótese, compartilhada um dia pela grande maioria dos cidadãos laicos, seria ainda conciliável com o balanço pós-secular de “igualdade cívica” e “diferença cultural”. Em outros termos, pergunto-me se uma hipotética mentalidade laicista da grande massa dos cidadãos não acabaria por ser – com o fito da autocompreensão normativa de uma sociedade pós-secular – tão pouco desejada quanto uma deriva fundamentalista dos cidadãos crentes.

Quem sabe se não ocorreria um processo de aprendizagem – além da vertente do tradicionalismo religioso – também na própria vertente do secularismo? As próprias expectativas normativas que governam a inclusão democrática não nos impedem, talvez, de desacreditar laicisticamente a religião, da mesma forma como nos impedem de aceitar, por exemplo, a disparidade religiosa entre o homem e a mulher? Em todo caso, um processo complementar de aprendizagem na vertente do secularismo se torna necessário no próprio momento em que, ante a concorrência das visões religiosas do mundo, não se interprete mais o secularismo do estado como uma mera exclusão das contribuições religiosas da esfera política pública.

É oportuno que o Estado democrático não reduza preventivamente a complexidade polifônica das diversas vozes públicas, enquanto ele não pode mais saber se, assim fazendo, não esteja privando a sociedade de recursos úteis à fundamentação do sentido e da identidade. Com referência, sobretudo, a setores vulneráveis da convivência social, as tradições religiosas dispõem da capacidade de articular de maneira convincente sensibilidades morais e intuições solidaristas.

A esta altura, o que complica o secularismo é a expectativa pela qual os cidadãos laicos deveriam confrontar-se com os seus concidadãos religiosos – na sociedade civil e na esfera política pública – levando a sério sua fé num pé de perfeita paridade. Se, ao encontrar os concidadãos religiosos, os laicos devessem pensar não poder levá-los a sério como contemporâneos da modernidade devido ao seu comportamento religioso, então se recairia no plano de um mero modus vivendi e se perderia aquela base de mútuo reconhecimento que é constitutiva da cidadania. Por isso, os laicos não devem excluir a priori a possibilidade de descobrir, nas contribuições religiosas, conteúdos semânticos – e em alguns casos até precisas intuições não expressas – que são suscetíveis de serem utilmente traduzidas no plano da argumentação pública.

Gianni Vattimo

A religião é inimiga da civilização?

O filósofo e político italiano Gianni Vattimo, em artigo para o jornal El País, 01-03-2009, afirma que, no mundo atual, as Igrejas se converteram em um fator de conflito e um obstáculo para a “salvação”, seja isso o que for. Sobrevivem porque suas hierarquias querem conservar o poder e seus privilégios.
Fonte: UNISINOS


Todos certamente nos lembramos da famosa frase de Nietzsche sobre a morte de Deus. E também sua cláusula: Deus seguirá projetando sua sombra em nosso mundo durante muito tempo. O que aconteceria se aplicássemos a frase de Nietzsche também, e sobretudo, às religiões? Em muitos sentidos, é verdade que, em grande parte do mundo contemporâneo, a religião como tal está morta, mas ainda projeta suas sombras em numerosos aspectos da nossa vida privada e coletiva.

Na verdade, deixemos claro que o Deus cuja morte Nietzsche anunciou não é necessariamente o Deus em que muitos de nós seguimos crendo. Eu me considero cristão, mas estou convicto de que o Deus que estava morto em Nietzsche não era o Deus de Jesus. Inclusive acredito que, precisamente graças a Jesus, sou ateu. O Deus que morreu, como diz o próprio Nietzsche em algum lugar de sua obra quando o chama de “Deus moral”, é o primeiro princípio da metafísica clássica, a entidade suprema que se supõe ser a causa do universo material e que requer essa disciplina especial chamada teodicéia, uma série de argumentos que tratam de justificar a existência desse Deus ou dessa Deusa frente aos males que vemos constantemente no mundo.

A tese que quero apresentar aqui é que as religiões estão mortas e merecem estar mortas, tal como Nietzsche fala da morte de Deus. Não estão mortas só as religiões morais, no sentido mais óbvio da palavra: dentro da sociedade cristã e católica da Europa, é fácil ver que são muito poucos os que observam os mandamentos da moral cristã oficial. O que está morto, em um sentido mais profundo, são as religiões “morais” como garantia da ordem racional do mundo.

A institucionalização das crenças, que deu origem às Igrejas, incluiu (não sei se só na prática ou como fator necessário) uma reivindicação do poder histórico, no sentido de que era quase natural e necessário que uma religião moral se convertesse em uma instituição temporal poderosa. É o que parece ter ocorrido com o catolicismo, mas se podem ver muitos outros fenômenos semelhantes na história de outras religiões. Inclusive o budismo gerou um Estado, o Tibet dos lamas, que agora luta para sobreviver frente à China.

Em todas as partes – por exemplo no hinduísmo –, o mesmo fato de que existia uma diferença entre clérigos e leigos faz com que a religião se converta em uma instituição, cujo objetivo principal é sempre a sua própria sobrevivência. Mencionarei novamente o exemplo da Igreja católica: se não tivesse sobrevivido ao longo dos tempos, eu não teria podido receber o Evangelho, a boa nova da salvação. Uma vez mais: como no caso da morte de Deus de Nietzsche, a morte das religiões institucionalizadas não significa que tenham legitimidade. Simplesmente, chega um momento em que já não são necessárias. E esse momento é a nossa época, porque, como se pode ver em muitos aspectos da vida atual, as religiões já não contribuem com uma existência humana pacífica nem representam um meio de salvação. A religião é um poderoso fator de conflito em momentos de intercâmbio intenso entre mundos culturais diferentes. Pelo menos, é isso que ocorre hoje: na Itália, por exemplo, existe um problema com a construção de mesquitas, porque a população muçulmana aumentou de forma espetacular. A hegemonia tradicional da Igreja católica está em perigo, mas os católicos não se sentem ameaçados em absoluto por essa situação, só os bispos e o Papa.

A Igreja afirma que defende seu poder (e os aspectos econômicos dele) para preservar sua capacidade de pregar o Evangelho. Sim, mas, como entre tantas instituições, a razão suprema de sua existência fica muitas vezes esquecida em troca da mera continuidade do status quo. O que quero dizer é que, no mundo atual, sobretudo no Ocidente industrial, a religião como instituição se converteu em um fator de conflito e um obstáculo para a “salvação”, seja isso que for. Quero destacar que falo da morte das religiões no mesmo sentido em que aceito o anúncio de Nietzsche sobre a morte de Deus. A religião que está morta é a religião-instituição, que contribuiu enormemente com o desenvolvimento da civilização, mas que, no fim, se converteu em um obstáculo.

Falar da morte das religiões em um sentido relacionado com o anúncio da morte de Deus de Nietzsche não significa, desde então, que a religião nunca tenha tido sentido para a humanidade. Nem sequer se pode dizer que a frase de Nietzsche significa que Deus não existe. Essa seria de novo uma afirmação metafísica, que Nietzsche não queria pronunciar, por sua recusa geral a qualquer metafísica “descritiva”. A luta contra a sobrevivência das religiões da qual falo tem pouco a ver com a negação racionalista de todo significado dos sentimentos religiosos. Inclusive se leva muito a sério esse ressurgimento da necessidade de uma relação com a transcendência que caracteriza numerosos aspectos da cultura atual. Citarei novamente Nietzsche, que diz que Deus está morto, e agora queremos que existam muitos Deuses.

Enquanto as religiões seguem querendo ser instituições temporais poderosas, são um obstáculo para a paz e para o desenvolvimento de uma atitude genuinamente religiosa: pensemos em quantas pessoas estão abandonando a Igreja católica pelo escândalo que representam as pretensões do Papa e dos bispos de imiscuir-se nas leis civis na Itália. Os âmbitos da ética familiar e da bioética são os mais polêmicos. Nos Estados Unidos, o recente anúncio do presidente Obama sobre sua intenção de eliminar as restrições à liberdade das mulheres para abortar suscitou uma ampla oposição por parte dos bispos católicos. A oposição a qualquer forma de liberdade de eleição em tudo o que se refere à família, à sexualidade e à bioética é contínua e intensa, sobretudo em países como a Itália e a Espanha. Tenhamos em conta que a Igreja se opõe a leis que não obrigam, mas só permitem a decisão pessoal nesses assuntos. Deveríamos nos perguntas de que lado está a civilização.

Há pouco tempo, o Papa repetiu sua idéia constante de que a verdade não é negociável. Esse “fundamentalismo” é só característico do catolicismo ou de todo o cristianismo? Aqueles que falam de civilizações têm a responsabilidade de levar em conta essa condição concreta. Não têm mais sentido os frequentes diálogos inter-religiosos que se celebram em qualquer parte do mundo, nos quais os interlocutores costumam ser “dirigentes” das diferentes confissões. Dialogam para não mudar nada. Não é mais do que uma forma de confirmar novamente a sua autoridade em seus respectivos grupos. Acaso surge desses frequentes encontros algo útil para a paz e a mútua compreensão dos povos? Enquanto não se elimine o aspecto autoritário e de poder das religiões, será impossível avançar rumo ao mútuo entendimento entre as diversas culturas do mundo.

Essa conclusão pode parecer um grande paradoxo, dado que, em geral, se considerou que a religião era um meio de educar a humanidade à caridade, à piedade e à compreensão. Em muitos sentidos, a compaixão parece ser a base fundamental de toda experiência religiosa. E é verdade, seja do ponto de vista do cristianismo, do budismo, do hinduísmo, do islã ou do judaísmo. Até aqui, nada a objetar.

Mas é justamente por isso que devemos reconhecer que chegou a hora de que as pessoas religiosas se levantem contra as religiões. E que afirmem taxativamente que a era da religião-instituição terminou, e sua sobrevivência só se deve aos esforços das hierarquias religiosas em conservar seu poder e seus privilégios.

O fato de que essa tese parece se inspirar, em grande parte, na experiência cristã (e católica) européia, não limita sua validade para outras culturas. Seguramente, o veneno do universalismo se espalhou pelo mundo graças aos conquistadores europeus, que são responsáveis pela estrita associação entre conversão (ao cristianismo. Lembre-se o "compelle intrare" de Santo Agostinho) e imperialismo. Agora é o mundo latino o que deve romper essa associação e separar a salvação de qualquer pretensão de crença e disciplina universal como condição para alcançá-la. Não é uma tarefa fácil.

Martha C. Nussbaum

Separação entre Estado e Igreja: em que os darwinistas estão errados

Em artigo para o jornal La Repubblica, 04-04-2009, Martha C. Nussbaum, filósofa norte-americana, comenta que "a total separação entre Estado e Igreja, entendida em sentido literal, é tanto irrealizável quanto indesejável". Titular da cátedra "Ernst Freund Distinguished Service Professor" de direito e ética na Universidade de Chicago, a filósofa analisa a relação os defensores dessa posição e seus adversários. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


A total separação entre Estado e Igreja, entendida em sentido literal, é tanto irrealizável quanto indesejável. Até que ponto a separação é uma vantagem e quando ela se torna, pelo contrário, uma desvantagem? Podemos dar uma resposta satisfatória apenas alcançando outros e mais essenciais valores, ligados à paridade de condições e à igual liberdade. Essa tradição possui diversos inimigos, que podemos reduzir a duas tipologias fundamentais, ambas bastante comuns nas modernas democracias liberais "decentes".

Podemos definir o primeiro adversário como o defensor da religião majoritária in loco (por exemplo, a Igreja católica na Itália ou na França). Aqueles que consideram que a justa ordem e a segurança coletiva requerem um compromisso público em vista da ortodoxia religiosa, ou de uma tradição religiosa dominante. Os que desejam viver em paz entre nós devem aceitar essa realidade e assimilá-la.

Hoje, porém, em seu lugar, vai se afirmando uma fórmula mais conciliadora e aparentemente benévola: a mensagem é que basta ter bem claro na mente qual é a nossa identidade primordial e basilar, e assim o diferente poderá viver em paz no meio de nós. É fácil estigmatizar esse tipo de opositor, pelo menos para os intelectuais norte-americanos, a cujos olhos tais posições fazem referência à direita religiosa, que frequentemente consideram distante das próprias perspectivas e particularmente não inteligente.

Mais difícil é criticar o segundo tipo de opositor, que, geralmente, milita na esquerda e ao qual podemos indicar o nome de antirreligioso. O antirreligioso está persuadido de que todas as religiões devem ser combatidas na arena pública, e não por razões de igualdade ou de liberdade, mas porque a religião é vista como algo embaraçoso, relíquia de uma era pré-científica e fonte de nada além de escuridão.

Podemos construir democracias mais sólidas, pensa o antirreligioso, se desencorajamos a religião e as edificamos na racionalidade científica laica. Obviamente, não devemos reprimir nem penalizar os fiéis ou a prática religiosa por meio das leis. Mas, segundo ele, deve-se desencorajá-la, e absolutamente não deve ser feito nenhum esforço para lhe conceder um espaço posterior para se expressar.

Qual é a consequência negativa da antirreligião? O principal defeito é a propensão a uma dureza particular com relação às religiões de minoria. A religião de maioria, de fato, parece não ostentar uma carga religiosa particular, sendo por isso mesmo implantada nas leis e nos costumes dominantes, tornando-se quase indiscernível. Os defensores da antirreligião, portanto, muitas vezes não jogam de modo limpo e reservam a qualquer um que queira mostrar a própria diversidade um tratamento pior com relação a outros indivíduos que, mesmo também religiosos, se adéquam exteriormente à norma imperante. E isso explica por que a religião tenha sido tradicionalmente mais injusta com relação aos judeus e aos muçulmanos, e na França ainda é assim.

O segundo defeito da antirreligião reside na sua propensão a uma avareza em termos de acolhida. Estando convencidos de que a religião não se revista no fundo de uma grande importância, os defensores da antirreligião muito dificilmente terão o incômodo de exonerar alguns cidadãos da lei de aplicação geral por motivos de consciência. Muito simplesmente, os antirreligiosos têm muito pouco respeito pela capacidade de consciência.

Terceiro e mais importante: mesmo se equânime, a postura antirreligiosa é incompatível com um compromisso convicto em favor do respeito igual. Os antirreligiosos se proclamam "iluminados". Nós, "iluminados", sentenciamos, vemos o mundo com maior lucidez do que vocês, pobres obscurantistas.

Se os defensores da antirreligião de inspiração científica consideram ter essas soluções no bolso, por exemplo na forma de uma análise fisiológica redutiva da vida e da morte dos organismos, é preciso rebater que uma resposta semelhantes é tão vazia de mistério e de curiosidade natural, que ela mesma, e não as múltiplas tradições religiosas, mortifica a humanidade e compromete o projeto de construção de um Estado florescente e poliédrico, fundado no respeito por todo o ser humano.

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