quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Wilker Sousa

Indagações sobre o mal

As muitas incertezas que rondam o mal são um convite à reflexão sobre a experiência humana


Por Wilker Sousa
Fonte: Revista CULT


Questionada sobre quais de suas obras mais estimava, Clarice Lispector citou o conto “O Ovo e a Galinha” e também “uma coisa que eu escrevi sobre um bandido”. A escritora aludia à crônica “Mineirinho”, publicada nas páginas do Jornal do Brasil. Naquele texto breve e prenhe de sensibilidade, Clarice demonstrava sua revolta mediante a brutalidade com que a polícia carioca assassinara um bandido conhecido como Mineirinho. Paralelamente à enumeração de cada um dos 13 tiros disparados à queima-roupa, o texto narra o crescente percurso de perplexidade vivenciado pela autora até culminar na mais completa comiseração: “O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”. Se o propósito do policial era matar o bandido, o que o teria levado a disparar 13 tiros, quando apenas um bastaria?

Trivialidade

A convite da revista New Yorker, a filósofa Hannah Arendt foi a Jerusalém em 1961 fazer a cobertura do julgamento de Adolf Eichmann, integrante do Reich responsável pelo transporte de milhares de judeus para os campos de concentração. Arendt via na experiência totalitária a cristalização do chamado “mal radical”, pois o regime nazista eliminara a espontaneidade e a liberdade individual dos homens, tornando-os supérfluos, o que resultou em Auschwitz. Ao acompanhar o julgamento, a filósofa não deparou com a personificação da malignidade e do antissemitismo. Ao contrário, o réu não demonstrava qualquer aversão ao povo judeu. Tivera inclusive uma amante e um amigo de escola judeus.

O que o motivara, então, a colaborar com tamanha barbárie? Tão somente acatar e cumprir prontamente as ordens que lhe foram passadas. “Ele estava perpetrando um mal radical, por conta da descartabilidade do ser humano. No entanto, o fez sem se dar conta da monstruosidade”, explica o jurista Celso Lafer, autor de A Reconstrução dos Direitos Humanos, um Diálogo com o Pensamento de Hannah Arendt (1988). “O que Hannah Arendt aponta em sua análise sobre o regime nazista é que deixou de haver uma normalidade tal como nós a entendemos. A normalidade nazista baseava-se num estado que perpetrava o mal radical. Por causa disso, alcançou também aqueles que estavam por perto, inclusive o cidadão comum e as próprias organizações da comunidade judaica que, tentando evitar um mal maior, acabaram contribuindo para que o mal se perpetrasse”, completa Lafer. Com base nessa inabilidade de pensamento e na completa ausência de sensibilidade por parte de Eichmann, Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal”, desenvolvida no livro Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal (1963).

Guardadas as devidas diferenças histórico-sociais, não seria exagero supor que as categorias do “mal radical” e da “banalidade do mal” se aplicam à experiência do século 21. A assustadora frieza da qual padecia Eichmann parece encontrar terreno fértil para propagação em meio ao modo de vida contemporâneo, cujo ritmo alucinado acaba por acentuar o apagamento do indivíduo e, por conseguinte, minar a alteridade. Segundo o psicólogo Antonio de Pádua Serafim, “as pessoas que apresentam um comportamento de maldade têm antes um defeito na formação do caráter. O caráter é constituído de sentimentalismo, que é a capacidade do indivíduo de se colocar no lugar do outro e ter respeito pelo outro. O que nós encontramos é um grupo de pessoas que não têm isso”. Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Instituto de Psiquiatria da USP (Nufor), Antonio é enfático ao comentar a influência do modo de vida contemporâneo na ocorrência de crimes atrozes: “Sem dúvida. Hoje vivemos um aumento da violência urbana e, além disso, a globalização exige o ‘ter’ e não necessariamente o ‘ser’. Existe uma competitividade muito grande. Essa condição sociofuncional é de fato um disparador para a ocorrência dessas características”.

Inato?

A despeito dos fatores sociais que possam favorecer sua prática, o mal é inato? Indivíduos que cometem crimes brutais e também aqueles com comportamentos considerados “malévolos” trariam o mal marcado em seus DNAs? “Com relação à maldade, eu acredito que exista uma predisposição biológica. É muito difícil um psicólogo falar assim, mas eu tenho uma formação mais psicobiológica. Há pessoas que têm algumas predisposições na sua genética e a interação com determinados estilos de ambiente vai potencializar essas características”, defende Antonio Serafim. Crer na predisposição biológica para o mal não significa, contudo, considerá-lo uma doença, acredita o psicólogo: “É uma necessidade pura e simples de destruição. As pessoas que cometem isso não são necessariamente doentes. (…) Não são doentes do ponto de vista nosológico [ramo da medicina que classifica doenças], mas são diferentes da normalidade ao vivenciar as características da maldade”.

Há 11 anos Ilana Casoy dedica-se ao estudo de crimes violentos. Pós-graduanda em criminologia pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), é autora de quatro livros nos quais investiga o perfil criminal de serial killers nacionais e internacionais. Com base no conhecimento e na experiência que acumulou acerca do tema, mostra-se contrária à patologização do mal: “Minha grande preocupação é como, mais uma vez na história, voltamos a achar que o mal tem uma explicação médica. Novamente, nós vamos ter um positivismo agora revestido de uma linguagem mais moderna, como se o senso moral viesse impresso no DNA. Eu temo um pouco esse discurso. Nós temos de cuidar como um todo”. No que se refere ao perfil do criminoso violento, Ilana afirma que “às vezes é um indivíduo com baixíssima tolerância à frustração, que tem um entendimento completo do certo e do errado, mas com uma dificuldade de controle da sua própria vontade, sem que isso seja uma doença mental”.

De olhos vendados

Se a biologização do mal está revestida de polêmicas, opiniões convergem quando o assunto é a influência de um quadro social desfavorável na perpetração da maldade. Ilana comenta que, na grande maioria dos casos que estuda, o histórico dos criminosos já prenunciava o pior: “Eu vejo vidas em vermelho. Quando se escuta a vida desses indivíduos, questiona-se aonde mais poderiam ir. Certamente é um histórico que não era base para um bom futuro. Isso não é regra, mas é a enorme maioria”. Para que se possa coibir tragédias futuras, Antonio Serafim defende a intervenção de profissionais desde a infância de indivíduos agressivos: “Há crianças com características agressivas acima da normalidade e não se faz um trabalho de prevenção com relação a isso. Elas poderiam ser avaliadas e, se submetidas a intervenções precoces, a possibilidade de se transformarem em pessoas mais violentas seria reduzida”.

Trabalhos preventivos, contudo, esbarram no preconceito e na cultura da reparação de males. “Quando se avalia uma criança e se diz que ela é agressiva, pensam que é estigmatização. Há um preconceito com relação a isso, mas na verdade é uma prevenção. (…) Eu sou favorável a que haja a prevenção, mas o Estado brasileiro, infelizmente, é mais reativo”. A postura do Estado brasileiro, à qual se refere Antonio Serafim, é reflexo do discurso preponderante da defesa de políticas voltadas à segurança pública em detrimento de ações preventivas. Afinal, os resultados da coerção são mais palpáveis e passíveis de se tornarem estatísticas. Embora a discussão sobre nosso código penal seja inegavelmente salutar, não se pode, contudo, olhar apenas a ponta do iceberg, acredita Ilana: “Quem pensa a lei nunca vai resolver a criminalidade. O que vai dar frutos são a educação e a inclusão. Com lei eu não acho que se resolva. Vivemos hoje uma era de muita judicialização da solução. Tudo é matéria penal”.

Delegar ao Estado a tarefa de coibir o mal parece, em última instância, uma tentativa de afastá-lo com todas as forças da vida cotidiana, como se houvesse um hiato entre o mal radical, simbolizado na barbárie que alavanca a audiência dos noticiários, e a benevolência inconteste do cidadão comum. Quadro salvador, não fosse tolo. Desafiador, porém, é desmontar simplismos, vislumbrar a alteridade perdida e “atravessar o mal sem se julgar uma encarnação do bem”, parafraseando Tzvetan Todorov.

Franklin Leopoldo e Silva

A incompreensibilidade do mal.
Diante do mal, o que está em jogo não é explicação ou compreensão, mas sim revolta ou resignação


Por Franklin Leopoldo e Silva, professor titular de História da Filosofia Contemporânea da USP.



Se a filosofia é a tentativa de compreensão da condição humana, então a questão do mal ocupa o centro das preocupações – e a marca profunda que a tradição socrático-platônica deixou na constituição da herança filosófica bastaria para atestá-lo. Mesmo quando o questionamento se dá por via de uma racionalidade mais formal e orientada por paradigmas que desprezam as orientações ditas “metafísicas”, o mal não deixa de aparecer como uma constatação inseparável de certa perplexidade, oculta sob a aceitação dos limites da razão e do rigor da argumentação. Mais do que isso, ainda que o cinismo, contemporaneamente tão difundido, nos faça aceitar o mal como realidade dada ou como banalidade, essa pretensa certeza primária não nos isenta do incômodo presente na má-fé inerente ao conformismo e à indiferença ética.

Concepções tradicionais do bem e do mal

A fabulação mítico-religiosa, de que fala Bergson em As Duas Fontes da Moral e da Religião, isto é, o conjunto de representações imaginárias que procuram responder a questões situadas além do alcance da vocação pragmática do entendimento, não possuiria função explicativa, mas, sobretudo, vital: possibilitar a convivência com os acontecimentos incompreensíveis que nos afetam, que nos transformam, que nos fazem sofrer e que podem nos destruir. As adversidades naturais, a ira dos deuses, a culpa originária, os ciclos em que se manifesta a fatalidade: tudo aquilo que não podemos prever ou controlar naturalmente, mas que podemos, talvez eventualmente, conjurar por meio da invocação de forças que nos superam e da observância de interditos que nos lembram da posição relativa que ocupamos no universo.

Mas há também as decisões e ações que derivam de nossa liberdade. Desde Aristóteles, persiste a ideia de que a prática é muito mais complexa do que a teoria, porque no universo das ações não podemos mobilizar e esgotar todos os elementos que nos proporcionariam a certeza do acerto das escolhas. O bem não é demonstrável como a verdade. Tudo que podemos fazer é contar com um discernimento, espécie de sabedoria prática, que empregamos na tentativa de que nossas opções se orientem pelo critério do melhor possível, sem esperar a segurança proporcionada pela dedução da verdade teórica. Por isso o mal nos espreita como presença proporcional ao grau de imprudência a que estamos, inevitavelmente, sujeitos.

A filosofia cristã enfrenta ainda outra dificuldade. Como Deus só pode ser considerado como o bem e causa do bem, a criação está necessariamente impregnada de bondade e perfeição, o que torna o mal inexplicável do ponto de vista da criação divina. A rigor, o mal não deveria existir. Para dar conta de sua presença na experiência humana, Santo Agostinho apela para a diferença entre o relativo e o absoluto. Criaturas limitadas que somos, e inclinadas à corrupção desde o pecado original, não discernimos, em nossas escolhas, o bem absoluto que deveria ser a nossa meta, mas nos contentamos com os bens relativos, exacerbando-lhes a dimensão e o significado, de modo que apareçam como absolutos. Em outras palavras, não distinguimos, via de regra, o fim supremo dos meios relativos pelos quais poderíamos atingi-lo. Assim nunca escolhemos o mal, porque ele em si mesmo não existe; escolhemos um bem menor e o elegemos como o que de maior poderíamos desejar.

O mal no pensamento cartesiano

No racionalismo cartesiano encontramos uma versão moderna dessa concepção. A trajetória de reconstrução da filosofia em Descartes é bem conhecida: a afirmação da existência do eu pensante como evidência que resiste a qualquer dúvida; a prova da existência de Deus, princípio da verdade por ser a garantia das representações claras e distintas a que chega o sujeito. Diante de tão fortes referências metodológicas e metafísicas, como o erro ainda pode acontecer? De modo mais amplo: a partir de Deus como afirmação absoluta da verdade e do bem, como pode ter lugar a negatividade do erro e do mal? A solução de Descartes é engenhosa, muito significativa do ponto de vista da promoção de valores modernos, e consiste numa aplicação peculiar do racionalismo como estratégia de justificação. A faculdade pela qual nos assemelhamos a Deus, já que fomos feitos à sua imagem, não é, como se poderia pensar, o entendimento, e sim a vontade, cujos limites não se pode assinalar, já que o poder de afirmar e de negar estende-se indefinidamente. Se acentuarmos os traços dessa concepção, poderemos dizer que a liberdade humana é infinita. Isso produz um desequilíbrio: sendo o entendimento finito – e mesmo bastante limitado –, a liberdade, isto é, a vontade ilimitada, nos leva a produzir juízos sobre coisas que estão além da compreensão intelectual, caso em que podemos errar e pecar.

A tese é paradoxal: aquilo que nos faz semelhantes a Deus é também aquilo que nos leva ao erro e ao pecado. Mas é também uma estratégia eficiente quanto ao poder explicativo da dificuldade em pauta: Deus nada tem que ver com o erro e o mal, já que não podemos contestar a dimensão finita do entendimento, o que é natural e coerente em criaturas finitas; e muito menos podemos lamentar a liberdade absoluta, que é em si mesma um bem, pois nos remete à nossa origem divina. Com efeito, a desproporção entre intelecto limitado e vontade ilimitada diz muito sobre a nossa natureza: somos criaturas e, nesse sentido, não somos perfeitos; mas somos criaturas de Deus e, nesse sentido, trazemos em nós a marca da perfeição do criador. Ontologicamente, a natureza da criatura traz em si uma divisão: de um lado, a absoluta perfeição do criador, isto é, sua realidade infinita; de outro, o nada de que fomos feitos, ausência de ser e negatividade. Isso permite entender por que podemos desejar tudo e podemos saber muito pouco. E nos ajuda a entender também o aspecto ético da divisão que nos afeta: o ser em plenitude, isto é, o bem, e o não ser, o nada, ausência do bem.

Mas essa desproporção não nos condena ao erro e ao mal. A completa liberdade de que dispomos não apenas nos conduz a afirmar ou a negar qualquer coisa, mas também a suspender o juízo nas circunstâncias em que o entendimento não oferece suficiente respaldo para emitir um juízo. Lembremo-nos do principal preceito metódico: só devo aceitar como verdade representações claras e distintas. Quando não disponho delas, a prudência recomenda permanecer no estado de suspensão de juízo, para não cair em erro. Ora, há que se observar que as verdades da fé estão além do entendimento e, no entanto, são necessárias para orientar eticamente a conduta, pois justificam escolhas e ações que muitas vezes não poderiam ser submetidas à racionalidade do juízo objetivo. Nesse caso, se admito que tais verdades se situam além do poder de conhecimento e, portanto, além da dúvida, devo aceitá-las por via de outros critérios, aqueles que regulam a crença, mesmo porque os fundamentos da crença, como por exemplo a existência de Deus, podem ser submetidos ao crivo da razão.

Aparência racional à prática do mal

Como se vê, a solução cartesiana consiste em mostrar que a liberdade de errar é também a liberdade de não errar; que o estatuto do mal é negativo, posto que provém do que em nós se opõe ao ser e ao bem; e que, se a liberdade for regulada pela razão, valorizaremos aquilo que em nós é positivo, isto é, a verdade e o bem. Esse poder atribuído à razão é coerente com um humanismo racionalista. Mas a experiência histórica indica que a liberdade pode produzir opções que a razão é levada a justificar a posteriori, fenômeno que se designa como racionalização e que, paradoxalmente, faz com que a razão justifique condutas irracionais, caracterizadas pela escolha do mal. Isso porque do fato de que a razão pode limitar a liberdade não decorre que sempre o faça e, portanto, a razão pode desempenhar nessa relação outro papel: conferir aparência racional à prática do mal.

Mas isso não ocorre apenas por via de um equívoco racional; a causa é também uma contradição que pode acontecer no uso da liberdade, quando o indivíduo abdica de sua condição de sujeito da própria liberdade, entregando-a a poderes que o sobrepujam absolutamente. Os grandes exemplos, como se sabe, foram as manifestações de violência do século 20 que produziram os genocídios, isto é, o mal racionalmente administrado: Auschwitz, Gulags, Hiroshima.

Perplexidade e ação

Tais experiências levam-nos a duvidar de que o mal seja apenas a ausência de ser e de realidade, que ele só possa ser indiretamente definido como falta ou privação. Os argumentos racionais, nesse caso, não logram se sobrepor à realidade dos fatos e a situações em que o mal aparece não apenas como dotado de efetividade, mas até mesmo tendendo para o absoluto. Isso acontece principalmente quando o mal governa as relações humanas. O que há de perturbador, nos episódios que citamos, é a dificuldade em distinguir a loucura da razão, a civilização da barbárie, já que eles parecem ser uma fantástica confluência dos dois elementos.

Assim, é a reflexão que nos leva ao espanto, e é este que nos leva às interrogações angustiadas. Como poderíamos reduzir a meras aparências ações como a tortura, o assassinato, a opressão e a dilapidação da dignidade? Se nos sentimos constrangidos e incomodados quando temos de admitir a naturalidade de catástrofes como inundações ou terremotos, como poderíamos considerar que o sofrimento que um ser humano inflige a outro seria apenas a aparência localizada do bem em sua totalidade? Se temos dificuldade em admitir que o castigo pode ser fruto da justiça divina, como poderíamos entender que a dor e a morte provocadas pelo próprio homem possam estar inseridas numa arquitetônica racional do mundo?

Talvez devamos aceitar o caráter incompreensível do mal, isto é, que, diante dele, o que está em jogo não é explicação ou compreensão, mas sim revolta ou resignação. E que o mal e o bem, na medida em que se referem à nossa liberdade, dizem respeito à afetividade, à relação não reflexiva que mantemos com nós mesmos e com o que nos transcende, sejam os outros, seja Deus. Nesse tipo de relação, em que a negatividade aparece por vezes como uma potência assustadora, é provável que a perplexidade predomine sobre o entendimento, mas é possível também que ela nos mova e nos faça agir tanto ou mais do que o conhecimento.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Márcio Zuzuki

Razão e bom humor. A pequena grande filosofia de David Hume

Nascido há 300 anos, Hume marcou a história da filosofia com seu ceticismo "mitigado", que questiona a superioridade da razão em relação ao instinto. Ao aliar serenidade e bom humor à investigação intelectual, concebeu a filosofia como atividade galante, que se vale da diversão e da imaginação livre para resolver problemas. O artigo é de Márcio Zuzuki, professor de Filosofia da USP, e publicado no jornal Folha de São Paulo, 07-08-2011.
Fonte: UNISINOS


É provável que boa parte da atração que o leitor sente ao contato com os textos de David Hume (1711-76) ainda hoje, nos 300 anos de seu nascimento, se deva à saudável inquietação que provocam.

Enquanto Descartes (1596-1650) procura extirpar os "preconceitos da infância" à força de uma intensificação hiperbólica da dúvida, lançando mão de recursos retóricos e cênicos como o gênio maligno e o deus enganador, Hume avança teses frontalmente contrárias ao senso comum sem alterar o tom, procurando evitar que o leitor reacenda no espírito suas prevenções costumeiras.

Será verdade que o instinto é mais importante para a vida que a razão? E que o raciocínio de causa e efeito não tem origem racional, mas é fruto de uma conjunção fortuita, a que apenas educação e hábito dão consistência?

Levar o leitor comum a se convencer da verdade de tais proposições supõe uma concepção peculiar do exercício filosófico e literário, que pode ser explicado como busca de um ajuste fino entre excentricidade e bom senso, cujo indicador se exprimiria por sinais de serenidade e bom humor. Quanto maior o destempero, maior o indício de que se perdeu a razão, ensinava Shaftesbury (1671-1713). Na mesma linha, Hume definiu sua filosofia como ceticismo temperado ou "mitigado", por oposição ao ceticismo excessivo ou de "cabeça quente".

OBRA

O primeiro livro que Hume publicou, em 1739-40, o "Tratado da Natureza Humana" [trad. Déborah Danowski, Editora Unesp, 2000, 712 págs.], quase não teve repercussão. A obra era pesada demais, e seu fracasso levou, felizmente, o autor a repensar sua maneira de escrever.

Em 1742 saem os "Ensaios", bem mais acessíveis, nos quais mimetiza os artigos de Addison na revista "Spectator". Foram 17 reedições durante a vida de Hume; junto com a "História da Inglaterra", contribuíram para seu renome como escritor. Em 1748, ele publica a "Investigação sobre o Entendimento Humano" e, em 1751, a "Investigação sobre a Moral" [Editora Unesp, 2003, 438 págs.], a qual ele próprio considerava sua obra mais bem-acabada.

Reações eclesiásticas a esses escritos não se fizeram esperar. Por causa deles, Hume não foi aceito como professor na Universidade de Edimburgo e, posteriormente, na Universidade de Glasgow. Em 1756, sofreu um processo de excomunhão, sendo absolvido pela Assembleia Geral da Igreja da Escócia. Em 1757, publicou a "História Natural da Religião", e em 1779, três anos após sua morte, aparecem os "Diálogos sobre a Religião Natural" [trad. José O. A. Marques, Martins Fontes, 1992, 188 págs.].

GRANDEZA E BAIXEZA

Apesar do sucesso como escritor, a imagem que provavelmente ficou de Hume no público britânico em geral é aquela que Samuel Johnson deixou dele: a de um "homem infiel, embora benevolente e bom".

Sabe-se hoje que a apreciação de Johnson sobre o filósofo escocês se deve menos a leituras de suas obras e ao pouco contato pessoal que teve com ele do que àquilo que lhe foi soprado por seu grande biógrafo, James Boswell. Seja como for, a disputa entre o grupo ligado a Johnson e o ligado a Hume foi decisiva para os rumos da vida filosófica, artística e literária na Grã-Bretanha.

Um exemplo, entre tantos outros: Edgar Wind escreveu um estudo admirável sobre a pintura britânica do século XVIII, "David Hume e o Retrato Heroico: Estudos sobre a Imagística no Século XVIII" [Oxford University Press, 146 págs.], no qual procura mostrar que as diferenças de estilo nos retratos dos dois maiores pintores do século XVIII na Grã-Bretanha, Joshua Reynolds e Thomas Gainsborough, se devem a concepções filosóficas antagônicas a respeito da natureza humana.

A arte de Gainsborough representaria uma visão rebaixada do homem, sustentada no ceticismo humiano, que afirma que a razão humana é muito fraca se comparada ao instinto e, portanto, não muito superior à razão encontrada nos animais. Já a grandiosidade das figuras nos retratos de Reynolds se explicaria como reação a esse rebaixamento do homem e de sua razão. Reynolds teria buscado fazer jus a uma concepção "heroica" do homem, que ele partilhava com Johnson e com o filósofo James Beattie, adversário de Hume.

CRISTIANISMO

Que a filosofia humiana tenha conseguido provocar reações contrárias de religiosos e do grupo próximo a Johnson é algo que dá o que pensar, já que a desconfiança em relação aos poderes da razão é um traço que aproxima o ceticismo do cristianismo. Hume teria apenas errado na dose, mas o fez, sem dúvida, com toda a consciência.

Ao final dos "Diálogos sobre a Religião Natural" há um texto em que a aproximação do cético e do crente é expressa de forma magistral: o indivíduo que tem justa noção das imperfeições da razão natural se voltará para a verdade revelada, ao contrário do dogmático arrogante, que imagina poder fundar a teologia sobre um sistema racional perfeito. No homem letrado, ser cético é, portanto, paradoxalmente passo indispensável para se tornar crédulo.

A interpretação do trecho é controversa. Muitos dizem se tratar de uma das (não poucas) ironias de Hume.

Outros podem nela enxergar semelhanças com Pascal: a ciência é causa de orgulho e soberba. A insignificância do homem diante da imensidão do cosmo faz o cético se convencer de que, para o universo, "a vida de um homem não tem mais importância que a vida de uma ostra".

ALEMANHA

Na Alemanha, a reação cristã ao ceticismo de Hume foi oposta. Lá, ele foi reconhecido como aliado estratégico por Hamann e Jacobi, que viram na crítica às provas da existência de Deus uma defesa importante dos milagres e da revelação, contra a voga das teologias racionalistas surgidas com o Iluminismo.

Hamann e Jacobi fizeram uma interpretação original da noção humiana de crença. O escocês afirma que, assim como não há raciocínio que demonstre a existência dos objetos externos, e que tudo o que fazemos é crer imediatamente naquilo que os sentidos nos apresentam, também não há raciocínio que possa provar a existência divina. Os dois filósofos alemães assimilaram os termos "crença" (belief) e "fé" (faith). Tudo passa pela fé ou pelo sentimento.

Em "David Hume ou sobre a Crença" (1787), Jacobi sustenta que a religiosidade não vem da adesão racional, mas de um sentimento íntimo, que leva à conversão por um "salto mortal".

Essas ideias tiveram sua importância para a crítica da filosofia racional em Kierkegaard (1813-55) e, por tabela, para os primórdios do existencialismo francês, dos quais Hume pode ser considerado um precursor (sobre esse estranho percurso, veja-se o estudo de Isaiah Berlin "Hume e as Fontes do Irracionalismo Alemão", que faz parte do livro "Against the Current. Essays in the History of Ideas", Princeton University Press, 2001.)

KANT

Hamann e Jacobi eram bem próximos de Kant (1724-1804), ele também bastante influenciado pela obra do escocês, a ponto de afirmar que foi Hume quem o despertou do "sono dogmático". Kant investiu anos de vida tentando mostrar que o raciocínio de causa e efeito não é fruto de repetição e hábito. O seu esforço é explicável: diferentemente de Hamann e Jacobi, Kant não se enganou sobre as reais intenções de Hume.

Embora a própria ideia de crítica da razão tenha no ceticismo humiano uma de suas mais fortes inspirações, era preciso lhe responder à altura, mostrando que entendimento e razão não são tão impotentes assim como ele queria fazer crer.

Até hoje corre muita tinta para saber quem, Hume ou Kant, venceu a controvérsia (a causalidade é um hábito originado na experiência ou um conceito "a priori" do entendimento?), que sobrevive em posições epistemológicas bem distintas, uma mais afeita a uma concepção racional do conhecimento, outra ao utilitarismo, ao positivismo lógico e ao pragmatismo.

FILOSOFIA GALANTE

Mas hoje também se sabe que os pontos de contato entre Hume e Kant não se restringem ao plano cognitivo, com suas implicações teológicas. Como muitos em seu século, o "Hume Prussiano" (como o chamou Hamann) se impressionou igualmente com a proposta de que a filosofia deveria ser concebida como um diálogo entre o homem galante e a lady sensível, ou como uma aliança entre o mundo acadêmico e o mundo dos salões.

Segundo essa concepção, o "gentleman" em sentido filosófico é alguém que não deve apenas subir aos grandes temas da metafísica, da moral e da política mas também descer às questões menores, que tocam diretamente a vida individual e social, como casamento, divórcio, comércio, avareza, amor, suicídio etc.

Ele se ocupa de problemas aparentemente banais e sabe falar sobre eles de maneira simples e refinada, gesto de gentileza e respeito para com o interlocutor e leitor. Para isso, precisa ter apuro na arte do ensaio, do epistolário e da conversa, formas que melhor captam e transmitem a vivacidade própria aos sentimentos e às relações entre os indivíduos. O leitor pode ter uma boa ideia dessa maneira de proceder no recém-lançado "A Arte de Escrever Ensaio e Outros Ensaios" [sel. Pedro Pimenta, trad. Márcio Suzuki e Pedro Pimenta, Iluminuras, 336 págs.]

Como um bom gourmet que sabe notar a presença de um condimento ou tanino determinando o sabor de um prato ou de um vinho, o filósofo deve ser capaz de sentir pequenas circunstâncias relevantes para a compreensão de um acontecimento e ter gosto refinado para poder avaliar a obra de arte mais complexa como o mais tarimbado dos críticos. A questão é discutida no "Un Bicchiere con Hume e Kant - 'Divertissement' Estetico-Metafisico (um trago com Hume e Kant, 'divertissement' estético-metafísico) [ETS, 164 págs., R$ 28]. Mas também precisa ter largueza de espírito para compreender por que uns julgam de maneira diferente dos outros (o que tem óbvia implicação para a compreensão e a aceitação das diferenças em política).

Essa atitude diante da diferença permite a Hume fazer observações deliciosas sobre os motivos por que alguém se apaixona por coisas que os outros consideram estapafúrdias ou irrisórias. Como os objetos e os fatos não existem fora da mente que os representa, só a imaginação em conjunto com a paixão pode lhes atribuir valor e significado.

O apego às ocupações, diversões e passatempos se explica da mesma maneira. Trabalho, entretenimento, jogos começam inocentemente, mas a paixão por eles cresce e pode aos poucos tomar conta do indivíduo. Eles não são viciosos ou ruinosos em si mesmos (nem os jogos de azar o são) e só se tornam tais se praticados de maneira excessiva.

MIRAGENS

Mesmo a mais trivial das ocupações tem valor para o indivíduo que nela se aplica - valor que está menos naquilo que se busca do que na própria atividade.

O dinheiro cobiçado na mesa de jogo, o javali freneticamente disputado numa caçada são apenas miragens que a natureza institui para nos impelir à atividade. Indivíduos mais excêntricos correm atrás de outros tipos de recompensa, como o imperador Domiciano (51-96 d.C.), para quem o troféu dos seus esforços eram as moscas que pegava.

Impossível demonstrar mediante argumentos, para quem gosta de sinuca, que o golfe é um esporte mais nobre, assim como, para o fã de música techno, que é melhor ouvir música clássica. A opção é só aparentemente irracional, pois se explica por um mecanismo natural, ligado ao instinto de conservação e prazer e ao temperamento de cada um.

Assim, tão importante quanto o refinamento do gosto e dos costumes é a atenção para as diferenças de sensibilidade e temperamento. Tal respeito pela diversidade explica por que Hume acertou bem mais do que Samuel Johnson no que se refere ao "Tristram Shandy" de Laurence Sterne (trad. José Paulo Paes, Companhia das Letras), romance inteiramente avesso ao gosto clássico de ambos. Em carta a William Strahan, de 1773, Hume diz que, nos últimos 30 anos, o melhor livro escrito por um "englishman" era o de Sterne -"por pior que ele seja" ("as bad as it is").

HOBBY

Alguns autores já observaram a afinidade do pensamento humiano com o do autor do "Tristram Shandy", aproximação pertinente, especialmente pelo olho que os dois têm para a atitude excêntrica. Essa aproximação, aliás, também já foi feita por Kant, na definição perspicaz que propõe para hobby, que diz: hobby é "a mais leve de todas as transgressões dos limites do bom senso", é "como um ócio atarefado, uma paixão em se entreter cuidadosamente com objetos da imaginação, com os quais o entendimento simplesmente brinca por distração, como se fosse um negócio". ("Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático", ed. Iluminuras).

E Kant comenta: só os sabichões, com sua "seriedade pedante", censuram o hobby, essa cavalgada num "cavalinho de pau" (tradução literal de "hobbyhorse"), e eles merecem a censura que Sterne lhes faz no livro I, capítulo 7, do "Tristram Shandy", no qual o narrador diz que cada um pode subir e descer como quiser a estrada real no seu cavalinho de pau, desde que não obrigue ninguém a se sentar na garupa.

Noutro lugar, mas no mesmo contexto, Kant dirá: "Porque cada um tem sua dose de doidice, é preciso que tenha paciência com as doidices dos outros".

Gosto e hobby não se discutem. A explicação que Kant dá sobre o hobby se vale dos princípios humianos e está próxima do jogo entre imaginação e entendimento encontrado na atividade estética e no gênio (onde também o fim que se busca não é exterior à atividade). Contrapondo-se claramente a Pascal, para quem a busca de diversão só poderia redundar em tédio, Hume ensinou que se distrair e divertir, além do valor terapêutico intrínseco ("ocupar a mente"), tem também um valor heurístico.

No final da "Investigação sobre o Entendimento Humano", há uma passagem conhecida, na qual ele afirma que, de tanto matutar um problema, o filósofo será acometido de melancolia e delírio, só curados não pela filosofia, mas pela natureza, muito mais sábia, que faz a mente buscar um relaxamento de seu esforço em entretenimentos como jogar gamão, jantar e conversar com os amigos.

Kant percebeu aonde ia dar o argumento: depois de algumas horas de diversão, o filósofo poderá voltar revigorado às suas lucubrações. Sua imaginação já não estará presa à ideia fixa que a impede de avançar na resolução de um problema. Descoberta e invenção dependem da mudança de atividade, fundamental para repor a imaginação em seu livre jogo.

IDIOSSINCRASIAS

O filósofo galante sabe compreender o que há de fundamental nas idiossincrasias dos outros e também brincar com as próprias. É o que Hume faz com sua entrega um tanto intemperada aos prazeres da mesa.

Mas o principal é que a singularidade deve ser respeitada, porque, se não é prova, pode ao menos ser sinal do novo. Como afirma o ensaio sobre "O Comércio", os pensadores "abstrusos" são mais interessantes do que os superficiais, porque "indicam caminhos" e "apontam dificuldades" que podem levar a "finas descobertas" de pensadores "mais ajuizados".

Para a filosofia séria, "profissional", há uma consequência bastante incômoda a tirar de todas essas ideias. É que, se toda ocupação é importante, não havendo razões para dizer que uma seja superior à outra, a conclusão também é válida para o sublime amor ao saber. Comparar a meditação filosófica a um passatempo frívolo qualquer parece, assim, perturbar muito mais do que todos os argumentos céticos ou cristãos sobre a fraqueza de nossa razão.

A lição de David Hume talvez resida nessa combinação de excentricidade e modéstia: o máximo que o exercício filosófico pode almejar são pequenas descobertas - ou, parafraseando Kant, transgressões judiciosas dos limites do bom senso.

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