sábado, 10 de abril de 2010

Roberta De Monticelli

A mulher que desafiou a Igreja

Hipátia, filósofa e matemática neoplatônica, se tornou símbolo de muitas coisas, o contraste entre os Elementos de Euclides e a Bíblia, ou a possibilidade provada de que as mulheres também sabem pensar e se distinguir também nas ciências matemáticas. A opinião é da filósofa italiana e professora da Universidade Vita-Salute San Raffaele, Roberta De Monticelli, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 09-04-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


"Eu sei, / para todos nós que estávamos juntos naqueles tempos / Alexandria ainda vibra por causa de sua febre fina / e também do seu um pouco frenético delírio...". Assim, Sinésio de Cirene, douto poeta e pensador alexandrino, lembra a cidade da sua juventude. A cidade onde a biblioteca de Alexandria, último "sonho da razão grega", havia se consumido no incêndio entre o final do século IV e o início do V: simbolicamente massacrada em março de 414 no corpo de Hipátia [ou Hipácia].

Ela foi uma matemática e filósofa neoplatônica, comentarista de Platão e de Plotino, Euclides, Arquimedes e Diofanto, inventora do planisfério e do astrolábio – segundo o que nos é relatado pelos poucos testemunhos que chegaram até nós. Porque da sua obra, assim como da de seu pai Teão, ele também matemático, não restou nada. Porém, esses fragmentos bastam para testemunhar a fama e a admiração que essa mulher desfrutava, tendo tido sua escola de filosofia em Alexandria.

A sua morte, escreve Gibbon em "Declínio e queda do Império Romano", continua sendo "uma mancha indelével" sobre o cristianismo. Porque ela foi massacrada, parece, por uma multidão fanática, que foi incentivada à vingança, diz-se, pelo bispo Cirilo. Ela foi vítima, portanto, de um jogo pela conquista da supremacia política sobre a cidade de Alexandria: mas o delito inaugurava, com a época cristã, o horror da violência que invoca o nome de Deus em vão – pela verdade, em todos os lugares e os tempos em que uma religião se torna instituição de poder terreno. Estava há pouco tempo em vigor o Édito de Teodósio, com o qual, em 391, o cristianismo havia sido proclamado religião de Estado.

O Sinésio que citei é na realidade a voz de Mario Luzi, que, no esplêndido pequeno drama "Il libro di Ipazia" [O livro de Hipátia], publicado em 1978, faz do antigo discípulo da filósofa alexandrina a testemunha pensativa de uma época de passagem, de declínio e de nova barbárie: "Cidade verdadeiramente mudada, às vezes procuro entender / se no teu ventre gasto e desfeito / se agita uma nova vida / ou apenas a dissipação de tudo. / E não encontro resposta".

É essa voz de poeta que tomamos como guia para uma possível reflexão sobre a impotência da filosofia, da busca de razões e de luz também para a ação, quando ela deixa o seu "lugar alto, onde aninha a mente" e desce para a praça. Onde – como dizia um desconsolado amigo a Sinésio – "a intimação da verdade é uma arte de hoje, / como a persuasão o foi de ontem".

"Ágora", justamente, é o título do filme sobre Hipátia do diretor espanhol Alejandro Amenábar, que finalmente está chegando também a nós [italianos]. Diz-se que é "uma dura acusação contra todos os fundamentalismos religiosos", tão duro com relação ao neonato poder temporal da Igreja que chegou a sofrer até obstáculos e atrasos na sua programação na Itália.

Vejamos: enquanto isso, a figura desse bispo perplexo pode bem ser esplêndida para nos guiar na reflexão: "O seu destino parece hesitar incerto sobre ele".

Sinésio, ele mesmo neoplatônico, foi verdadeiramente eleito bispo de Cirene em seguida: quando ainda estava indeciso entre os dois mundos, ainda perdido no sonho da harmonia entre a razão que governa as coisas terrenas e o sopro sutil daquelas divinas. Em um tempo em que – ao invés, como justamente no nosso – "a sorte da cidade é precária / exige resoluções fortes, palavras claras no instante. / São necessárias ideias breves e divididas – ou cinismo".

Hipátia, depois, se tornou símbolo de muitas coisas. O contraste entre os Elementos de Euclides e a Bíblia, por exemplo – "as duas sumas do pensamento matemático grego e da mitologia judaico-cristã", como escreveu Odifreddi. Ou a possibilidade provada de que as mulheres também sabem pensar e se distinguir até nas ciências matemáticas: e se olharmos, em rede, encontraremos ainda muitas defesas, um pouco incôngruas, do pensamento "feminino" feitas em seu nome (enquanto parece ser difícil dar um sexo à geometria euclidiana).

Mas nós, ainda por um pouco, preferimos nos deixar guiar, antes ainda que pela voz de Sinésio, por aquela do poeta que o anima. Mario Luzi nos acompanha até no mais estreito cômodo noturno de Hipátia, onde essa mulher que "vê longe", longe ao ponto que "uma luz da aurora" emana "daqueles discursos acesos por um fogo de crepúsculo", conduz a sua última conversa com Deus. "Sou como tu és. Porque eu sou tu. / Tu e outro de ti".

Hipátia é pega de surpresa: e opõe resistência: "Por que te manifestas agora? Estou cansada / e acreditava-me realizada". É terrível a resposta: "Não sei ainda. Existe a enorme expansão do diferente, / do brutal, do violento, / contrário à geometria do teu pensamento / que tu deves verdadeiramente entender". Que tu deves verdadeiramente entender: Hipátia, assim, na perfeita fidelidade ao seu ser, que é amor pelo verdadeiro, pela filosofa, pela busca, Hipátia, a cuja palavra "acresce-se a temperatura do fogo", se dirige rumo àquele que ela já entrevê como o extremo sacrifício. "Não há retirada possível, Sinésio. / Alguns nos deram ouvidos, muitos creram / na força redentora da nossa voz de ciência e de razão. / Devemos evitar deixá-los em seu desengano?". E o poeta dá voz à esperança que, enfim, é a de todos nós, dos derrotados: "A nossa causa está perdida, e isso eu sei bem. / Mas depois? Que sabemos do depois? / O fruto estourado dissemina os seus grãos".

Mas não há escapatória. Hipátia é arrastada a uma igreja e feita em pedaços. "Assim termina o sonho da razão helênica. / Assim, no chão de Cristo".

Hipátia e a sua Ideia são emblemas de um tal espessor, de uma tal profundidade intelectual e espiritual e de um modo de ser feito de luminosa intransigência (tão diferente daquele de Luzi, embora também preso no sentimento do absoluto), que eu fantasio às vezes se se poderia tratar de uma figura capaz de encarnar uma verdadeira alternativa – naqueles anos – à dialética indulgência de Sinésio. Assim como de Luzi.

Uma última e desconsolada luz de inteligência ilumina uma cena que se restringe medrosamente depois dessa tragédia. Alexandria é uma recordação distante e também o grito dos mundos, assim como a transvalorização dos valores. A cena termina em uma Cirene diminuída, até coincidir justamente com aquela cena tão pequena e mesquinha que é a nossa de hoje: "Muitas vezes me repito: / sem uma ideia de si / a ser dada ou defendida / não se reina, se desliza a intrigas de taverna".

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