quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Olgária Mattos


A democracia pós-moderna

Olgária Mattos é filósofa, professora titular da Universidade de São Paulo.
Fonte: Carta Maior



A democracia moderna se expressa na idéia de espaço público, cuja certidão de nascimento foi a polis grega. Inventora da política, esta significou o advento da isonomia (as mesmas regras válidas para todos os cidadãos), da isegoria (todos podendo tomar a palavra em público) e da democracia, porque todos igualmente legisladores. Findava então o poder privado, cujos modelos foram o pater familias, o comandante militar e o chefe religioso. Por isso, a democracia moderna se fundava em leis pan-inclusivas e universalizantes, baseadas no indivíduo considerado racional e livre. Suas instituições mediavam conflitos e acordos, como partidos, sindicatos, federações patronais, movimentos sociais e organizações de base, que produziam uma determinada representação de si constituindo, assim, sua identidade.

A democracia pós-moderna é "democracia sem democratas". Substituiu o sujeito da intimidade por uma identidade pessoal sem pessoa, baseada não em valores morais admiráveis e dignos de renome - como Sócrates que, por seu modo de vida filosófico, tornou-se o patrono da filosofia -, mas no modelo das celebridades, a que, na política, correspondem "conselheiros em comunicação". Se a democracia moderna valia-se do “decoro e do discreto”, estes indicavam o que deveria estar “ fora do campo de visão”— o obsceno, o “excluído da cena, o intolerável ao olhar ou ao pudor (assassinatos, grandes deformidades corporais, crueldades, pornografia, sentimentos pessoais, emoções, preferências religiosas ou sexuais). A democracia pós-moderna, ao contrário, promove a desinibição, triunfando a visibilidade total, uma vez que tudo merece ser visto, tanto o palco quanto os bastidores, o corpo, a consciência e o inconsciente. Da sala de estar ao quarto de dormir, tudo deve ser “democratizado” porque neles também há injustiça, poder e dominação, como na sociedade.

Desaparece a Lei moderna que postulava os homens responsáveis e iguais, de modo que a justiça pós-moderna os entende “particularizados” em grupos. Porque a pós-modernidade é a da sociedade de massa, do consumo e do espetáculo, a individualidade se faz segundo o que Freud denominou “narcisismo das pequenas diferenças” e René Girard de “rivalidade mimética”. Todos desejam as mesmas coisas porque um outro já as desejou antes de nós e é seu possuidor, devendo, como concorrente, ser destruído.

A justiça moderna investigava a “verdade” para estabelecer o dano e a reparação. A pós-moderna preocupa-se apenas com a formalidade das condições em que ela veio a público. Não que prescinda da lei, mas a cumpre no âmbito de insegurança jurídica, dando espaço a ilegalidades. De onde a objetividade do mundo ter-se convertido em negociações entre vítima e juiz, de que decorrem os pedidos de indenização material. Tudo se torna objeto de legislação: assédios, discriminações raciais, religiosas, de sexo, no espaço público, na esfera privada e da intimidade. Nos EUA, a legislação anti-tabagista ingressa no recinto da própria residência do fumante, que pode ser denunciado por familiares ou vizinhos descontentes.

A idéia de igualdade pós-moderna é a da proliferação de regulamentações, adaptadas ao consumo de direitos em uma sociedade que não é mais moderna - a do contrato social - mas pós-moderna - a da guerra de todos contra todos. A democracia pós-moderna associou política e dissimulação, resultando o prestígio da "sinceridade". Assim, se a política moderna se exercia na "distância" do governante no espaço público, a pós-moderna é a da intimidade midiática que exibe o "autêntico". O representante político é construído como "homem comum", com seus vícios e virtudes, para ser amado ou odiado. Aqui operam os mecanismos de massa que fazem do governante o “bode expiatório”, como mostram Michel Aglietta e André Orléan em "A Violência da Moeda".

A igualdade moderna supunha diferenças - sexuais, étnicas, raciais ou religiosas - a serem reconciliadas, a pós-moderna as estabelece positivadas. Nessa entidade sedentária, há o direito à diferença mas visando a igualdade de inclusão social no mercado onde sobrevive o mais “apto” a conquistar seus “ privilégios” (privus lex, private legus, sendo, justamente, “lei privada”, o “favor” no direito medieval europeu). O mercado requer dissolução da individualidade, compreendida como obstáculo ao consumo e ao mercado padronizador. De onde o fim da diferença - entre as gerações, entre os sexos, entre a linguagem oral e a escrita, entre os comportamentos formais e os informais.

Todos cedem à palavra de ordem “flexibilidade”, a primeira e a última qualidade que o mercado exige de cada um.
[grifos do blog]

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Umberto Galimberti


A Internet e o modelo da ágora

"Na projeção do futuro, estão os sinais da mudança. Trata-se de uma mudança que é radical porque ocorre em uma linguagem, a virtual, que um poder muito velho nos seus hábitos mentais e nos seus esquemas perceptivos não só sofre para entender, mas nem se dá conta de sua força e de seu poder." Essa é a opinião do o filósofo, psicólogo e psicanalista italiano Umberto Galimberti (foto), em artigo para o jornal La Repubblica, 10-12-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS

Por ocasião do No-B Day [No Berlusconi Day], os corpos se materializaram na praça, mas a sua convocação ocorreu por meio daquela realidade desmaterializada que é a Rede, onde o espaço é abolido, o tempo é tornado instantâneo, e as pessoas fazem o seu desaparecimento com a vicária cumplicidade daquele seu sósia que é o alter-ego digital.

Certamente, existe uma bela descontinuidade entre a ágora antiga, onde as palavras eram acompanhadas pelos gestos, os gestos dos olhares, e os olhares, traindo as intenções, podiam desmascarar os nunca resolvidos jogos entre mentira e verdade. Mas se olharmos as coisas mais de perto, essa descontinuidade se reduz, se for verdade que o modo ocidental de pensar, nas suas expressões matemáticas e filosóficas, tomou rumo justamente com a rejeição da percepção sensível, para inaugurar aquele pensamento imaterial que encontra a sua articulação nos construtos da mente, que permitem aportar naquela realidade considerada perfeita, porque liberta dos limites da matéria.

Não por acaso, Platão escreve: "Aproximar-nos-emos mais ao saber quanto menos tivermos relação com o corpo". E 2000 anos depois, Descartes, inaugurando o método científico, escrevia: "Dado que os sentidos às vezes nos enganam, quis indicar que nenhuma coisa é tal qual os sentidos fazem com que percebamos, porque não conhecemos os corpos pelo fato de os vermos ou os tocarmos, mas pelo fato de os concebermos por meio do pensamento".

Se essa é a tradição do pensamento ocidental, que iniciou na ágora grega onde se ensinava a prescindir dos limites da matéria, e por isso dos corpos e dos sentidos, existe uma perfeita continuidade entre o hiperurâneo [mundo das ideias] platônico, a abstração matemática, o cogito cartesiano e a realidade virtual, capaz de dar, na comunicação desmaterializada, o efeito da realidade material sem os condicionamentos da matéria.

A difusão do teletrabalho, a observação de realidades inobserváveis de outros modos próprios da biologia molecular e da genética, até o sexo virtual com parceiros virtuais, ou a idealização de uma "second life" com relação à vida insatisfatória que nos cabe viver fizeram da ágora virtual algo mais poderoso e não menos real do que a antiga ágora material. Mas o que é verdadeiramente surpreendente é que a ágora virtual traz pistas justamente sobre o tipo de pensamento que foi inaugurado na antiga ágora grega.

Protagonistas da sociedade virtual são os jovens, que ninguém convoca na sociedade real, que ninguém chama pelo nome. Ignorados no mundo adulto, eles inauguram uma praça onde se encontram, e onde o mundo adulto, que lhes excluiu, tem acesso com alguma dificuldade. O seu comunicar, chamar-se e convocar-se por via telemática indica uma modalidade de socialização e de trocas relacionais ainda não suficientemente consideradas pelo mundo adulto, que sob esse perfil parece arcaico. E nessa indicação, está a configuração do futuro, que só quem é jovem é capaz de projetar e de sonhar.

Na projeção do futuro, estão os sinais da mudança. Trata-se de uma mudança que é radical porque ocorre em uma linguagem, a virtual, que um poder muito velho nos seus hábitos mentais e nos seus esquemas perceptivos não só sofre para entender, mas nem se dá conta de sua força e de seu poder. Porque é poder comunicar sem os limites do espaço, sem as esperas do tempo, sem a gravidade dos corpos, sem o impedimento da matéria. E justamente aqui pode nascer a fresta de esperança que Pier Luigi Celli justamente via fechada aos jovens se esperada do mundo adulto. Os jovens não esperam mais o futuro dos adultos. Com a sua praça virtual, eles simplesmente o assumem.

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