quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Wilker Sousa

Indagações sobre o mal

As muitas incertezas que rondam o mal são um convite à reflexão sobre a experiência humana


Por Wilker Sousa
Fonte: Revista CULT


Questionada sobre quais de suas obras mais estimava, Clarice Lispector citou o conto “O Ovo e a Galinha” e também “uma coisa que eu escrevi sobre um bandido”. A escritora aludia à crônica “Mineirinho”, publicada nas páginas do Jornal do Brasil. Naquele texto breve e prenhe de sensibilidade, Clarice demonstrava sua revolta mediante a brutalidade com que a polícia carioca assassinara um bandido conhecido como Mineirinho. Paralelamente à enumeração de cada um dos 13 tiros disparados à queima-roupa, o texto narra o crescente percurso de perplexidade vivenciado pela autora até culminar na mais completa comiseração: “O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”. Se o propósito do policial era matar o bandido, o que o teria levado a disparar 13 tiros, quando apenas um bastaria?

Trivialidade

A convite da revista New Yorker, a filósofa Hannah Arendt foi a Jerusalém em 1961 fazer a cobertura do julgamento de Adolf Eichmann, integrante do Reich responsável pelo transporte de milhares de judeus para os campos de concentração. Arendt via na experiência totalitária a cristalização do chamado “mal radical”, pois o regime nazista eliminara a espontaneidade e a liberdade individual dos homens, tornando-os supérfluos, o que resultou em Auschwitz. Ao acompanhar o julgamento, a filósofa não deparou com a personificação da malignidade e do antissemitismo. Ao contrário, o réu não demonstrava qualquer aversão ao povo judeu. Tivera inclusive uma amante e um amigo de escola judeus.

O que o motivara, então, a colaborar com tamanha barbárie? Tão somente acatar e cumprir prontamente as ordens que lhe foram passadas. “Ele estava perpetrando um mal radical, por conta da descartabilidade do ser humano. No entanto, o fez sem se dar conta da monstruosidade”, explica o jurista Celso Lafer, autor de A Reconstrução dos Direitos Humanos, um Diálogo com o Pensamento de Hannah Arendt (1988). “O que Hannah Arendt aponta em sua análise sobre o regime nazista é que deixou de haver uma normalidade tal como nós a entendemos. A normalidade nazista baseava-se num estado que perpetrava o mal radical. Por causa disso, alcançou também aqueles que estavam por perto, inclusive o cidadão comum e as próprias organizações da comunidade judaica que, tentando evitar um mal maior, acabaram contribuindo para que o mal se perpetrasse”, completa Lafer. Com base nessa inabilidade de pensamento e na completa ausência de sensibilidade por parte de Eichmann, Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal”, desenvolvida no livro Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal (1963).

Guardadas as devidas diferenças histórico-sociais, não seria exagero supor que as categorias do “mal radical” e da “banalidade do mal” se aplicam à experiência do século 21. A assustadora frieza da qual padecia Eichmann parece encontrar terreno fértil para propagação em meio ao modo de vida contemporâneo, cujo ritmo alucinado acaba por acentuar o apagamento do indivíduo e, por conseguinte, minar a alteridade. Segundo o psicólogo Antonio de Pádua Serafim, “as pessoas que apresentam um comportamento de maldade têm antes um defeito na formação do caráter. O caráter é constituído de sentimentalismo, que é a capacidade do indivíduo de se colocar no lugar do outro e ter respeito pelo outro. O que nós encontramos é um grupo de pessoas que não têm isso”. Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Instituto de Psiquiatria da USP (Nufor), Antonio é enfático ao comentar a influência do modo de vida contemporâneo na ocorrência de crimes atrozes: “Sem dúvida. Hoje vivemos um aumento da violência urbana e, além disso, a globalização exige o ‘ter’ e não necessariamente o ‘ser’. Existe uma competitividade muito grande. Essa condição sociofuncional é de fato um disparador para a ocorrência dessas características”.

Inato?

A despeito dos fatores sociais que possam favorecer sua prática, o mal é inato? Indivíduos que cometem crimes brutais e também aqueles com comportamentos considerados “malévolos” trariam o mal marcado em seus DNAs? “Com relação à maldade, eu acredito que exista uma predisposição biológica. É muito difícil um psicólogo falar assim, mas eu tenho uma formação mais psicobiológica. Há pessoas que têm algumas predisposições na sua genética e a interação com determinados estilos de ambiente vai potencializar essas características”, defende Antonio Serafim. Crer na predisposição biológica para o mal não significa, contudo, considerá-lo uma doença, acredita o psicólogo: “É uma necessidade pura e simples de destruição. As pessoas que cometem isso não são necessariamente doentes. (…) Não são doentes do ponto de vista nosológico [ramo da medicina que classifica doenças], mas são diferentes da normalidade ao vivenciar as características da maldade”.

Há 11 anos Ilana Casoy dedica-se ao estudo de crimes violentos. Pós-graduanda em criminologia pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), é autora de quatro livros nos quais investiga o perfil criminal de serial killers nacionais e internacionais. Com base no conhecimento e na experiência que acumulou acerca do tema, mostra-se contrária à patologização do mal: “Minha grande preocupação é como, mais uma vez na história, voltamos a achar que o mal tem uma explicação médica. Novamente, nós vamos ter um positivismo agora revestido de uma linguagem mais moderna, como se o senso moral viesse impresso no DNA. Eu temo um pouco esse discurso. Nós temos de cuidar como um todo”. No que se refere ao perfil do criminoso violento, Ilana afirma que “às vezes é um indivíduo com baixíssima tolerância à frustração, que tem um entendimento completo do certo e do errado, mas com uma dificuldade de controle da sua própria vontade, sem que isso seja uma doença mental”.

De olhos vendados

Se a biologização do mal está revestida de polêmicas, opiniões convergem quando o assunto é a influência de um quadro social desfavorável na perpetração da maldade. Ilana comenta que, na grande maioria dos casos que estuda, o histórico dos criminosos já prenunciava o pior: “Eu vejo vidas em vermelho. Quando se escuta a vida desses indivíduos, questiona-se aonde mais poderiam ir. Certamente é um histórico que não era base para um bom futuro. Isso não é regra, mas é a enorme maioria”. Para que se possa coibir tragédias futuras, Antonio Serafim defende a intervenção de profissionais desde a infância de indivíduos agressivos: “Há crianças com características agressivas acima da normalidade e não se faz um trabalho de prevenção com relação a isso. Elas poderiam ser avaliadas e, se submetidas a intervenções precoces, a possibilidade de se transformarem em pessoas mais violentas seria reduzida”.

Trabalhos preventivos, contudo, esbarram no preconceito e na cultura da reparação de males. “Quando se avalia uma criança e se diz que ela é agressiva, pensam que é estigmatização. Há um preconceito com relação a isso, mas na verdade é uma prevenção. (…) Eu sou favorável a que haja a prevenção, mas o Estado brasileiro, infelizmente, é mais reativo”. A postura do Estado brasileiro, à qual se refere Antonio Serafim, é reflexo do discurso preponderante da defesa de políticas voltadas à segurança pública em detrimento de ações preventivas. Afinal, os resultados da coerção são mais palpáveis e passíveis de se tornarem estatísticas. Embora a discussão sobre nosso código penal seja inegavelmente salutar, não se pode, contudo, olhar apenas a ponta do iceberg, acredita Ilana: “Quem pensa a lei nunca vai resolver a criminalidade. O que vai dar frutos são a educação e a inclusão. Com lei eu não acho que se resolva. Vivemos hoje uma era de muita judicialização da solução. Tudo é matéria penal”.

Delegar ao Estado a tarefa de coibir o mal parece, em última instância, uma tentativa de afastá-lo com todas as forças da vida cotidiana, como se houvesse um hiato entre o mal radical, simbolizado na barbárie que alavanca a audiência dos noticiários, e a benevolência inconteste do cidadão comum. Quadro salvador, não fosse tolo. Desafiador, porém, é desmontar simplismos, vislumbrar a alteridade perdida e “atravessar o mal sem se julgar uma encarnação do bem”, parafraseando Tzvetan Todorov.

Franklin Leopoldo e Silva

A incompreensibilidade do mal.
Diante do mal, o que está em jogo não é explicação ou compreensão, mas sim revolta ou resignação


Por Franklin Leopoldo e Silva, professor titular de História da Filosofia Contemporânea da USP.



Se a filosofia é a tentativa de compreensão da condição humana, então a questão do mal ocupa o centro das preocupações – e a marca profunda que a tradição socrático-platônica deixou na constituição da herança filosófica bastaria para atestá-lo. Mesmo quando o questionamento se dá por via de uma racionalidade mais formal e orientada por paradigmas que desprezam as orientações ditas “metafísicas”, o mal não deixa de aparecer como uma constatação inseparável de certa perplexidade, oculta sob a aceitação dos limites da razão e do rigor da argumentação. Mais do que isso, ainda que o cinismo, contemporaneamente tão difundido, nos faça aceitar o mal como realidade dada ou como banalidade, essa pretensa certeza primária não nos isenta do incômodo presente na má-fé inerente ao conformismo e à indiferença ética.

Concepções tradicionais do bem e do mal

A fabulação mítico-religiosa, de que fala Bergson em As Duas Fontes da Moral e da Religião, isto é, o conjunto de representações imaginárias que procuram responder a questões situadas além do alcance da vocação pragmática do entendimento, não possuiria função explicativa, mas, sobretudo, vital: possibilitar a convivência com os acontecimentos incompreensíveis que nos afetam, que nos transformam, que nos fazem sofrer e que podem nos destruir. As adversidades naturais, a ira dos deuses, a culpa originária, os ciclos em que se manifesta a fatalidade: tudo aquilo que não podemos prever ou controlar naturalmente, mas que podemos, talvez eventualmente, conjurar por meio da invocação de forças que nos superam e da observância de interditos que nos lembram da posição relativa que ocupamos no universo.

Mas há também as decisões e ações que derivam de nossa liberdade. Desde Aristóteles, persiste a ideia de que a prática é muito mais complexa do que a teoria, porque no universo das ações não podemos mobilizar e esgotar todos os elementos que nos proporcionariam a certeza do acerto das escolhas. O bem não é demonstrável como a verdade. Tudo que podemos fazer é contar com um discernimento, espécie de sabedoria prática, que empregamos na tentativa de que nossas opções se orientem pelo critério do melhor possível, sem esperar a segurança proporcionada pela dedução da verdade teórica. Por isso o mal nos espreita como presença proporcional ao grau de imprudência a que estamos, inevitavelmente, sujeitos.

A filosofia cristã enfrenta ainda outra dificuldade. Como Deus só pode ser considerado como o bem e causa do bem, a criação está necessariamente impregnada de bondade e perfeição, o que torna o mal inexplicável do ponto de vista da criação divina. A rigor, o mal não deveria existir. Para dar conta de sua presença na experiência humana, Santo Agostinho apela para a diferença entre o relativo e o absoluto. Criaturas limitadas que somos, e inclinadas à corrupção desde o pecado original, não discernimos, em nossas escolhas, o bem absoluto que deveria ser a nossa meta, mas nos contentamos com os bens relativos, exacerbando-lhes a dimensão e o significado, de modo que apareçam como absolutos. Em outras palavras, não distinguimos, via de regra, o fim supremo dos meios relativos pelos quais poderíamos atingi-lo. Assim nunca escolhemos o mal, porque ele em si mesmo não existe; escolhemos um bem menor e o elegemos como o que de maior poderíamos desejar.

O mal no pensamento cartesiano

No racionalismo cartesiano encontramos uma versão moderna dessa concepção. A trajetória de reconstrução da filosofia em Descartes é bem conhecida: a afirmação da existência do eu pensante como evidência que resiste a qualquer dúvida; a prova da existência de Deus, princípio da verdade por ser a garantia das representações claras e distintas a que chega o sujeito. Diante de tão fortes referências metodológicas e metafísicas, como o erro ainda pode acontecer? De modo mais amplo: a partir de Deus como afirmação absoluta da verdade e do bem, como pode ter lugar a negatividade do erro e do mal? A solução de Descartes é engenhosa, muito significativa do ponto de vista da promoção de valores modernos, e consiste numa aplicação peculiar do racionalismo como estratégia de justificação. A faculdade pela qual nos assemelhamos a Deus, já que fomos feitos à sua imagem, não é, como se poderia pensar, o entendimento, e sim a vontade, cujos limites não se pode assinalar, já que o poder de afirmar e de negar estende-se indefinidamente. Se acentuarmos os traços dessa concepção, poderemos dizer que a liberdade humana é infinita. Isso produz um desequilíbrio: sendo o entendimento finito – e mesmo bastante limitado –, a liberdade, isto é, a vontade ilimitada, nos leva a produzir juízos sobre coisas que estão além da compreensão intelectual, caso em que podemos errar e pecar.

A tese é paradoxal: aquilo que nos faz semelhantes a Deus é também aquilo que nos leva ao erro e ao pecado. Mas é também uma estratégia eficiente quanto ao poder explicativo da dificuldade em pauta: Deus nada tem que ver com o erro e o mal, já que não podemos contestar a dimensão finita do entendimento, o que é natural e coerente em criaturas finitas; e muito menos podemos lamentar a liberdade absoluta, que é em si mesma um bem, pois nos remete à nossa origem divina. Com efeito, a desproporção entre intelecto limitado e vontade ilimitada diz muito sobre a nossa natureza: somos criaturas e, nesse sentido, não somos perfeitos; mas somos criaturas de Deus e, nesse sentido, trazemos em nós a marca da perfeição do criador. Ontologicamente, a natureza da criatura traz em si uma divisão: de um lado, a absoluta perfeição do criador, isto é, sua realidade infinita; de outro, o nada de que fomos feitos, ausência de ser e negatividade. Isso permite entender por que podemos desejar tudo e podemos saber muito pouco. E nos ajuda a entender também o aspecto ético da divisão que nos afeta: o ser em plenitude, isto é, o bem, e o não ser, o nada, ausência do bem.

Mas essa desproporção não nos condena ao erro e ao mal. A completa liberdade de que dispomos não apenas nos conduz a afirmar ou a negar qualquer coisa, mas também a suspender o juízo nas circunstâncias em que o entendimento não oferece suficiente respaldo para emitir um juízo. Lembremo-nos do principal preceito metódico: só devo aceitar como verdade representações claras e distintas. Quando não disponho delas, a prudência recomenda permanecer no estado de suspensão de juízo, para não cair em erro. Ora, há que se observar que as verdades da fé estão além do entendimento e, no entanto, são necessárias para orientar eticamente a conduta, pois justificam escolhas e ações que muitas vezes não poderiam ser submetidas à racionalidade do juízo objetivo. Nesse caso, se admito que tais verdades se situam além do poder de conhecimento e, portanto, além da dúvida, devo aceitá-las por via de outros critérios, aqueles que regulam a crença, mesmo porque os fundamentos da crença, como por exemplo a existência de Deus, podem ser submetidos ao crivo da razão.

Aparência racional à prática do mal

Como se vê, a solução cartesiana consiste em mostrar que a liberdade de errar é também a liberdade de não errar; que o estatuto do mal é negativo, posto que provém do que em nós se opõe ao ser e ao bem; e que, se a liberdade for regulada pela razão, valorizaremos aquilo que em nós é positivo, isto é, a verdade e o bem. Esse poder atribuído à razão é coerente com um humanismo racionalista. Mas a experiência histórica indica que a liberdade pode produzir opções que a razão é levada a justificar a posteriori, fenômeno que se designa como racionalização e que, paradoxalmente, faz com que a razão justifique condutas irracionais, caracterizadas pela escolha do mal. Isso porque do fato de que a razão pode limitar a liberdade não decorre que sempre o faça e, portanto, a razão pode desempenhar nessa relação outro papel: conferir aparência racional à prática do mal.

Mas isso não ocorre apenas por via de um equívoco racional; a causa é também uma contradição que pode acontecer no uso da liberdade, quando o indivíduo abdica de sua condição de sujeito da própria liberdade, entregando-a a poderes que o sobrepujam absolutamente. Os grandes exemplos, como se sabe, foram as manifestações de violência do século 20 que produziram os genocídios, isto é, o mal racionalmente administrado: Auschwitz, Gulags, Hiroshima.

Perplexidade e ação

Tais experiências levam-nos a duvidar de que o mal seja apenas a ausência de ser e de realidade, que ele só possa ser indiretamente definido como falta ou privação. Os argumentos racionais, nesse caso, não logram se sobrepor à realidade dos fatos e a situações em que o mal aparece não apenas como dotado de efetividade, mas até mesmo tendendo para o absoluto. Isso acontece principalmente quando o mal governa as relações humanas. O que há de perturbador, nos episódios que citamos, é a dificuldade em distinguir a loucura da razão, a civilização da barbárie, já que eles parecem ser uma fantástica confluência dos dois elementos.

Assim, é a reflexão que nos leva ao espanto, e é este que nos leva às interrogações angustiadas. Como poderíamos reduzir a meras aparências ações como a tortura, o assassinato, a opressão e a dilapidação da dignidade? Se nos sentimos constrangidos e incomodados quando temos de admitir a naturalidade de catástrofes como inundações ou terremotos, como poderíamos considerar que o sofrimento que um ser humano inflige a outro seria apenas a aparência localizada do bem em sua totalidade? Se temos dificuldade em admitir que o castigo pode ser fruto da justiça divina, como poderíamos entender que a dor e a morte provocadas pelo próprio homem possam estar inseridas numa arquitetônica racional do mundo?

Talvez devamos aceitar o caráter incompreensível do mal, isto é, que, diante dele, o que está em jogo não é explicação ou compreensão, mas sim revolta ou resignação. E que o mal e o bem, na medida em que se referem à nossa liberdade, dizem respeito à afetividade, à relação não reflexiva que mantemos com nós mesmos e com o que nos transcende, sejam os outros, seja Deus. Nesse tipo de relação, em que a negatividade aparece por vezes como uma potência assustadora, é provável que a perplexidade predomine sobre o entendimento, mas é possível também que ela nos mova e nos faça agir tanto ou mais do que o conhecimento.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Márcio Zuzuki

Razão e bom humor. A pequena grande filosofia de David Hume

Nascido há 300 anos, Hume marcou a história da filosofia com seu ceticismo "mitigado", que questiona a superioridade da razão em relação ao instinto. Ao aliar serenidade e bom humor à investigação intelectual, concebeu a filosofia como atividade galante, que se vale da diversão e da imaginação livre para resolver problemas. O artigo é de Márcio Zuzuki, professor de Filosofia da USP, e publicado no jornal Folha de São Paulo, 07-08-2011.
Fonte: UNISINOS


É provável que boa parte da atração que o leitor sente ao contato com os textos de David Hume (1711-76) ainda hoje, nos 300 anos de seu nascimento, se deva à saudável inquietação que provocam.

Enquanto Descartes (1596-1650) procura extirpar os "preconceitos da infância" à força de uma intensificação hiperbólica da dúvida, lançando mão de recursos retóricos e cênicos como o gênio maligno e o deus enganador, Hume avança teses frontalmente contrárias ao senso comum sem alterar o tom, procurando evitar que o leitor reacenda no espírito suas prevenções costumeiras.

Será verdade que o instinto é mais importante para a vida que a razão? E que o raciocínio de causa e efeito não tem origem racional, mas é fruto de uma conjunção fortuita, a que apenas educação e hábito dão consistência?

Levar o leitor comum a se convencer da verdade de tais proposições supõe uma concepção peculiar do exercício filosófico e literário, que pode ser explicado como busca de um ajuste fino entre excentricidade e bom senso, cujo indicador se exprimiria por sinais de serenidade e bom humor. Quanto maior o destempero, maior o indício de que se perdeu a razão, ensinava Shaftesbury (1671-1713). Na mesma linha, Hume definiu sua filosofia como ceticismo temperado ou "mitigado", por oposição ao ceticismo excessivo ou de "cabeça quente".

OBRA

O primeiro livro que Hume publicou, em 1739-40, o "Tratado da Natureza Humana" [trad. Déborah Danowski, Editora Unesp, 2000, 712 págs.], quase não teve repercussão. A obra era pesada demais, e seu fracasso levou, felizmente, o autor a repensar sua maneira de escrever.

Em 1742 saem os "Ensaios", bem mais acessíveis, nos quais mimetiza os artigos de Addison na revista "Spectator". Foram 17 reedições durante a vida de Hume; junto com a "História da Inglaterra", contribuíram para seu renome como escritor. Em 1748, ele publica a "Investigação sobre o Entendimento Humano" e, em 1751, a "Investigação sobre a Moral" [Editora Unesp, 2003, 438 págs.], a qual ele próprio considerava sua obra mais bem-acabada.

Reações eclesiásticas a esses escritos não se fizeram esperar. Por causa deles, Hume não foi aceito como professor na Universidade de Edimburgo e, posteriormente, na Universidade de Glasgow. Em 1756, sofreu um processo de excomunhão, sendo absolvido pela Assembleia Geral da Igreja da Escócia. Em 1757, publicou a "História Natural da Religião", e em 1779, três anos após sua morte, aparecem os "Diálogos sobre a Religião Natural" [trad. José O. A. Marques, Martins Fontes, 1992, 188 págs.].

GRANDEZA E BAIXEZA

Apesar do sucesso como escritor, a imagem que provavelmente ficou de Hume no público britânico em geral é aquela que Samuel Johnson deixou dele: a de um "homem infiel, embora benevolente e bom".

Sabe-se hoje que a apreciação de Johnson sobre o filósofo escocês se deve menos a leituras de suas obras e ao pouco contato pessoal que teve com ele do que àquilo que lhe foi soprado por seu grande biógrafo, James Boswell. Seja como for, a disputa entre o grupo ligado a Johnson e o ligado a Hume foi decisiva para os rumos da vida filosófica, artística e literária na Grã-Bretanha.

Um exemplo, entre tantos outros: Edgar Wind escreveu um estudo admirável sobre a pintura britânica do século XVIII, "David Hume e o Retrato Heroico: Estudos sobre a Imagística no Século XVIII" [Oxford University Press, 146 págs.], no qual procura mostrar que as diferenças de estilo nos retratos dos dois maiores pintores do século XVIII na Grã-Bretanha, Joshua Reynolds e Thomas Gainsborough, se devem a concepções filosóficas antagônicas a respeito da natureza humana.

A arte de Gainsborough representaria uma visão rebaixada do homem, sustentada no ceticismo humiano, que afirma que a razão humana é muito fraca se comparada ao instinto e, portanto, não muito superior à razão encontrada nos animais. Já a grandiosidade das figuras nos retratos de Reynolds se explicaria como reação a esse rebaixamento do homem e de sua razão. Reynolds teria buscado fazer jus a uma concepção "heroica" do homem, que ele partilhava com Johnson e com o filósofo James Beattie, adversário de Hume.

CRISTIANISMO

Que a filosofia humiana tenha conseguido provocar reações contrárias de religiosos e do grupo próximo a Johnson é algo que dá o que pensar, já que a desconfiança em relação aos poderes da razão é um traço que aproxima o ceticismo do cristianismo. Hume teria apenas errado na dose, mas o fez, sem dúvida, com toda a consciência.

Ao final dos "Diálogos sobre a Religião Natural" há um texto em que a aproximação do cético e do crente é expressa de forma magistral: o indivíduo que tem justa noção das imperfeições da razão natural se voltará para a verdade revelada, ao contrário do dogmático arrogante, que imagina poder fundar a teologia sobre um sistema racional perfeito. No homem letrado, ser cético é, portanto, paradoxalmente passo indispensável para se tornar crédulo.

A interpretação do trecho é controversa. Muitos dizem se tratar de uma das (não poucas) ironias de Hume.

Outros podem nela enxergar semelhanças com Pascal: a ciência é causa de orgulho e soberba. A insignificância do homem diante da imensidão do cosmo faz o cético se convencer de que, para o universo, "a vida de um homem não tem mais importância que a vida de uma ostra".

ALEMANHA

Na Alemanha, a reação cristã ao ceticismo de Hume foi oposta. Lá, ele foi reconhecido como aliado estratégico por Hamann e Jacobi, que viram na crítica às provas da existência de Deus uma defesa importante dos milagres e da revelação, contra a voga das teologias racionalistas surgidas com o Iluminismo.

Hamann e Jacobi fizeram uma interpretação original da noção humiana de crença. O escocês afirma que, assim como não há raciocínio que demonstre a existência dos objetos externos, e que tudo o que fazemos é crer imediatamente naquilo que os sentidos nos apresentam, também não há raciocínio que possa provar a existência divina. Os dois filósofos alemães assimilaram os termos "crença" (belief) e "fé" (faith). Tudo passa pela fé ou pelo sentimento.

Em "David Hume ou sobre a Crença" (1787), Jacobi sustenta que a religiosidade não vem da adesão racional, mas de um sentimento íntimo, que leva à conversão por um "salto mortal".

Essas ideias tiveram sua importância para a crítica da filosofia racional em Kierkegaard (1813-55) e, por tabela, para os primórdios do existencialismo francês, dos quais Hume pode ser considerado um precursor (sobre esse estranho percurso, veja-se o estudo de Isaiah Berlin "Hume e as Fontes do Irracionalismo Alemão", que faz parte do livro "Against the Current. Essays in the History of Ideas", Princeton University Press, 2001.)

KANT

Hamann e Jacobi eram bem próximos de Kant (1724-1804), ele também bastante influenciado pela obra do escocês, a ponto de afirmar que foi Hume quem o despertou do "sono dogmático". Kant investiu anos de vida tentando mostrar que o raciocínio de causa e efeito não é fruto de repetição e hábito. O seu esforço é explicável: diferentemente de Hamann e Jacobi, Kant não se enganou sobre as reais intenções de Hume.

Embora a própria ideia de crítica da razão tenha no ceticismo humiano uma de suas mais fortes inspirações, era preciso lhe responder à altura, mostrando que entendimento e razão não são tão impotentes assim como ele queria fazer crer.

Até hoje corre muita tinta para saber quem, Hume ou Kant, venceu a controvérsia (a causalidade é um hábito originado na experiência ou um conceito "a priori" do entendimento?), que sobrevive em posições epistemológicas bem distintas, uma mais afeita a uma concepção racional do conhecimento, outra ao utilitarismo, ao positivismo lógico e ao pragmatismo.

FILOSOFIA GALANTE

Mas hoje também se sabe que os pontos de contato entre Hume e Kant não se restringem ao plano cognitivo, com suas implicações teológicas. Como muitos em seu século, o "Hume Prussiano" (como o chamou Hamann) se impressionou igualmente com a proposta de que a filosofia deveria ser concebida como um diálogo entre o homem galante e a lady sensível, ou como uma aliança entre o mundo acadêmico e o mundo dos salões.

Segundo essa concepção, o "gentleman" em sentido filosófico é alguém que não deve apenas subir aos grandes temas da metafísica, da moral e da política mas também descer às questões menores, que tocam diretamente a vida individual e social, como casamento, divórcio, comércio, avareza, amor, suicídio etc.

Ele se ocupa de problemas aparentemente banais e sabe falar sobre eles de maneira simples e refinada, gesto de gentileza e respeito para com o interlocutor e leitor. Para isso, precisa ter apuro na arte do ensaio, do epistolário e da conversa, formas que melhor captam e transmitem a vivacidade própria aos sentimentos e às relações entre os indivíduos. O leitor pode ter uma boa ideia dessa maneira de proceder no recém-lançado "A Arte de Escrever Ensaio e Outros Ensaios" [sel. Pedro Pimenta, trad. Márcio Suzuki e Pedro Pimenta, Iluminuras, 336 págs.]

Como um bom gourmet que sabe notar a presença de um condimento ou tanino determinando o sabor de um prato ou de um vinho, o filósofo deve ser capaz de sentir pequenas circunstâncias relevantes para a compreensão de um acontecimento e ter gosto refinado para poder avaliar a obra de arte mais complexa como o mais tarimbado dos críticos. A questão é discutida no "Un Bicchiere con Hume e Kant - 'Divertissement' Estetico-Metafisico (um trago com Hume e Kant, 'divertissement' estético-metafísico) [ETS, 164 págs., R$ 28]. Mas também precisa ter largueza de espírito para compreender por que uns julgam de maneira diferente dos outros (o que tem óbvia implicação para a compreensão e a aceitação das diferenças em política).

Essa atitude diante da diferença permite a Hume fazer observações deliciosas sobre os motivos por que alguém se apaixona por coisas que os outros consideram estapafúrdias ou irrisórias. Como os objetos e os fatos não existem fora da mente que os representa, só a imaginação em conjunto com a paixão pode lhes atribuir valor e significado.

O apego às ocupações, diversões e passatempos se explica da mesma maneira. Trabalho, entretenimento, jogos começam inocentemente, mas a paixão por eles cresce e pode aos poucos tomar conta do indivíduo. Eles não são viciosos ou ruinosos em si mesmos (nem os jogos de azar o são) e só se tornam tais se praticados de maneira excessiva.

MIRAGENS

Mesmo a mais trivial das ocupações tem valor para o indivíduo que nela se aplica - valor que está menos naquilo que se busca do que na própria atividade.

O dinheiro cobiçado na mesa de jogo, o javali freneticamente disputado numa caçada são apenas miragens que a natureza institui para nos impelir à atividade. Indivíduos mais excêntricos correm atrás de outros tipos de recompensa, como o imperador Domiciano (51-96 d.C.), para quem o troféu dos seus esforços eram as moscas que pegava.

Impossível demonstrar mediante argumentos, para quem gosta de sinuca, que o golfe é um esporte mais nobre, assim como, para o fã de música techno, que é melhor ouvir música clássica. A opção é só aparentemente irracional, pois se explica por um mecanismo natural, ligado ao instinto de conservação e prazer e ao temperamento de cada um.

Assim, tão importante quanto o refinamento do gosto e dos costumes é a atenção para as diferenças de sensibilidade e temperamento. Tal respeito pela diversidade explica por que Hume acertou bem mais do que Samuel Johnson no que se refere ao "Tristram Shandy" de Laurence Sterne (trad. José Paulo Paes, Companhia das Letras), romance inteiramente avesso ao gosto clássico de ambos. Em carta a William Strahan, de 1773, Hume diz que, nos últimos 30 anos, o melhor livro escrito por um "englishman" era o de Sterne -"por pior que ele seja" ("as bad as it is").

HOBBY

Alguns autores já observaram a afinidade do pensamento humiano com o do autor do "Tristram Shandy", aproximação pertinente, especialmente pelo olho que os dois têm para a atitude excêntrica. Essa aproximação, aliás, também já foi feita por Kant, na definição perspicaz que propõe para hobby, que diz: hobby é "a mais leve de todas as transgressões dos limites do bom senso", é "como um ócio atarefado, uma paixão em se entreter cuidadosamente com objetos da imaginação, com os quais o entendimento simplesmente brinca por distração, como se fosse um negócio". ("Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático", ed. Iluminuras).

E Kant comenta: só os sabichões, com sua "seriedade pedante", censuram o hobby, essa cavalgada num "cavalinho de pau" (tradução literal de "hobbyhorse"), e eles merecem a censura que Sterne lhes faz no livro I, capítulo 7, do "Tristram Shandy", no qual o narrador diz que cada um pode subir e descer como quiser a estrada real no seu cavalinho de pau, desde que não obrigue ninguém a se sentar na garupa.

Noutro lugar, mas no mesmo contexto, Kant dirá: "Porque cada um tem sua dose de doidice, é preciso que tenha paciência com as doidices dos outros".

Gosto e hobby não se discutem. A explicação que Kant dá sobre o hobby se vale dos princípios humianos e está próxima do jogo entre imaginação e entendimento encontrado na atividade estética e no gênio (onde também o fim que se busca não é exterior à atividade). Contrapondo-se claramente a Pascal, para quem a busca de diversão só poderia redundar em tédio, Hume ensinou que se distrair e divertir, além do valor terapêutico intrínseco ("ocupar a mente"), tem também um valor heurístico.

No final da "Investigação sobre o Entendimento Humano", há uma passagem conhecida, na qual ele afirma que, de tanto matutar um problema, o filósofo será acometido de melancolia e delírio, só curados não pela filosofia, mas pela natureza, muito mais sábia, que faz a mente buscar um relaxamento de seu esforço em entretenimentos como jogar gamão, jantar e conversar com os amigos.

Kant percebeu aonde ia dar o argumento: depois de algumas horas de diversão, o filósofo poderá voltar revigorado às suas lucubrações. Sua imaginação já não estará presa à ideia fixa que a impede de avançar na resolução de um problema. Descoberta e invenção dependem da mudança de atividade, fundamental para repor a imaginação em seu livre jogo.

IDIOSSINCRASIAS

O filósofo galante sabe compreender o que há de fundamental nas idiossincrasias dos outros e também brincar com as próprias. É o que Hume faz com sua entrega um tanto intemperada aos prazeres da mesa.

Mas o principal é que a singularidade deve ser respeitada, porque, se não é prova, pode ao menos ser sinal do novo. Como afirma o ensaio sobre "O Comércio", os pensadores "abstrusos" são mais interessantes do que os superficiais, porque "indicam caminhos" e "apontam dificuldades" que podem levar a "finas descobertas" de pensadores "mais ajuizados".

Para a filosofia séria, "profissional", há uma consequência bastante incômoda a tirar de todas essas ideias. É que, se toda ocupação é importante, não havendo razões para dizer que uma seja superior à outra, a conclusão também é válida para o sublime amor ao saber. Comparar a meditação filosófica a um passatempo frívolo qualquer parece, assim, perturbar muito mais do que todos os argumentos céticos ou cristãos sobre a fraqueza de nossa razão.

A lição de David Hume talvez resida nessa combinação de excentricidade e modéstia: o máximo que o exercício filosófico pode almejar são pequenas descobertas - ou, parafraseando Kant, transgressões judiciosas dos limites do bom senso.

[grifos do blog]

domingo, 17 de julho de 2011

Kierkegaard e Schopenhauer. Proximidades e rupturas

Natureza, arte, música são pontos que aproximam as filosofias de Søren Kierkegaard e Arthur Schopenhauer. A distância entre os pensadores se dá na maneira como veem Deus e compreendem alguns conceitos, além da percepção da existência, explica o teólogo e filósofo Deyve Redyson Melo dos Santos em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual Vale do Aracajú (UVA-CE) e em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), é mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e doutor em Filosofia pela Universidade de Oslo, na Noruega. Deyve é professor adjunto da Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Pesquisa na área de Filosofia da Religião com ênfase em Schopenhauer, Feuerbach, Kierkegaard, Nietzsche, Cioran e Idealismo Alemão. Escreveu, entre outros, Dossiê Schopenhauer (São Paulo: Universo dos Livros, 2009) e A Filosofia de Søren Kierkegaard (Recife: Elógica, 2004). Membro do Grupo de Pesquisa sobre a obra de Kierkegaard (CNPq), é o atual presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard (Sobreski).



IHU On-Line - Quais são os pontos de contato entre liberdade e vontade em Kierkegaard e Schopenhauer?

Deyve Melo dos Santos - A vontade para Schopenhauer será um dos pontos principais de sua concepção de filosofia. Para ele, a vontade é a coisa em si kantiana, e esta é a resposta que nenhum pensador conseguiu alcançar. Já a liberdade é o caminho para o encontro de si mesmo, isto é, Schopenhauer entende a liberdade como a ação primordial que fará do homem um ser que possa interagir com o mundo, com as coisas e com os seres. Interessante é pensar essas duas teorias juntamente com o pensamento de Kierkegaard, que tinha em Schopenhauer um exemplo de pensador, que elabora as categorias da filosofia e se põe a respondê-las. Ainda existe muita coisa a ser dita sobre a relação do pensamento de Schopenhauer e Kierkegaard, seja sobre a natureza, sobre a arte, sobre a música. Eles estão bastante próximos um do outro.

IHU On-Line - Não existe um antagonismo entre liberdade e vontade?

Deyve Melo dos Santos - Existe, e o fato deste antagonismo existir faz com que tanto em Schopenhauer como em Kierkegaard vejamos quais os questionamentos que hoje podemos fazer perante os conceitos de liberdade e vontade, se somos livres no pensar, ou se nossa vontade é condição de podermos ser quem somos. Penso que refletir sobre liberdade e vontade compreende duas tarefas difíceis, mas de importância fundamental à filosofia de hoje.

IHU On-Line - Como podemos compreender essas conexões de pensamento tomando em consideração a distância teórica que tem como ponto de partida tais autores?

Deyve Melo dos Santos - Realmente existe uma certa distância entre nossos dois autores, mas essa distância está presente na forma de ver Deus, na forma de compreender determinados conceitos e finalmente na forma de percepção da existência. Tentar fazer uma aproximação entre Schopenhauer e Kierkegaard é uma tarefa de constatar que a subjetividade e a objetividade são terrenos férteis quando falamos de natureza, de existência, de amor, de ironia, de vontade e, principalmente, do mundo como representação. Quando Schopenhauer inicia sua obra O Mundo como vontade e como representação, afirmando que O mundo é minha representação, ele fundamenta o caráter objetivista de sua teoria e, de forma uníssona, se liga a Kierkegaard quando este pensa que o universo é dotado de grandes características, e uma delas é a vontade.

IHU On-Line - E com relação aos seus pontos de vista sobre a religião, como é possível entender a aproximação entre ambos?

Deyve Melo dos Santos - No modo de entender a religião, a fé e o próprio conceito de Deus, Schopenhauer e Kierkegaard caminham diferentemente. A preocupação de Kierkegaard é com a instituição estatal que quer fazer de toda uma nação cristã e luta em busca de uma verdadeira concepção de cristandade. Schopenhauer condena toda e qualquer formulação de fé que seja baseada numa pretensa vida em dogmas e obrigações para com o divino. Na verdade, podemos também fazer um paralelo entre estas duas formas de ver a fé, pois ver o mundo como o pior dos mundos possíveis, como Schopenhauer faz, somente nos leva a entender que este mundo é um mundo de sentidos.

IHU On-Line - Qual é a diferença entre a crítica que fazem a Hegel?

Deyve Melo dos Santos - Schopenhauer é acusado de fazer muitos insultos a Hegel, Schelling, Fichte. É verdade. Schopenhauer afirma que Hegel é um filosofastro, um charlatão e várias coisas mais. Também podemos encontrar críticas bem formuladas com relação ao sistema da ciência de Hegel, que somente encontra espaço no absoluto. A crítica de Schopenhauer a Hegel está centralmente localizada na ideia do absoluto e na forma com que esse absoluto chega no sistema hegeliano. A típica pergunta que para Schopenhauer, e a mais importante é: por que, na Ciência da Lógica, Hegel tem que começar com uma ideia de ser que não é o ser mesmo? ou o ser que podemos entender como ser? Kierkegaard segue o mesmo caminho: não aceita uma verdade absoluta, como Hegel quer entender no seu sistema. Kierkegaard acredita que Hegel nega a identidade de fundo irônico em Sócrates e por isso entendeu o mundo como universal. Para Kierkegaard, esta ironia como negatividade infinita absoluta é o eterno, isto é, a constituição máxima do real enquanto explicação dele mesmo. Interessante também é pensar o sistema da ciência de Hegel e de como sua influência fez com que tanto Schopenhauer e Kierkegaard estivessem tão próximos um do outro.

IHU On-Line - Como você entende as concepções de arte em Kierkegaard e Schopenhauer? Que aspectos apontam em comum e quais são as maiores rupturas?

Deyve Melo dos Santos - Em Schopenhauer, a arte e sua vinculação com a estética é o belo, que ele chama de metafísica do belo, que eleva a noção de beleza e arte até o conhecimento objetivo, isto é, um conhecimento estético. A arte, para Schopenhauer, juntamente com a música e a tragédia, são as mais belas formas de se compreender até mesmo o absoluto. Kierkegaard, em seu ensaio sobre o belo musical, também eleva a arte como a aspiração máxima do ser. As rupturas estão inseridas no contexto de suas obras, a identificação do ideal de arte ou da arte ideal, da beleza e de suas formas, da interpretação do gênio e do artista e, por fim, de toda uma série de conceitos que encontramos no conjunto de suas obras.

IHU On-Line - Enquanto presidente da SOBRESKI, qual é a sua percepção sobre os estudos de Kierkegaard no Brasil?

Deyve Melo dos Santos - Esta já é a X Jornada de Estudos sobre Kierkegaard, e cada vez mais vem aumentando o número de alunos de graduação e pós-graduação nas universidades brasileiras que têm despertado interesse em estudar o pensamento de Kierkegaard. Hoje já é possível fazer uma leitura aprofundada na filosofia de Kierkegaard, pois, já se encontram traduzidas diversas de suas obras realizadas diretamente do dinamarquês para o português. Uma das coisas que mais contribuiu para uma leitura errada de Kierkegaard eram as deficientes traduções que tínhamos, que cometeram erros grosseiros e nos levaram a interpretações que fizeram de Kierkegaard um simples pensador. Com as traduções de O Conceito de Ironia, Migalhas Filosóficas, As Obras do Amor e o extenso volume traduzido por Ernani Reichmann na década de 1970, é possível uma leitura legítima de Kierkegaard. Com as traduções, vieram também estudos publicados em diversas editoras e universidades do país, livros como os de Alvaro Valls, Marcio Gimenes de Paula e Jonas Roos também revelam como Kierkegaard tem ainda muito a oferecer à filosofia de hoje. Outro grande passo que foi dado foi a formação do grupo brasileiro de estudos de Kierkegaard, a SOBRESKI, que anualmente se encontra para discutir, compartilhar e trocar ideias e informações sobre o pensador dinamarquês. Cada vez mais cresce o número de pesquisadores com mestrado e doutorado que efetivam suas contribuições em revistas especializadas em filosofia e apresentam comunicações em encontros e congressos dentro do país. Com a perspectiva de mais traduções irem aparecendo, mais estudos e a continuidade das reuniões anuais da SOBRESKI, o pensamento de Kierkegaard somente tenderá a crescer no Brasil.

domingo, 3 de julho de 2011

Stephen Cave

O significado de ser humano


Artigo do escritor e filósofo britânico Stephen Cave, com doutorado em metafísica pela Universidade de Cambridge. É autor de Immortality, que será publicado no ano que vem pela Random House.  Foi publicado no jornal Financial Times, 24-06-2011. A tradução é de Anne Ledur.
Fonte: UNISINOS


 
O que é a natureza humana? Um biólogo pode vê-la assim: os seres humanos são animais e, como todos os animais, consistem principalmente de um sistema digestivo para dentro do qual eles socam incansavelmente outros organismos - seja animais ou vegetais, assados ou crus -, a fim de alimentar suas tentativas de reproduzir esse tipo de onívoro ainda mais insaciável e autorreplicante. Os fundamentos da natureza humana, portanto, são a busca de comida e sexo.

Mas isso, o biólogo acrescentaria, é apenas metade da história. O que torna a natureza humana distinta é o atributo particular que o Homo sapiens usa para caçar presas e atrair parceiros potenciais. Tigres têm força, guepardos têm velocidade. Os seres humanos têm algo menos obviamente útil: cérebros estranhamente grandes. Isso faz deles terrivelmente criativos na aquisição de outros organismos para consumir - e, de fato, na forma de prepará-los (que outros animais servem cordon bleu à sua presa?) -, e também mais indiretos em suas estratégias reprodutivas (compõem sonetos, por exemplo, ou inventam passos de dança).

A natureza humana - a predileção por política e guerra, indústria e arte - é, portanto, apenas uma forma especialmente inteligente que os seres humanos desenvolveram para resolver problemas de comer e se reproduzir. Assim, os biólogos acreditam que, uma vez que entenderem o cérebro humano e sua história evolutiva, saberão tudo o que precisam sobre esse tipo ubíquo de macaco.

Ver-nos assim é uma forma de "reducionismo", uma vez que simplifica a complexidade da consciência humana e da sociedade para o funcionamento dos genes e das células do cérebro. Reduzir a maravilha religiosa, a sensibilidade poética e a riqueza da vida social a meros instintos animais parece ser uma caricatura. E esse ainda é o balanço dominante do que é ser humano no início do século XXI.

Assim, hoje os jornais estão cheios de histórias de genes para isto e neurônios para aquilo. Exemplos recentes variam de "O Gene da Infidelidade: um em cada quatro nasceu para ser infiel" para "Cientistas revelam as células do cérebro dedicadas a Jennifer Aniston". Em parte, a visão de mundo reducionista está ganhando prevalência, porque muitas das suas afirmações são verdadeiras: a teoria da evolução está agora firmemente estabelecida, nosso genoma está sendo decifrado e existem indiscutíveis correlações entre a consciência e a atividade cerebral. Mas um problema surge quando os cientistas, os políticos ou os meios de comunicação adotam essa perspectiva biológica na busca de soluções simples para problemas complexos, culpando a crise de crédito, por exemplo, na mentalidade de curto prazo herdada de nossos ancestrais primatas. Alguns pensadores estão, portanto, rebelando-se contra o consenso reducionista.

É claro, aqueles com uma perspectiva fortemente religiosa, muitas vezes a rejeitam completamente. Mas, mesmo pensadores seculares estão cada vez mais resistindo à sua pretensão de ter toda a verdade. Embora alguns vão longe demais com seus ataques - argumentando erroneamente, por exemplo, que não temos nada para aprender sobre nós mesmos com nossa história evolutiva -, tais críticos estão, no entanto, certos em apontar que, ao aceitar a visão reducionista, corremos o risco de fazermos um desserviço perigoso.

Neuromania x Darwinitis

Uma das maiores vozes é Raymond Tallis, filósofo, ex-professor de medicina geriátrica e escritor prolífico. Seu último livro, Aping Mankind: Neuromania, Darwinitis and the Misrepresentation of Humanity, é um ataque total às afirmações exageradas feitas em nome das ciências biológicas.

"Neuromania" é o termo que Tallis utiliza para simplificar todos os aspectos da mente e do comportamento para as descargas de células microscópicas cerebrais; enquanto que "Darwinitis" refere-se à outra vertente de reducionismo biológico, explicando todos os aspectos do nosso comportamento em termos de nossa história evolutiva e/ou os genes que codificam isso. Seu ataque a ambos é duplo: primeiro, ele critica, de forma extremamente rude, muitas das experiências específicas e suas hipóteses e, em segundo lugar, argumenta que o projeto reducionista é, de todas as formas, filosoficamente equivocado.

Suas críticas à prática do reducionismo são, muitas vezes, justificadas: um pesquisador, por exemplo, afirmou ter identificado o centro do cérebro para amor romântico gravando a diferença na atividade neural de indivíduos quando expostos a imagens de pessoas pelas quais eles estavam apaixonados e pessoas que eram meros amigos. Isso parece ingênuo - o que significa estar "apaixonado" não é definido por quais neurônios disparam quando olhamos para uma foto. Quando eu olho para uma imagem de minha amada, sou mais propenso a me perguntar o que ela quer para o jantar do que a refletir sobre a plenitude do nosso amor.

Mas essas experiências são engolidas pela mídia e foram influentes em toda a área de Humanas, onde explicações evolutivas para tudo estão cada vez mais na moda - desde a liberdade de expressão até belas artes. Tallis, que se esforça para salientar que concorda com o darwinismo - ele não é um armário criacionista - está em um terreno forte quando argumenta que a aplicação bruta do reducionismo biológico vai esclarecer pouco sobre como reformar o serviço de saúde ou como ler Ulisses, de James Joyce.

Mas a sua posição torna-se muito mais frágil quando se move para a mais ampla filosofia. Ele argumenta longamente, por exemplo, que a mente não pode nem mesmo, em princípio, ser reduzida ao funcionamento de nosso cérebro sozinha. Essa é uma opinião respeitável, embora sustentada por uma minoria dos que foram pagos para pensar sobre essas questões. A maioria dos filósofos e cientistas acreditam no oposto: que a mente é apenas o produto de uma certa atividade cerebral, mesmo que atualmente não saibamos bem qual. Tallis, portanto, faz uma injustiça, tanto ao leitor quanto a esses pensadores, ao descrever a posição de seus oponentes como "obviamente" erradas, acusando seus erros de "elementares". Sua própria incapacidade de fornecer uma explicação alternativa convincente da mente mostra que esse é um assunto sobre o qual pessoas razoáveis ​​podem diferir sem inclinar-se a insultos.

Mas, embora a maior parte do conteúdo teórico de Aping Mankind não seja convincente - ao que se poderia acrescentar que o livro tem o dobro do tamanho que precisaria ter e é de um tom desagradável e grosseiro - ele é, no entanto, um trabalho importante. Tallis está correto ao apontar que uma mudança fundamental na nossa autopercepção está em curso e, muitas vezes, vai longe demais.

Ciências da vida

No entanto, é possível questionar esses desenvolvimentos de uma forma mais comedida, como mostrado em Genes Naked: Reinventing the Human Molecular Age, de autoria de Helga Nowotny, socióloga, e do biólogo Giuseppe Testa. Seu livro é uma análise sutil e sofisticada de como as ciências da vida estão mudando a nossa visão de nós mesmos e os desafios que estão se apresentando.

O título deriva de uma simples, mas reveladora observação que é o papel das ciências de "tornar visíveis as coisas que antes não poderiam ser vistas". Até muito recentemente, não tínhamos ideia de como a hereditariedade funcionou. Agora, nossos genes são revelados a nós. Quando a tecnologia faz algum processo visível pela primeira vez, os cientistas tentam isolar o que vêem, extraindo-o do seu contexto, para poder compreender a sua natureza melhor. O resultado, afirmam Nowotny e Testa, é que eles tendem a atribuir inicialmente demasiada importância a esses processos e subestimam outros fatores - em outras palavras, o reducionismo.

Esta parece ser uma explicação perfeita da "Darwinitis" e da "Neuromania" de Tallis. Assim como nossos genes estão sendo revelados, a nova tecnologia está nos permitindo, pela primeira vez, perscrutar nosso cérebro vivo. Mas, em uma tentativa de compreender o que estão vendo, os cientistas dão um peso desproporcional a essas imagens indistintas. Com o tempo, no entanto, um contra-movimento vai querer ver as entidades recém-reveladas - genes ou células cerebrais - em um contexto mais amplo. Assim, a polêmica de Tallis, em Aping Mankind, poderá ser vista como esse contra-movimento em ação.

Nowotny e Testa exploram vários estudos de caso em que as revelações da biologia estão desafiando a nossa auto-imagem: por exemplo, no debate em torno do doping no esporte. Eles argumentam que a diferença entre o natural (os genes com que nascemos, a comida e o treinamento) e o artificial (drogas, engenharia genética e próteses) é uma ficção, e é insustentável. Assim, a ideia de uma "igualdade de condições" para os concorrentes é, em si, uma ficção: algumas pessoas nascem com genes que as tornam melhores atletas. O que é esse "nível"? Engenharia genética, uma tecnologia frequentemente compreendida como "não natural", poderia, em nível de teoria, nivelar tal desigualdade.

Mas Nowotny e Testa não oferecem respostas para estas perguntas - eles simplesmente as exploram, expondo tensões subjacentes e ironias. Sua principal conclusão é de que precisamos de instituições que sejam flexíveis o suficiente para lidar tanto com ideias sobre a nossa natureza e também diversas, e evoluindo atitudes públicas (citando a Autoridade de Embriologia e Fertilização Humana do Reino Unido, por exemplo). Essas instituições devem apoiar os cidadãos a fazer escolhas autônomas, argumentam eles, caso em que estão otimistas de que novos desenvolvimentos em ciência e tecnologia podem "dar poder ao indivíduo criativo".

Humanos como máquinas

Essa é uma visão compartilhada por Brian Christian, em seu excelente primeiro livro The Most Human Human: A Defence of Humanity in the Age of the Computer. O ponto de vista reducionista sugere que somos apenas máquinas biológicas; e, sendo assim, então todos e quaisquer de nossas capacidades devem ser alcançadas por outros tipos de máquina, tais como computadores. Essa é a opinião de muitos na comunidade científica e tecnologia, e um bom número está na corrida para construir a primeira máquina verdadeiramente inteligente e provar a teoria.

O teste convencional de se um computador pode pensar como um ser humano ficou conhecido como Teste de Turing, devido ao pioneiro em computação, o inglês Alan Turing, que criou a prova na década de 1950. É simplesmente isto: um assessor conversa em separado, geralmente através de um terminal remoto, com um ser humano e com uma máquina. Se o assessor não pode dizer qual é qual, a máquina passou no teste - algo que nunca aconteceu ainda. Um ajuste anual do Teste de Turing, chamado Prêmio Loebner - por causa de seu patrocinador, Hugh Loebner - fornece o brilhante conceito para o livro de Christian.

A configuração é esta: Christian faz parte do Prêmio Loebner como um dos seres humanos que vão contra as máquinas. Se um exator é enganado e acredita que um dos computadores é o ser humano, isto equivale a dizer que o computador é mais humano do que o próprio Christian. Esse não é um desafio que o autor toma resignado: na verdade, é a plataforma de lançamento para uma explicação fascinante do que significa ser humano e como Christian, em face da forte concorrência da melhor inteligência artificial do mundo, pode provar que seu artigo é genuíno.

Ao longo do livro, ele explora as ideias de autenticidade, humor, espontaneidade e originalidade. Em um capítulo perspicaz, ele observa que só pode ser substituído por máquinas, se tivermos primeiro nos permitido ser como elas. Uma vez, por exemplo, que tenhamos abandonado contatos locais em nome de distantes e homogêneos call centers, compostos por trabalhadores os quais não têm espaço para a responsabilidade ou a criatividade, então é só uma questão de tempo antes que os próprios trabalhadores, que são treinados para agir como robôs, serem substituídos por eles.

Todos os três livros, diferentes como são, apontam para a mesma conclusão: que não precisamos nos permitir ser reduzidos por essas novas e poderosas disciplinas da genética, neurociência e computação. Em vez disso, podemos aprender com elas e assimilá-las em uma compreensão mais ampla de nós mesmos. Podemos, de fato, usá-las para se tornar melhores como seres humanos.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Marcos Flamínio Peres

Por cima, por baixo


O pensador anglo-suiço Alain de Botton (foto)  explica como o desejo de status social espalha a ansiedade por países como o Brasil. Por Marcos Flamínio Peres.
Fonte: Revista CULT





O homem só superou obstáculos ao longo de sua evolução por ser, naturalmente, preocupado. Mas o alto preço que pagou por isso é ter se tornado refém de sua própria inquietude e insatisfação. Essa é a tese defendida pelo filósofo anglo-suíço Alain de Botton, que aplica a tempos atuais uma das premissas centrais da psicanálise – a ansiedade. Para ele, que vem ao Brasil em novembro para o ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento, o homem contemporâneo vive em uma contínua “ansiedade do status”, que se traduz em “uma preocupação constante sobre nossa permanência no mundo”.

O pano de fundo é a globalização e a desigualdade crescente em âmbito mundial, especialmente nos Brics (Brasil, Rússia, Índia e China). Nessas pujantes economias emergentes, afirma De Botton, a apologia do “chegar lá” é tão generalizada que o indivíduo se sente derrotado se falha – por mais irreal e infundado que seja esse desejo. A crer em De Botton, países como o Brasil são hoje o terreno mais fértil do planeta para as velhas neuroses e psicoses freudianas vicejarem.

CULT – A ansiedade pode explicar a sociedade contemporânea?

Alain de Botton – A humanidade é muito ansiosa porque nossa sobrevivência, em grande medida, é baseada na preocupação. Os ancestrais calmos que acaso tivemos morreram muito tempo atrás; aqueles que sobreviveram foram os nervosos. Descendemos de pessoas que se preocupavam com a maior parte das coisas.

Mas, além do nível habitual de ansiedade em relação à sobrevivência, a sociedade acrescentou um novo tipo, que chamo de ansiedade do status. Trata-se de uma preocupação sobre nossa permanência no mundo, se estamos por cima ou por baixo, se somos ganhadores ou perdedores.

Preocupamo-nos com nosso status por uma razão simples: porque a maior parte das pessoas tende a ser bacana conosco dependendo do nível de status de que desfrutamos – se ouviram falar que fomos promovidos, haverá um pouco mais de energia em seus sorrisos; se fomos demitidos, farão de conta que não nos viram.

Por fim, nos preocupamos em ter status porque não conseguimos confiar em nós mesmos caso as pessoas pareçam não gostar muito de nós ou nos não respeitar muito. Podemos imaginar nosso “ego” como um balão furado, que requer o tempo todo um amor externo para se manter inflado e que é vulnerável à menor desatenção. Nós nos apegamos aos sinais de respeito do mundo para nos sentirmos aceitáveis para nós mesmos.

Em sociedades como as de Brasil, China e Índia, que estão liderando o crescimento econômico global, a noção de ansiedade do status pode ser especialmente forte?

A história mostra que, à medida que as sociedades ultrapassam o nível de subsistência básico, a ansiedade do status rapidamente começa a atuar. Seria pouco comum, hoje em dia, haver ansiedade do status por causa da fome; ela só tem início quando comparamos nossas realizações com as de outras pessoas que consideramos nossas iguais.

Podemos nos preocupar com nosso status quando deparamos com um perfil entusiástico em uma página de jornal (isso pode destruir a nossa manhã!) ou quando alguém próximo nos dá uma “boa notícia” (foi promovido, vai se casar…).

A ansiedade do status é certamente pior em lugares como o Brasil, pois as possibilidades de realização (sexual, financeira, profissional) parecem ser maiores do que nunca. Há tantas coisas em relação às quais nutrimos expectativa que podemos facilmente nos julgar “perdedores”. Estamos o tempo todo cercados por histórias de pessoas que “chegaram lá”.

Do ponto de vista histórico, o que sempre prevaleceu foi uma ideia oposta a essa: a pouca expectativa era vista como algo normal e sábio. Somente algumas poucas pessoas chegavam a aspirar à riqueza. A maioria sabia muito bem que estava condenada à exploração e à resignação.

Claro, ainda hoje continua altamente improvável que possamos atingir o topo da pirâmide social. É pouco provável que possamos rivalizar com o sucesso de Bill Gates, assim como, no século 17, era improvável que pudéssemos nos tornar tão poderosos quanto Luís XIV. O problema é que hoje, infelizmente, não sentimos mais isso como algo improvável: dependendo da revista que lemos, pode de fato parecer absurdo que ainda não tenhamos procurado conseguir tudo isso.

Seguindo o raciocínio de seu livro Consolações da Filosofia, como ela pode se tornar um antídoto contra a ansiedade?

A ansiedade não pode ser afastada inteiramente. O que todos os tipos de psicoterapia, meditação e filosofia podem ajudar é a obter uma perspectiva sobre ela, de modo que não sejamos apenas vítimas – mas também observadores, que entendem o tormento por que passam.

A arquitetura também pode nos aliviar da ansiedade, como sugere em Arquitetura da Felicidade?

Há alguns tipos de arquitetura maciça, sublime – refiro-me, por exemplo, às grandes catedrais francesas da Idade Média –, que de fato têm o poder de diminuir nossa ansiedade porque nos colocam em contato com algo muito maior do que nós mesmos. Qualquer coisa que nos retira da esfera humana, que de algum modo nos relativiza, tem o poder de restaurar a perspectiva e nos acalmar. É claro, então, que a religião tem um papel a desempenhar na redução da ansiedade do status.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Wittgenstein. O professor, o filósofo e o arquivo reencontrado

Antes, ele mudou a história do pensamento afirmando ter encontrado a solução definitiva. Depois, mudou-a dizendo o contrário. Rico e frugal, soldado e eremita, matemático e irracional, foi o homem que disse: "Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar". Agora, há 60 anos da sua morte, em Cambridge, surge um baú de escritos que poderiam mudar tudo mais uma vez. A reportagem é de Riccardo Staglianò, publicada no jornal La Repubblica, 19-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


O fato mais paradoxal, para um obcecado da linguagem como Wittgenstein, que tem na sua escassa bibliografia o inexpugnável Anotações sobre as cores, é que se conjecture sobre a natureza cromática de um escrito seu reencontrado. "Pode ser, assim como também não, a obra que falta chamada de Livro rosa ou Livro amarelo, que os estudiosos procuram há muito tempo", comenta Arthur Gibson, o homem que passou os últimos três anos em um colossal arquivo inédito de um dos mais complexos e decisivos filósofos do século XX.

O professor de Cambridge se refere a um caderno escolar de capa rosa que contém novos textos do lógico vienense. Um objeto de desejo para os especialistas, talvez a sequência ideal – embora anterior – das Investigações Filosóficas com as quais, na segunda parte da sua vida, ele havia demolido o Tractatus Logico-Philosophicus.

Sabe-se lá como ele comentaria ("sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar") sobre essa confusão de tonalidades. Porém, ele ficaria contente com a redescoberta do pequeno tesouro de 150 mil palavras que contém, para além da pérola supracitada, a única versão escrita à mão do Livro marrom, ou seja, apontamentos das suas aulas em Cambridge na metade dos anos 1930. Com 60 páginas mais e uma introdução revista. Mais de mil cálculos matemáticos em que o aluno depois contestador de Bertrand Russell se depara também com o Pequeno Problema de Fermat, em uma demonstração de seis metros de comprimentos se as folhas fossem colocadas em fila. "É como se se acreditasse conhecer todo o DNA e surgisse que havia ainda um quarto desconhecido. Ou descobrir tanto novas obras quanto diversos arranjos de Puccini. Quando abri aquelas caixas, fiquei sem palavras", confessa o organizador, "um mundo inteiro de manuscritos jamais lidos antes que abrem um grande corte em seus processos mentais. Confrontando versões, correções e acréscimos, é como ver o cérebro em funcionamento".

Um espetáculo, dado o titular da cabeça. Com muitas ilustrações e glosas sobre as anotações que ele ditava ao seu amanuense, além de jovem amante, Francis Skinner. No espartano estúdio da Great Court, onde Wittgenstein lecionava, e Newton vivera, não havia nada mais do que uma cadeira de praia, uma estufa e Francis.

"O seu papel intelectual sai muito reforçado desses documentos. Eram um o espelho do outro", explica Gibson. "Com relação a ele, o filósofo tinha uma relação quase bipolar, entre a fortíssima proximidade emocional forte e a rejeição. Um amor-ódio que ele já havia sentido pelo pai bilionário e invasivo. E o irmão Paul, pianista de gênio, apesar de ter perdido um braço na guerra, que não gostava da sua filosofia mais do que suportava a sua música. O número dos estudantes que ele tinha afugentado das aulas crescia dia após dia. No fim, havia permanecido só ele em sala de aula".

Aquilo que não conseguiam fazer na universidade, terminavam em casa. Conviviam, embora a homossexualidade fosse crime. Estudavam russo e sonhavam em se mudar para a União Soviética, abandonando a filosofia para se entregar à medicina ou à criação de animais. Não importava. Assim, em 1941, quando o pólio matou o aluno, o mestre correu o risco de enlouquecer. Considerou o fato de deixar o ensino. E, para se livrar das recordações, enviou por correio os três pacotes de anotações a Reuben Goodstein, amigo de Francis e seu estudante. "Este se compromete", explica Gibson entregando ao jornal La Repubblica uma cópia da carta, "a contatar o filósofo se encontrasse materiais publicáveis. E hoje, diante de textos de tal importância, resta o mistério do porquê ele não o fez".

Aqui, a trama epistemológica se turva com pulsões muito humanas. De um lado, o zelador havia sido próximo de Skinner; de outro, venerava Wittgenstein ("sua esposa era tão ciumenta que lhe proibiu que se pronunciasse seu nome em casa") e poderia ter subestimado por rivalidade a relevância dos escritos. Assim se explicaria, talvez, a longa hibernação hermenêutica, continuado até 1976, quando ele os confiará à Mathematical Association. Para acabar, enfim, nos últimos anos, sob os cuidados de Gibson no Trinity College.

No 60º aniversário da sua morte, o Schwules Museum de Berlim lhe dedica uma mostra cheia de diários e objetos, incluindo o lendário paletó de tweed cinza de tantas fotos, enquanto a Sotheby's leiloa a partir das quatro mil libras esterlinas até os apontamentos menores escritos em resposta às cartas do irmão.

Poucos pensadores podem se orgulhar de inversões em formato de U tão radicais e, porém, convincentes em sua própria jornada intelectual. O Wittgenstein 1.0, do Tractatus (1921), estuda a língua como modo para conhecer. Solipsisticamente, diz, "os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo". Do lado de fora, não há nada, a partir do que momento que não se pode dizer. O Wittgenstein 2.0, ao contrário, se concentra na sua natureza mais social, de instrumento de comunicação. É como se tivesse saído das trincheiras da Grande Guerra e do campo de prisão italiano onde havia terminado o Tractatus para se misturar com o mundo.

Muitas das reflexões que depois confluíram postumamente nas Pesquisas (1953) são concebidas no mesmo período das cartas reencontradas. Naqueles anos, ele defende que a linguagem deve ser estudada não na sua dimensão abstrata (como de "gelo puro"), mas nos seus usos práticos ("a terra firme"). Explica Gibson: "A partir desse arquivo, entende-se coisas que iluminam melhor também os escritos posteriores. Que a verdade para ele não é autoevidente. Ou melhor, aquilo que sabemos muitas vezes nos confunde sobre a nossa real ignorância. É um pouco como se iludir que conhecer as previsões do tempo para hoje nos diga algo sobre como será em um mês. E, no entanto, mesmo abandonando a ideia da filosofia como sistema, é como se quisesse recompor as duas parte do seu pensamento. Nas profundezas do uso ordinário da linguagem, extraordinariamente preciso e ao mesmo tempo surpreendentemente arbitrário, ele via semelhanças com a matemática pura avançada. No rastro das Pesquisas, ele queria investigar justamente as relações entre matemática e língua, defendendo que é do seu encontro que deriva a lógica. Que não se pode extrair da matemática apenas, seguindo ao contrário Russell e Frege".

Independentemente de ser o Wittgenstein 2.1 ou até o 3.0, permanece o novo episódio entusiasmante de um filme de final teórico ainda em aberto.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O pensamento instigante de ARTHUR SCHOPENHAUER

Para o alemão, o fundamento do conhecimento humano reside no próprio homem e não nas coisas que ele julga conhecer
Por Raquel Moreira de Souza Camargo.
Fonte: Revista Filosofia






Chamado por Nietzsche de "cavaleiro solitário" e geralmente considerado extremamente pessimista, o filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860) foi autor de um dos pensamentos mais instigantes e marcantes de toda a história da Filosofia. Grande contestador de seu contemporâneo Hegel, Schopenhauer teve de esperar muito em vida para encontrar o reconhecimento do público por seus trabalhos. Sua filosofia influenciou pensadores como Nietzsche, Wittgenstein, Horkheimer, Sartre, Cioran, escritores como Franz Kafka, Thomas Mann, além de Freud, criador da psicanálise, entre outros.

Sua principal obra, publicada em 1819, diante da qual é simplesmente impossível permanecer impassível, é O mundo como vontade e representação. Nela encontramos as duas proposições - chave de sua filosofia, enunciadas por ele como verdades incontestáveis, mesmo que num primeiro momento elas possam causar repulsa e fazer os homens tremerem, como seu próprio autor confirma. São elas: o mundo é a minha representação e o mundo é a minha vontade.

O pensamento de Schopenhauer parte da filosofia de Immanuel Kant (1724-1804). Kant mostrou ao mundo que o fundamento do conhecimento humano reside no próprio homem e não nas coisas que ele julga conhecer. Kant mostrou como certos elementos essenciais que constituem qualquer objeto não são propriedades do objeto, mas sim do próprio sujeito que conhece. Antes dele, o filósofo John Locke (1632-1704) já havia lançado uma teoria que estabelecia que qualidades como cor, som, odor e maciez seriam, em parte, qualidades subjetivas, pois não pertenceriam exclusivamente aos objetos - diferentemente de qualidades como a solidez, extensão, figura, que para ele, Locke, seriam as qualidades reais dos corpos, presentes realmente neles. Kant vai mais além: para ele, o próprio espaço e o tempo, formas essenciais de todo objeto possível, residem em nossa própria consciência e não nos objetos.

Influência direta para seu compatriota Friedrich Nietzsche, Schopenhauer defendia que é um erro partirmos 'de fora' para encontrarmos a significação tão procurada deste mundo. Dessa maneira, o homem deveria mergulhar com atenção em si

Todo objeto é concebido como sendo um objeto no espaço e no tempo. Esta revista que você tem nas mãos, por exemplo, você a concebe como ela estando num certo ponto do espaço e num certo instante do tempo. Mas este ponto do espaço e este instante do tempo não dizem respeito à revista tal como ela é em si mesma, pois espaço e tempo são formas do seu aparato cognitivo, postas por ele neste objeto que você tem em mãos. Este seria apenas um exemplo grosseiro para ilustrar um pouco o pensamento de Kant. Para ele, o homem já traz em si as formas e as estruturas essenciais com as quais vai perceber o mundo, e os objetos só são por ele percebidos, experienciados e conhecidos por tais formas e estruturas.

Sendo assim, o que o homem efetivamente conhece? As coisas como elas são em si mesmas ou como lhe aparecem? À luz de Kant, vemos que o homem, em razão de sua própria estrutura cognitiva (que já traz consigo as formas essenciais constituintes dos objetos), só pode conhecer os fenômenos, isto é, aquilo que do objeto lhe aparece, e não o objeto tal como é em si mesmo, isto é, a coisa-em-si.

Partindo da filosofia kantiana, Schopenhauer nos evidencia sem rodeios que não podemos afirmar que conhecemos de fato isto e aquilo, estes e aqueles determinados objetos, mas sim que conhecemos o que percebemos deles - sendo que o que percebemos deles não são os objetos tais como são em si mesmos, em sua essência. O que conhecemos de tudo à nossa volta é apenas a nossa representação, termo de Schopenhauer que reelabora o fenômeno de que Kant fala. Tudo o que conhecemos do mundo, tudo o que dele percebemos, é nossa representação. Schopenhauer já abre sua principal obra enunciando: "o mundo é a minha representação.". Quando o homem se dá conta disso, diz Schopenhauer, "pode-se dizer que nasceu nele o espírito filosófico. Possui então a inteira certeza de não conhecer nem um sol nem uma terra, mas apenas olhos que vêem este sol, mãos que tocam esta terra; em uma palavra, ele sabe que o mundo que o cerca existe apenas como representação, na sua relação com um ser que percebe, que é o próprio homem".

Como geralmente ocorre quando entramos em contato com o pensamento de um bom filósofo, nosso chão de certezas vai ruindo e desmoronando sob os nossos pés à medida que vamos avançando em sua reflexão. Schopenhauer logo denuncia que neste mundo de representação as coisas têm existência meramente relativa. Todo e qualquer objeto ou ser que percebo o concebo como ocupando um determinado lugar no espaço, presente num certo instante do tempo e como sendo efeito e causa de outros objetos (relacionando-se com eles por causalidade, portanto). Todo objeto que assim percebo não tem existência por si: sua existência é relativa, na medida em que depende da relação que este objeto mantém com outro objeto. O próprio tempo é apresentado por Schopenhauer como sendo puramente relativo e não algo absoluto; passado, presente e futuro como sendo "coisas tão vãs como o mais vão dos sonhos".

À medida que vou percebendo os objetos e estabelecendo relações entre eles, submetendo-os às formas do espaço, tempo e causalidade, vou construindo o meu mundo como representação - um mundo que não passa de uma teia de objetos em relações uns com os outros. Schopenhauer compara o mundo como representação a uma ilusão, como o véu de Maya da filosofia vedanta. Tudo aí parece ser incerto, efêmero, nada sendo seguro em si mesmo. Ora, é perfeitamente compreensível se nos sentimos perdidos neste mundo nebuloso de representação. O que conheço não é a coisa em si mesma, de modo que não posso nem dizer propriamente que a conheço, e tudo no mundo inteiro que percebo tem existência relativa! O que fazer diante disso, então? Como fico eu, o sujeito que conhece?

Na filosofia de Schopenhauer o sujeito pode até sentir-se um tanto perdido, desesperançoso, mas não insignificante: ele é apresentado por nosso filósofo como sendo o sustentáculo do mundo. Se todos os seres que percebem desaparecessem do mundo e só sobrasse você, a existência do mundo inteiro como representação dependeria de sua sobrevivência. Se você então desaparecesse, com você também sumiria este tal mundo. Isso porque existência e perceptibilidade aparecem no pensamento de Schopenhauer como termos equivalentes. Isso quer dizer que não teria sentido em falar em existência pura do objeto sem a percepção do sujeito, isto é, só tem sentido em falar que o objeto existe se houver pelo menos um sujeito que de algum modo o perceba. O sujeito é assim o sustentáculo do mundo como representação, pois tal mundo é um mundo que é percebido. Entretanto, isso não valeria para subestimarmos os objetos. Para Schopenhauer, o sujeito também pressupõe o objeto a ser percebido para poder existir - se não houvesse o objeto, não haveria também sentido em falar em sujeito que percebe e conhece.

Mas ainda há um certo incômodo, uma pergunta que não quer calar: e a coisa- em-si? Poderia eu ter acesso a ela? Para Kant, a coisa-em-si seria algo para nós completamente incognoscível. Devido à natureza do nosso próprio aparato cognitivo, só poderíamos conhecer o fenômeno, isto é, o objeto tal como ele nos aparece, e não como é em si mesmo. O que conhecemos do mundo não é sua essência, o mundo como é em si mesmo; o que conhecemos dele é tão somente seu fenômeno, isto é, o mundo tal como nos aparece. Segundo Kant, não teríamos como ir além disto, já que os fenômenos são condicionados pelas formas e estruturas que se encontram em nós mesmos, em nossa sensibilidade e intelecto.

Poderíamos até pensar a coisa-em-si, mas nunca conhecê-la efetivamente. Este é o ponto principal de divergência entre os pensamentos de Kant e de Schopenhauer, pois este último não só definiu claramente o que seria a coisa-em-si como demarcou muito bem as vias de acesso a ela.

Segundo Schopenhauer, a essência de todas as coisas, que para ele seria a coisa-em-si, é a Vontade. Vontade é um impulso cego, um ímpeto, uma força vital, um esforço de vida, um querer viver incessante que seria o fundo íntimo e essencial de todo o universo. O universo inteiro seria manifestação e expressão da Vontade. Ela é que seria o fundo essencial de todos os fenômenos. O mundo assim apresenta dois lados, como as duas faces de uma mesma moeda: o mundo como representação e o mundo como vontade.

O mundo como representação é a vontade tornada objeto; é a vontade objetivada, isto é, tornada perceptível. À vontade objetivada, tornada objeto perceptível, Schopenhauer chama "objetidade" ou "objetivação" da vontade. Os fenômenos são todos manifestações da vontade segundo diferentes graus de sua objetidade ou objetivação. Assim, as forças gerais e primitivas da natureza correspondem ao grau mais baixo da objetivação da vontade. É a gravidade, impenetrabilidade, solidez, fluidez, elasticidade, eletricidade, magnetismo; fenômenos que são as manifestações imediatas da vontade. A vontade se objetiva em graus cada vez mais elevados, do reino inorgânico ao reino orgânico, do reino vegetal ao animal, sendo o ser humano sua mais alta expressão, o grau extremo de sua objetidade. Para Schopenhauer, podemos reconhecer esse querer viver, essa força vital, esse impulso e ímpeto incessante de vida que é a vontade em todos esses graus de sua objetivação, desde nas forças como a gravidade e o magnetismo, nas pedras, no crescimento de uma planta, na vida de um animal, até no homem. Tudo isso é a objetidade dessa mesma vontade, é a vontade tornada perceptível, tornada objetos (forças, seres, coisas etc.). Este, então, é o mundo como vontade.

A vontade é incessante e insaciável. Podemos reconhecer este seu caráter numa planta, por exemplo, que é uma de suas muitas e variadas manifestações: ela cresce e se desenvolve a partir de uma semente, forma sua haste, suas folhas, flores e frutos - frutos que contêm novas sementes que gerarão novas plantas e assim por diante, num ciclo infindável que exprime o impulso incessante de vida que é a vontade.

Suponhamos que nos perdêssemos a contemplar a infinitude do mundo no tempo e no espaço, quer refletíssemos sobre a multidão dos séculos passados e futuros, quer durante a noite o céu nos revele, na sua realidade, mundos sem número, ou que a imensidão do universo oprima, por assim dizer, a nossa consciência: neste caso, sentimo-nos reduzidos ao nada; como indivíduo, como corpo animado, como fenômeno passageiro da vontade, temos a consciência de não ser mais do que uma gota no oceano, isto é, de nos dissiparmos e de desaparecermos no nada. Mas, ao mesmo tempo, contra a ilusão do nosso nada, contra esta mentira impossível, eleva-se em nós a consciência imediata que nos revela que todos esses mundos existem apenas na nossa representação; eles são apenas modificações do sujeito eterno do puro conhecimento; são apenas aquilo que sentimos em nós, desde que esquecemos a individualidade; em resumo, é em nós que reside o que constitui o suporte necessário e indispensável de todos os mundos e de todos os tempos. A grandeza do mundo, que há pouco espantavanos, agora reside, serena, em nós mesmos: a nossa dependência em relação a ela está a partir de agora suprimida, visto que presentemente é ela que depende de nós. - No entanto, não fazemos efetivamente todas estas reflexões; limitamo-nos a sentir, de uma maneira completamente irrefletida, que, num certo sentido (só a filosofia pode precisá- lo), somos um com o mundo, e que, por conseguinte, a sua infinitude ergue-nos, ao contrário de nos esmagar. É esta consciência, ainda completamente sentimental, que os Upanixades dos Vedas repetem sob tantas formas variadas e, sobretudo, nesta frase que citamos mais acima: 'Eu sou todas estas criaturas, e por minha causa não há outro ser' (Oupnekhat, 1, 122). Existe aí um êxtase que ultrapassa a nossa própria individualidade; é o sentimento do sublime." Arthur Schopenhauer. O mundo como vontade e representação, Livro III, 39, p.215, 216

O mesmo pode ser visto na vida dos animais, na renovação constante da matéria em cada organismo e nos desejos sem fim do indivíduo humano. Partindo de necessidades, de um sofrer, o homem deseja algo e lança-se com esforço à sua realização; mas um desejo saciado é apenas o ponto de partida para um outro desejo, uma nova busca.

Quando consegue saciar seus desejos, o homem tem um prazer passageiro ou ainda tédio; tem dor quando não o faz ou quando sua realização se dá de forma lenta. Quando não sabe o que quer, quando seu desejo não tem um objeto determinado, o homem se aborrece e se encontra num estado de "languidez mortal". A vida humana é assim, profundamente marcada por sofrimento, pois ela é apenas a manifestação de uma vontade infindável, esfomeada, irresistível e insaciável. Schopenhauer diz que o ser humano não nasce condenado à morte; o homem nasce condenado à vida. "Viver é sofrer." Daí sua fama de extremo pessimista.

A vontade insaciável se refaz constantemente por ela mesma; "sob as diversas formas que reveste, constitui o seu próprio alimento". Um animal só pode manter sua vida à custa de um outro ou de uma planta; esta, à custa da terra, da água etc.. A natureza assim se alimenta de si mesma, e por isso é marcada por constante luta e combate. Na filosofia de Schopenhauer não há um Deus que engendre e assim justifique tal ordem das coisas; o mundo tal como o conhecemos é apenas o fenômeno de uma fome insaciável, a manifestação da vontade de viver sem fim, essência íntima de todo o universo. A vida de um indivíduo humano, como a vida de qualquer outro ser e como qualquer acontecimento do universo, não seria algo que obedece a alguma razão, lei ou dignidade elevada ou divina. Para Schopenhauer, uma vida humana, com sua história, suas realizações, seus desejos, suas dores, aspirações, sentimentos, ideais e projetos, nada mais seria do que um fenômeno passageiro da vontade. Daí também o caráter amargo que muitos conferem à sua filosofia.

Mesmo o homem sendo o grau mais alto de manifestação da vontade, seria errôneo se entendêssemos que nele há "mais vontade" do que numa planta. Isso porque a vontade não se reparte quando se objetiva; ou seja, quando se torna objetos perceptíveis diferentes, a vontade não se divide neles. Não há mais dela num leão do que numa pedra. A vontade é una e indivisível; "mais" e "menos" dizem respeito aos graus de sua expressão: o reino orgânico é um grau maior de expressão da vontade do que o reino inorgânico, o animal é um grau maior de sua expressão do que o vegetal, e o ser humano é a sua mais alta expressão.

Do mesmo modo, a vontade não precisa de todos os indivíduos de uma mesma espécie para se manifestar inteiramente por esta espécie; bastaria apenas um. Como diz Schopenhauer: "ela manifesta- se tão bem e tanto em um carvalho como em um milhão de carvalhos.". A vontade apresenta-se una e indivisível em cada ser, do mais simples ao mais complexo; una e indivisível em cada canto do universo.

Ora, sendo então a mesma vontade una e indivisível em cada ser e em cada fenômeno, bastaria, para apreendermos a essência de todo o universo, nos determos apenas a um único objeto. É sobre isso que Schopenhauer reflete nestas belas palavras: "tentou-se, de diversas maneiras, fazer compreender à inteligência de cada um a imensidão do mundo, e viu-se nisso um pretexto para considerações edificantes, como, por exemplo, sobre a pequenez relativa da terra e do homem, e, por outro lado, sobre a grandeza da inteligência desse mesmo homem tão fraco e tão miserável que pode conhecer, apreender e medir mesmo essa imensidão do mundo; e outras reflexões deste gênero. Tudo isto está muito bem; mas, para mim que considero a grandeza do mundo, o importante de tudo isso é que o Ser em si do qual o mundo é o fenômeno - qualquer que ele possa ser - não pode ser dividido, retalhado assim no espaço ilimitado, mas que toda esta extensão infinita apenas pertence ao seu fenômeno, e que ele próprio está totalmente presente em cada objeto da natureza, em cada ser vivo. Também não se perde nada se nos limitarmos a um único objeto, e não é necessário, para adquirir a verdadeira sabedoria, medir todo o universo, ou, o que seria mais racional, percorrê-lo pessoalmente; vale mais estudar um só objeto, com a intenção de aprender a conhecê-lo e apreender-lhe perfeitamente a verdadeira essência.".

Sobre qual objeto, então, determos nossa atenção para apreendermos esse ser-em-si do mundo, a essência de todo o universo, a coisa-em-si que Schopenhauer nos apresenta como sendo a vontade? Se ela está presente una e indivisível em tudo, haveria algum ponto do universo que nos serviria de acesso fácil a ela? Segundo o filósofo alemão, há uma via de acesso direto à essência do mundo a qual não poderia estar mais 'perto' de você. Na verdade, você já tem conhecimento da vontade, da coisa-em-si, justamente por aquilo que lhe é mais imediato: seu próprio corpo.
Não é apenas nos fenômenos completamente semelhantes ao seu próprio, nos homens e nos animais, que ele encontrará, como essência íntima, essa mesma vontade; mas um pouco mais de reflexão o levará a reconhecer que a universalidade dos fenômenos, tão diversos para a representação, têm uma única e mesma essência, a mesma que lhe é conhecida íntima, imediatamente, e melhor do que qualquer outra, aquela enfim que na sua manifestação mais aparente tem o nome de vontade. Ele a verá na força que faz crescer e vegetar a planta e cristalizar o mineral; que dirige a agulha magnética para o norte; na comoção que experimenta com o contato de dois metais heterogêneos; ele a encontrará nas afinidades eletivas dos corpos que se manifestam sob a forma de atração ou de repulsa, de combinação ou de decomposição; e até na gravidade que age com tanto poder em toda matéria que atrai a pedra para a terra, como a terra para o sol. É refletindo sobre todos estes fatos que, ultrapassando o fenômeno, chegamos à coisa em si. 'Fenômeno' significa representação, e mais nada; e toda representação, todo objeto é fenômeno. A coisa em si é unicamente a vontade; nesta qualidade, esta não é de maneira nenhuma representação, difere dela toto genere; a representação, o objeto, é o fenômeno, a visibilidade, a objetividade da vontade. A vontade é a substância íntima, o núcleo tanto de toda coisa particular, como do conjunto; é ela que se manifesta na força natural cega; ela encontra-se na conduta racional do homem; se as duas diferem tão profundamente, é em grau e não em essência." Arthur Schopenhauer. O mundo como vontade e representação, Livro II, 21, p.119.
Nosso filósofo defende que é um erro partirmos 'de fora' para encontrarmos a significação tão procurada deste mundo; para tanto, o homem deveria mergulhar com atenção em si mesmo. Para Schopenhauer, seria impossível para o homem encontrar a significação do mundo se ele fosse apenas "uma cabeça de anjo alado, sem corpo". A existência de um corpo é a condição necessária do conhecimento. Voltando-se a si, o homem depara-se com o objeto que lhe é mais imediato: seu corpo. E, juntamente com seu corpo, o homem descobre aquilo que constitui a sua essência íntima, a força interior do seu ser, o que há de mais imediato em sua consciência, aquele princípio imediatamente conhecido por cada um, isto é, a sua vontade.
PESSIMISMO E HUMANIDADE
[...] A verdadeira razão que nos faz hoje retomar Schopenhauer e examinar sua concepção do mundo, o motivo que nos leva a evocar sua fisionomia espiritual, com tudo que ela lembra, diante de uma geração que não sabe grande coisa dele, são as relações do pessimismo e da humanidade. É o desejo de transmitir aos homens do tempo presente, nos quais o sentimento de humanidade atravessa grave crise, a experiência pessoal da união particular contraída pela melancolia e pela altivez do homem nesta filosofia. O pessimismo de Schopenhauer é sua humanidade. Sua explicação do mundo pela vontade, sua intuição da onipotência dos instintos, o rebaixamento da razão outrora divina, do espírito, da inteligência, reduzida a não ser mais que o instrumento da vida que quer afirmar- se, tudo isso é anticlássico e, em essência, inumano. Mas sua humanidade, sua espiritualidade, residem, precisamente, no matiz pessimista de sua doutrina, que o leva a renegar o mundo e a pregar um ideal ascético; no fato de que esse grande escritor, versado em sofrimento, cuja prosa é a da grande época de nossa civilização humanista, tirou o homem do elemento biológico e da natureza, fez de sua alma, que sente e conhece, o teatro da inversão do querer e viu nele o salvador possível de todas as criaturas [...] Trecho de Schopenhauer, de Thomas Mann
O homem percebe que seu corpo e sua vontade são uma e a mesma coisa; percebe que todo ato voluntário corresponde a uma ação corporal - tal correspondência se dá sempre e, infalivelmente, diz Schopenhauer. As ações da vontade e do corpo não estão ligadas por causalidade, isto é, os movimentos do corpo não são efeitos de atos voluntários que seriam sua causa: todo e qualquer ato da vontade é ao mesmo tempo uma ação corporal. Do mesmo modo, qualquer ação externa exercida sobre o corpo é uma ação exercida diretamente sobre a vontade: quando lhe vai contra, tem-se dor; quando tal ação é favorável à vontade, tem-se prazer ou bem-estar. Enfim, para Schopenhauer, corpo e vontade são idênticos: uma e a mesma coisa. O corpo inteiro é para ele a vontade objetivada, isto é, tornada perceptível.

O corpo próprio é, assim, algo peculiar no mundo. O homem tem um duplo conhecimento de seu corpo: por um lado, percebe-o como um objeto como os outros, fenômeno no espaço e no tempo, como representação, portanto; por outro lado, o corpo é tido de uma maneira tão única que não pode ser comparada a nenhuma outra experiência que se tenha no mundo; o corpo é conhecido como vontade. O corpo próprio é assim peculiar por ser o único objeto imediatamente conhecido pelo homem como representação e como vontade ao mesmo tempo. O homem não tem esta mesma experiência dos outros objetos do mundo como a que tem de seu próprio corpo. Os outros objetos são-lhe conhecidos apenas como representações.

O conhecimento que o homem tem da identidade entre seu corpo e a vontade é o mais imediato de seus conhecimentos, e constitui uma verdade de um gênero especial. O conhecimento do corpo como representação e como vontade não é uma verdade lógica, nem empírica, nem metafísica: é a verdade filosófica por excelência. Esta verdade, este duplo conhecimento a respeito do corpo próprio, servirá ao homem de chave para penetrar na essência de todos os outros corpos, de todos os objetos e fenômenos que não são experienciados por ele como sendo seu próprio corpo. Julgando tais objetos e fenômenos por analogia com nosso próprio corpo, tomamo-os como sendo semelhantes ao nosso corpo enquanto também são representações. E se quisermos atribuir existência e realidade a tais fenômenos e objetos, devemos tomar-lhes como sendo também vontade, expressões dela, exatamente como nosso próprio corpo o é.

É esta reflexão que faz Schopenhauer: "com efeito, que outra espécie de existência ou de realidade poderíamos atribuir, ao mundo dos corpos? Onde tomar os elementos com que a comporíamos? Fora? Fora da vontade e da representação, não podemos pensar nada. Se queremos atribuir a maior realidade ao mundo dos corpos, que percebemos imediatamente na nossa representação, dar-lhe-emos aquela que, aos olhos de cada um de nós, tem o nosso próprio corpo, visto que é para todos o que existe de mais real. Mas se analisamos a realidade desse corpo e dessas ações, só encontramos nele - além de que ele é a nossa representação - o fato de que ele é a nossa vontade: daí decorre toda a sua realidade. Não podemos, por conseqüência, encontrar outra realidade para colocar no mundo dos corpos. Se ele deve ser qualquer coisa mais do que a nossa representação, devemos dizer que fora da representação, isto é, em si mesmo e pela sua essência, ele deve ser o que encontramos imediatamente em nós sob esse nome de vontade".

O homem então, pela reflexão, encontra nos outros corpos a mesma vontade una e indivisível que encontra imediatamente em si mesmo. Através do duplo conhecimento que tem sobre seu próprio corpo, a saber, como representação e como vontade, o homem pode penetrar na essência de toda a natureza, com suas forças e seus seres. Ele agora pode reconhecer em tudo a mesma essência que lhe é tão íntima: a vontade. Reconhecendo que a essência dele e de todo o universo é a mesma, una e indivisível, pode enfim enunciar com plena consciência o que outrora talvez lhe tenha causado grande repulsa ou estranhamento: "O mundo é a minha vontade."

REFERÊNCIAS
Schopenhauer, Arthur. O mundo como vontade e representação.Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
____________. Crítica da filosofia kantiana. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Col. Os Pensadores)
_________.Ainda alguns esclarecimentos sobre a filosofia kantiana. Cadernos de Filosofia Alemã 4, 1998.
_________. Parerga e paralipomena. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Col. Os Pensadores) Comentários
Cacciola, Maria Lúcia M. O. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: Edusp, 1994.

Cacciola, Maria Lúcia. A crítica da razão no pensamento de Schopenhauer, Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1981.

Cacciola, Maria Lúcia. O conceito de interesse. Cadernos de Filosofia Alemã 5; 1999. Barboza, Jair. A metafísica do belo de Arthur Schopenhauer. São Paulo: Humanitas / FFLCH / USP, 2001.

Reale, Giovanni e Antiseri, Dario. História da filosofia, 5: do romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005.
Kant, Immanuel. Crítica da razão pura. 4ª ed. Fundação Calouste Gulbenkian. Kant, Immanuel. Prolegómenos a toda a metafísica futura. Lisboa: Edições70. Reale, Giovanni e Antiseri, Dario. História da filosofia: de Spinoza a Kant. São Paulo: Paulus, 2005, v.4.

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