sábado, 25 de julho de 2009

Conversando com Michel Serres

Novas Tecnologias e Sociedade Pedagógica


Em 1999, o filósofo Michel Serres esteve em São Paulo para uma série de conferências, no quadro do Iº Congresso Internacional de Desenvolvimento Humano (Universidade São Marcos, 16 a 18 de setembro de 1999). Em meio ao amplíssimo espectro de temas que poderia e costuma tratar, Michel Serres, em suas conferências paulistanas, versou principalmente sobre as transformações em curso no mundo contemporâneo, impulsionadas, sobretudo, pelas novas tecnologias de comunicação e a instauração do que tem chamado de uma sociedade pedagógica; tratou ainda, com especial atenção, das novas concepções sobre o corpo e os seres vivos, que vêm se forjando à luz dos novos conhecimentos da biologia. À primeira vista, pode parecer que abordou ecleticamente assuntos variados e desconexos; contudo, o que se revelou aos que puderam ouvi-lo, foi um saber intensamente conectado e construído sob o signo da diversidade, da transposição (de um campo da atividade humana a outro) e da heterogênese (de um saber por outro). E esse pode ser um bom começo para a difícil tarefa de estar apresentando este pensador, tão brilhante quanto singular, de obra tão vasta e densa quanto indispensável para a compreensão do nosso mundo.

Nascido em 1930 no sul da França, faz questão de destacar sua descendência de uma linhagem de marinheiros e camponeses da Garonne, lembrando que a exigência do filósofo de compreender o sentido das coisas se aplica também a sua própria existência e ao conhecimento de suas raízes. Assim, sublinha que a cultura é tanto o trabalho da terra quanto o conhecimento intelectual. Assim também, filho de marinheiro, inicia sua formação superior na Escola Naval (1947), onde obtém uma licenciatura em matemática. E assim, por fim, explica boa parte de sua trajetória intelectual por fazer parte de uma geração que cresceu sob os estrondos dos canhões e assistindo a algumas das maiores atrocidades do século XX: da guerra na Espanha (aos 6 anos) às guerras coloniais da Argélia e da Indochina (aos 25 anos), passando pela IIª Grande Guerra e Hiroshima (dos 9 aos 14 anos), a sua geração “se forma carnalmente nesse ambiente atroz e se mantém, desde então, afastada de toda política: o poder continua a significar para ela apenas cadáveres e suplícios.” Como jamais deixará de repetir, a violência sempre foi e será o seu principal problema, sobre o qual assentará a base de todo seu trabalho filosófico.

Porque não queria “servir a canhões e torpedos”, abandona a Escola Naval, levando consigo uma sólida formação matemática, e ingressa na Escola Normal Superior (1952), para fazer seus estudos literários. Esse trânsito das ciências “duras” às humanidades define, geneticamente, um outro traço marcante de toda obra que se seguiria e da personalidade filosófica de Serres e da qual, aqui, só poderemos aduzir uma brevíssimo vislumbre.

Sua visada não será a da tradicional epistemologia francesa que, na sua opinião, acaba por ratificar a separação entre “ciências” e “humanidades”, ao pretender se fazer de ponte. Sua perspectiva será outra: a da transposição de um campo a outro; a da primazia do percurso sobre o discurso; e a da busca de uma teoria generalizada do local: “Através das regiões as mais distanciadas circula freqüentemente uma relação subterrânea que a intuição por si só não pode alcançar, assim como tampouco podem o conhecimento imediato ou o saber discursivo, mas que pode ser atingida, às vezes, por um formalismo puro e refinado... A aptidão ao diverso é proporcional à pureza inicial”, escreve em O sistema de Leibniz e seus modelos matemáticos, seu doutorado e primeira grande obra publicada (1969). Isso não quer dizer, entretanto, que Serres considere a matemática um modelo de referência ou índice de uma hierarquia enciclopédica; os problemas de sistematicidade e formalização não possuem um campo original de direito, mesmo se, de fato, assumem uma forma matemática, sendo um problema colocado para o conjunto dos sistemas formais, onde quer que uma incompletude se revele. Essa perspectiva não deixará de estar presente em outra obra de referência: O nascimento da física no texto de Lucrécio (1977).

Em Serres, o percurso constitui o discurso, conduzindo até o ponto em que se percebem as violências arcaicas, que somente uma teoria generalizada do local e do objeto podem desviar de seu curso proliferante. Em 1980, Serres publica um livro sobre o mal: O Parasita. Descreve os mecanismos de substituição sacrificial que se encontram na fundação do poder e da relação entre o particular e o universal. Em outras palavras, demonstra como nossa cultura é “a continuação da barbárie por outros meios”, do mesmo modo que nos pontos de crise dos sistemas formais as substituições violentas da barbárie arcaica não cessam de proliferar “a golpes de prolongamentos racionais”. Contra essa proliferação de violência, Serres oporá uma outra racionalidade, não mais do universal e do particular, mas uma ciência e uma sabedoria do local.

Essa filosofia plena de transportes, acabaria por eleger Hermes, deus mensageiro, o deus tutelar de uma série de cinco livros que publicou entre 1969 e 1980 (I. A Comunicação, 1969; II. A Interferência, 1972; III. A Tradução, 1974; IV. A Distribuição, 1977; V. A Passagem do Noroeste, 1980), onde desenvolveu as múltiplas facetas de sua reflexão sobre as ciências e, sobretudo, as suas transposições, em cada época, para outros domínios da atividade humana. Contudo, a “mensagem” passa de uma ordem a outra, mas não sem algum “ruído”, não sem algum “parasitismo”; o conjunto forma não um território bem delimitado, mas algo que se assemelha muito mais a uma “nebulosa flutuante”.

Michel Serres escreve vários livros ao mesmo tempo, sendo que esta simultaneidade é o contrário de um encadeamento (daí, as enormes dificuldades em se fazer uma apresentação linear ou cronológica de sua obra), mas a busca de um descentramento das condições contemporâneas da linguagem e da escritura, agudizando a mencionada problemática da substituição, do local e do objeto. Paralelamente à Coleção Hermes, publica outras obras em que continua a elaborar suas “transações” estéticas e científicas, tais como, entre outras: Juventudes - sobre Jules Vernes (1974), Estéticas - sobre Carpaccio (1975), Zola - fogos e sinais de bruma (1975). Em todas estas obras, “o essencial não é mais tal figura, tal símbolo ou tal artefato; o invariante formal é alguma coisa como um transporte, uma errância, uma viagem através das variedades espaciais separadas.”

A partir dos anos 80, abre-se um novo período, em que suas reflexões se aproximam cada vez mais da imaginação cotidiana. Em 1987, publica Estátuas, meditação sobre a morte; em 1990, O contrato natural, que apela para uma nova relação com o mundo natural; em 1991, O terceiro-instruído, que trata da educação e da questão da mestiçagem cultural. Este último livro lhe trará uma especial notoriedade junto ao grande público e acompanhará sua entrada, em janeiro de 1991, para a Academia Francesa de Letras.

Hermes continuará a simbolizar, a seus olhos, a noção chave para compreendermos o mundo contemporâneo: a comunicação. E, nesta última década, ampliar-se-á significativamente a sua produção literária relativa a esta temática, bem como o seu engajamento pessoal nas grandes questões tecnológicas, comunicacionais e, sobretudo, educacionais que vêm marcando a passagem do século XX para o século XXI.

Quanto ao seu papel como educador, cumpre destacar alguns acontecimentos marcantes da sua trajetória, começando pela sua participação ao lado de Michel Foucault nos primórdios da Universidade de Vincennes (Paris-VIII), em 1968. Este espaço acadêmico terá papel destacado na renovação da filosofia francesa pós-68 e nele se formará uma nova geração de pesquisadores e pensadores, muitos dos quais tiveram Serres como grande mestre. Destacamos aqueles reunidos em outra obra capital de Serres (e que revela mais uma de suas múltiplas facetas – a de historiador das ciências): Elementos de História das Ciências (1989). Sob sua direção, esta obra reúne textos de Michel Authier, Isabelle Stengers, Bruno Latour e Pierre Lévy, apenas para mencionar os mais conhecidos do público brasileiro.

Para além do mundo universitário, sua participação em assuntos educacionais não vem sendo menos importante. De 1991 a 1993, a pedido da primeira-ministra Edith Cresson, Serres comanda uma missão (que ficou conhecida como a “Mission Serres”) para a pesquisa e formulação de propostas de ensino à distância. Sob seus auspícios, Michel Authier e Pierre Lévy chegam à concepção e desenvolvimento de um software extremamente original, destinado à gestão de conhecimentos em grandes coletivos, que se tornou uma referência mundial neste tipo de tecnologia.

Atualmente engajado num combate pela cultura, contra a exclusão e a violência na televisão (destacando-se, a este respeito, o seu livro Mensagens à distância de 1995), passou a integrar o comitê diretor de uma cadeia de televisão francesa (TV5), na esperança de aprofundar o processo de ensino multimídia, do qual a televisão é apenas um dos elementos. É um declarado otimista das novas tecnologias multimídia e entusiasta da gratuidade dos conhecimentos disponíveis na internet, como ficará claro na entrevista que se segue.

E não para aí a sua vasta gama de atividades nestes e outros domínios, assim como mantém uma fecunda atividade literária e editorial. Relativamente ao tamanho da sua obra (que não foi integralmente mencionada nesta breve apresentação do seu trabalho), foi ainda muito pouco traduzido no Brasil. Destacamos, entretanto, duas obras recentes que oferecem ao leitor de língua portuguesa uma prazerosa introdução ao seu pensamento: A Lenda dos Anjos (São Paulo, Aleph, 1995) e Luzes – cinco entrevistas com Bruno Latour (São Paulo, Ed. UNIMARCO, 1999).

Esperamos que a entrevista concedida à Interface (em 16 de setembro de 1999) também contribua para apresentar um pouco mais e de viva voz ao nosso leitor as idéias desse fundamental pensador de nosso tempo, sobretudo no que se refere a estes últimos campos de interesse apresentados, e que foram os temas principais de suas conferências em São Paulo (comunicação, educação, novas tecnologias, novos coletivos, o corpo, o vivo e, por extensão, algumas questões de saúde e medicina). A edição da entrevista preserva o seu caráter de uma conversa a três, já que haviam dois entrevistadores: Rogério da Costa (filósofo, docente da Faculdade de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e Ricardo Rodrigues Teixeira (médico sanitarista, docente e pesquisador do Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa/Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP).


SOCIEDADE PEDAGÓGICA

Já envelhecido, nosso mundo das comunicações está parindo, neste momento, uma sociedade pedagógica, a das nossas crianças, onde a formação contínua acompanhará, pelo resto da vida, um trabalho cada vez mais raro. As universidades à distância, em toda a parte e sempre presentes, substituirão os campi, guetos fechados para adolescentes ricos, campos de concentração do saber. Depois da humanidade agrária vem o homem econômico, industrial; avança uma era, nova, do conhecimento. Comeremos saber e relações, mais e melhor do que vivemos a transformação do solo e das coisas, que continuará automaticamente.”
Michel Serres

Ricardo Teixeira – Eu gostaria de começar pela noção de “sociedade pedagógica”. Na sua conferência dessa manhã, o Sr. falava da passagem de um espaço de concentração para um espaço de distribuição, como uma das características da emergência de uma “sociedade pedagógica”. Entretanto, não se trata apenas de uma mutação na espacialidade dos atos de ensino-aprendizagem, que antes se dariam em espaços de concentração e agora se encontram distribuídos pelas redes, podendo se dar à distância. Não é da mesma “Educação” que se trata nos dois casos. Devemos esperar uma mutação no próprio conteúdo. A questão é: de que “Educação” se trata quando falamos numa “sociedade pedagógica”?

Michel Serres – É verdade que vivemos, desde 1965-70, numa sociedade onde a comunicação assumiu uma importância jamais alcançada, uma vez que os meios técnicos de comunicação se desenvolveram de uma forma exponencial. Mas o que é importante, hoje, é que a informação se tornou decisiva para quase todos os métiers. Eu vou lhes dar um exemplo que me impressionou bastante: duas moças chegaram num Ministério onde foram recrutadas e, quando chegaram neste Ministério, elas o conheciam melhor do que as pessoas que já estavam lá. Por que? Porque durante oito dias antes elas haviam buscado na internet a totalidade da informação concernente a este Ministério. Elas tinham, portanto, uma formação superior àquela das pessoas que já estavam ali trabalhando. E isto é perfeitamente novo. Por que? Porque se pode buscar informações em novas fontes, que fazem com que, de forma paradoxal, os novos saibam mais que os antigos. É isso que eu chamo de sociedade pedagógica.

Por outro lado, tudo que é televisão, rádio, informação em geral, está estruturado ao modo da distribuição escolar. E mesmo a distribuição escolar no sentido mais tradicional. Por exemplo, alguém que você vê falar na televisão, você não pode lhe dirigir questões, como outrora os grandes professores davam os grandes cursos sem jamais responder a questões. Contudo, na troca quase regular que mantemos atualmente entre nós, a informação tem um lugar muito maior que outrora. Portanto, o laço social está cada vez mais fundado na circulação da informação.

Eu vou mesmo mais longe. O que criou o laço social até recentemente, e a maior parte das pessoas pensa que é ainda ele que cria, foi o dinheiro, isto é, a circulação da moeda. Ora, se você tem filhos e eu lhe coloco a questão: o que você preferiria dar às suas crianças, uma sólida formação em matéria científica e técnica ou uma herança de um milhão de dólares? Poucos hesitariam! E as pessoas prefeririam a formação. Por que? Porque se percebe bem atualmente que a circulação da moeda é extremamente frágil, extremamente flutuante, e que a circulação da informação tem papel de referência... E, portanto, a confiança no saber e na formação estão, na minha opinião, crescendo. E é isso que eu chamei o laço social fundado na informação, nos bens imateriais etc....

Rogério da Costa – Porque nós estamos entrando numa sociedade de economia virtual, de uma economia do imaterial...

Michel Serres – Voilà! É isso! É o que se chama a economia imaterial... Isto é, que o saber pode ser, de uma certa forma, a moeda... Mesmo se você compra um bilhete de avião – eu tomo os exemplos mais simples – e você sabe a que horas ele parte, como, etc., você não poderá obter um preço tão baixo, o que mostra bem que a informação faz o preço.

Rogério da Costa – Nós observamos hoje uma mudança profunda na nossa relação com os saberes e conhecimentos. É extraordinária a mutação dos saberes e dos conhecimentos...

Michel Serres – Exatamente.

Rogério da Costa – Isto diz respeito profundamente aos jovens e aos idosos. É pior para os idosos?

Michel Serres – Os idosos têm uma nova função na sociedade. Eu a experimento muito porque, na Sorbonne, eu ofereço meu curso aos sábados. Muito bem: há dez anos a metade das pessoas que vêm a meu curso são idosas ou pessoas que trabalham. Por conseqüência, há uma função cultural das pessoas de mais idade hoje, enquanto em outros tempos a responsabilidade cultural era dos jovens. Ora, hoje em dia os jovens são muito rapidamente tomados por uma especialidade mais e mais exigente e são obrigados a deixar um pouco de lado tudo aquilo que nós chamaríamos de humanidades, a cultura etc., e tem-se a impressão que a geração com mais de quarenta anos a reencontra e repõe em circulação. Há uma espécie de mudança de geração no que concerne à relação com a cultura. É muito curioso!

Rogério da Costa – Isso pode desempenhar um papel muito importante com respeito ao desemprego, por exemplo, ou à exclusão social, em relação às pessoas que não vêem mais horizonte em suas vidas. A velocidade com a qual os conhecimentos e os saberes mudam e os meios técnicos de que dispomos hoje em dia, podem, efetivamente, contribuir com novos regimes de trabalho...

Michel Serres – De fato, eu sou bastante otimista em relação às novas tecnologias por causa disso: porque qualquer um pode ter acesso a um número muito grande de informações, em qualquer lugar. O único problema, evidentemente, é que esta informação não é validada, não é controlada. E isso é uma verdadeira questão! No momento, eu sou bastante favorável ao não-controle. Em geral, os franceses amam bem o controle, mas não eu. Por que? Porque... Você já ouviu falar de Robin Hood, de Robin des Bois [N.T.: literalmente, Robin dos Bosques, versão francesa do célebre personagem da Inglaterra medieval]. Você sabe o que essa lenda quer dizer? Quer dizer que, em outros tempos, nas florestas não havia direito. Todo espaço era um espaço jurídico, exceto as florestas que eram consideradas como zonas de não-direito. E Robin é uma palavra francesa que quer dizer “celui qui porte la robe” [“aquele que usa o vestido ou o hábito (religioso) ou a toga (dos magistrados)”] e “la robe” era a toga do juiz. E, portanto, Robin Hood quer dizer “o homem de direito num espaço de não-direito”. É muito refinado!

Ora, os espaços de não-direito são espaços onde muitas transformações têm lugar. É o lugar onde, ao menos em imagem, metaforicamente, as transformações sociais se fazem. E, no momento, as novas tecnologias são um lugar de não-direito. E, então, evidentemente, as pessoas vão gritar, vão dizer: “Sim, é a pornografia! É a violência!” Sim, é verdade. Mas é também a totalidade do saber. E portanto, a crítica que se fazia outrora às bibliotecas era a mesma. Dizia-se: “Mas, enfim, a biblioteca não é controlada. Qualquer criança pode ir ver qualquer livro, a qualquer momento. Portanto, é preciso um Index.” Vocês se lembram destas histórias. Portanto, a biblioteca recebia exatamente o mesmo tipo de crítica que a internet, hoje em dia. Críticas que não são novas, são tão velhas quanto a informação. Portanto, se a crítica não é nova, ela não me interessa. E o que me interessa é que seja um espaço de não-direito e, da mesma maneira que a biblioteca de uma certa maneira salvou a humanidade, de uma certa maneira eu sou otimista com as novas tecnologias. Por causa do não-direito, por causa do lugar de transformação social. Voilà!

Ricardo Teixeira – Neste ponto, eu recorro a uma analogia, antes de colocar a questão de uma forma mais direta. Retomo mais uma vez a idéia já mencionada de um espaço de concentração, que me faz pensar, por analogia, nos espaços de clausura e na “sociedade disciplinar”, nos termos propostos por Foucault...

Michel Serres – Não, eu não a tomava neste sentido...

Ricardo Teixeira – Sim, mas apenas para completar a analogia, quando o Sr. fala, agora, num espaço de distribuição, com as novas tecnologias e a “sociedade pedagógica”, eu tendo a fazer de novo uma analogia com a chamada “sociedade de controle” que, segundo Deleuze, prolongando as análises de Foucault, sucederia à “sociedade disciplinar”. Onde passaria a fronteira que separaria uma “sociedade pedagógica” de uma “sociedade de controle”?

Michel Serres – A sociedade de controle é uma sociedade inteiramente tomada pelo direito, já que se trata de um controle. Portanto, há uma jurisdição que vigia praticamente todos os lugares desta sociedade. Eu digo, ao contrário, que as novas tecnologias são um lugar de não-direito. E a fronteira está aí! Quer dizer, no momento nós estamos na floresta, isto é, na biblioteca onde não há controle. E é justamente porque não há controle que estou otimista. Quer dizer, no momento, há pessoas que dizem “é preciso que os sites sejam controlados”, pessoas dizendo “o site do nosso amigo é sério, porque ele é titular de Direito ou qualquer coisa assim, o site é muito sério porque é um verdadeiro médico que dá a verdadeira informação”... Isso não me interessa! Por que? Você que é médico deve ser sensível a isso... Eu vi se fundar nos Estados Unidos, recentemente, uma vez que eu me ocupo muito disso, um site onde há – talvez você o conheça -, onde se dá livremente a palavra a todas as mulheres que tiveram um câncer de seio. Bem, eu conheço vários oncologistas que dizem ter aprendido uma enormidade de coisas neste site. Por que? Porque as mulheres são completamente livres de dizer o que elas querem e nas condições que elas querem, de tal forma que, às vezes, lhes ocorre dizer coisas que são fundamentais para o médico, das quais eles não tinham a menor idéia. Mas é justamente porque não há controle que elas podem dar a informação que o médico pode achar verdadeiramente importante para a sua atividade profissional. Então, a falta de controle, às vezes, é problemática, mas às vezes, ao contrário, é muito, muito fecunda.

Ultimamente, uma vez que eu me interesso pela biologia, eu descobri um site cujo assunto era escorpiões. Muito bem, as melhores informações que eu obtive sobre o escorpião, me foram fornecidas por um fazendeiro, porque ele tinha uma prática muito exata da maneira pela qual é preciso negociar com o perigo do escorpião. Não foi o professor de História Natural que me forneceu a realidade concreta do problema. Portanto, a maior parte das pessoas desconfia do não-controle, mas por ora eu sou bastante favorável ao não-controle, porque às vezes há um saber perdido... Eu vou lhes explicar...

Há um livro muito interessante que foi escrito no século XIX por Michelet, que se chama La sorcière [A bruxa]. Quando jovem, eu fui um grande admirador da “bruxa”, porque de alguma maneira ela representava a anti-universidade. Era nos bosques, era à noite, eram as mulheres. Eu quero dizer, nos bosques nunca houve universidades, a noite é o contrário da era das luzes, as mulheres estavam excluídas da universidade, eram camponesas etc., e, de repente, nos dávamos conta de que esta “bruxaria” tinha chegado a um certo número de plantas que eram desconhecidas do farmacêutico, venenos, remédios etc., e Michelet mostra que há aí um saber que não é um saber oficial, mas que pode ter uma importância extraordinária para o renascimento de certos tipos de disciplinas. De uma certa maneira, há uma bruxa nas novas tecnologias. Voilà!

Ricardo Teixeira – Retomamos a chave do otimismo! É uma tendência muito forte aqui... Mas, quando eu falava há pouco na idéia de uma “sociedade disciplinar” seguida por uma “sociedade de controle”, o exemplo que eu poderia dar como emblemático da “sociedade de controle” são as auto-estradas, pois nela não se está enclausurado, mas mesmo assim se é controlado... As novas tecnologias são muitas vezes chamadas de vias, de auto-estradas da informação...

Michel Serres – Ah não!

Ricardo Teixeira – Em todo caso, para além dos significados e atribuições de valor, não poderíamos identificar um sentido (segundo uma lógica estóica) das novas tecnologias? Ou, dito da maneira de McLuhan, não haveria uma mensagem implícita nestes novos meios, quer dizer, não seriam eles, em si mesmos, uma mensagem? O Sr. compreende minha questão?

Michel Serres – Perfeitamente. Há mesmo duas questões na sua questão. A primeira é a analogia com a auto-estrada e a segunda é a questão de McLuhan. Eu contesto a analogia com a auto-estrada, porque ela não é verdadeira. Diz-se auto-estradas da informação, mas não é o caso da internet. A gente diz sempre navegar... A gente diz sempre surf...

Ricardo Teixeira – Trata-se muito mais do mar...

Michel Serres – Voilà! Ora, no mar não existem auto-estradas... Quer dizer que se você quer ir um pouco mais à esquerda ou um pouco mais à direita, você tem muito mais liberdade do que numa auto-estrada. A auto-estrada é direcional. Não o mar. E portanto, a metáfora da navegação me parece mais justa, porque há flutuação, há tempestade, há turbulências, há coisas que não são assim tão direcionais; no fundo, é a diferença que há entre o sólido e o líquido. A metáfora da auto-estrada é uma metáfora sólida e a metáfora da navegação é uma metáfora líquida. Ora, o sólido é um cristal ordenado, enquanto o líquido é um conjunto de moléculas desordenadas. Voilà! E portanto, é menos ordenado que a auto-estrada.

Dito isto, a questão de McLuhan permanece justa. Quer dizer, com efeito, há alguma coisa como um conjunto de sinais preestabelecidos na totalidade da rede. Isto é verdade, mas aquilo que era verdade na época de McLuhan, por que a informação e o suporte eram raros, tende a se tornar menos verdadeiro, na medida em que o seu número cresça de uma forma vertiginosa. Porque, no fundo, não há um ligação preestabelecida entre você e eu, nós podemos nos encontrar na net ou por acaso, quer você tenha vindo me ver na Sorbonne, quer você tenha topado comigo por acaso... Portanto, não há uma ligação realmente preestabelecida, uma auto-estrada ou mesmo, então, uma linha de navegação: uma linha que vá de Montevidéu ao Rio é preestabelecida, mesmo que ela flutue. Enquanto isso não é verdade para as novas tecnologias. Não existem relações preestabelecidas. Podemos nos conectar com qualquer um... Portanto, há um número muito grande, um acaso favorecido, que permite justamente que já se critique as metáforas de McLuhan. São menos presentes...

Rogério da Costa – Recentemente li um artigo de Toni Negri, onde ele se perguntava: “Onde está a força política hoje em dia? Onde está a força política subjetiva de nossa atualidade?” E quando o Sr. fala das mulheres que têm um site sobre o problema de câncer de mama, será que nós podemos ver nisso uma mudança profunda na relação entre a subjetividade e a política, por causa das redes, por causa das novas tecnologias?

Michel Serres – Provavelmente...

Rogério da Costa – Talvez ainda nos falte a formalização adequada para dizer às pessoas: “Vejam! As coisas começam a mudar!” É preciso tentar fazer política de um modo diferente. É preciso tentar se apropriar dos meios técnicos e tecnológicos, para fazer uma nova política...

Michel Serres – É a minha opinião. Quer dizer, a razão pela qual as grandes teorias políticas desmoronaram nestes últimos vinte anos, se deve ao fato – você se lembra o que eu disse na conferência a respeito de Sartre [N.T.: Serres questiona o “engajamento” de Sartre, argumentando que a obra e a luta política de Sartre passou ao largo de transformações e outras questões decisivas na história do século XX.] - de que nenhuma delas levou em conta o mundo real que se formou neste século. E portanto, elas desmoronaram por estarem completamente defasadas de seu tempo. Eu me pergunto mesmo se eu não diria isso até das teorias de Foucault, que elas estão defasadas por relação a seu tempo, já que não há nele uma verdadeira visão de uma das principais transformações da atualidade...

Portanto, o trabalho hoje é aquele que você indica, isto é, como formular uma nova teoria política que dê conta dos novos coletivos... Se é o coletivo que mudou... Percebe? Esta nova coletividade... O conjunto das mulheres no planeta que tiveram câncer de mama não era um coletivo imaginável há seis anos. É um novo coletivo. E eu acredito que muitos conceitos como a representação por um deputado etc. devem ser re-retomados, re-refletidos e mesmo uma política em tempo real, isto é, o processo de decisão etc., tudo deve ser repensado em virtude das novas tecnologias...

Ricardo Teixeira – Eu penso também na noção de tecnodemocracia: fazer escolhas tecnológicas, fazer das técnicas também um objeto de deliberação coletiva...

Michel Serres – Contrariamente ao que se acreditava outrora – e eu sempre reagi contra isso -, que havia infraestruturas fixas que não eram determinadas, que a técnica era simplesmente um produto da sociedade... Mas de jeito algum! A sociedade é que é um produto da técnica! Compreende? Ou seja, o que eu disse há pouco (na conferência), que desde que se inventou a escrita, então, passamos a ter o Estado, as cidades, novas religiões, novas ciências... Sim, mas simplesmente porque a técnica da escritura precedeu tudo isso. Colocar a técnica à distância é ainda uma idéia de burguês do século XIX (risos). A técnica é muito mais importante do que se acredita... E mesmo dizer “tecnopolítica”, é uma crítica à técnica. Não é assim que funciona, a técnica...

Ricardo Teixeira – Eu não entendi este último ponto...

Michel Serres – O conceito mesmo de “tecnopolítica” é uma espécie de desprezo pela técnica. Não, a técnica não é isso. A técnica é uma produção biológica do nosso corpo. Portanto, é completamente fundamental na atividade hominal. Voilà!

Ricardo Teixeira – Aqui, eu gostaria de introduzir uma questão mais específica, concernente ao campo da saúde. Retomemos uma outra questão abordada na sua conferência, a propósito da noção de identidade biológica. O Sr. falava que nós somos compostos de dezenas de milhares de células e habitados por um número ainda maior de micróbios saprófitas e que não são reconhecidos por nosso sistema imunitário como um “não-si”. É esse o problema de identidade que eu gostaria de tratar, de novo um problema de “fronteiras”: qual o limite do “si” quando se é habitado por um “não-si” que não é reconhecido pelo organismo como um “não-si”?

Michel Serres – Isso nos permite compreender a identidade como um conceito flutuante. Não se trata de um conceito fixo e estático, o conceito de identidade... Você que é médico sabe perfeitamente que alguém que teve rubéola ou qualquer outra doença infecciosa, não a terá mais, pois essa pessoa criou anticorpos para evitar uma nova invasão. Mas, será que se trata da mesma identidade biológica, da mesma pessoa agora que antes? Não, não, não se trata mais da mesma. De uma certa maneira, é sempre Michel Serres. Mas, dado que ele possui uma outra população de anticorpos agora, seus sistemas imunitários mudaram profundamente. Conseqüentemente, um sistema de identidade é invariante por variação. Ele é flutuante: globalmente estável, mas localmente variável. Ele é invariável por variação.

Mas, fazemos sempre graves confusões sobre a noção de identidade. Não me agrada que as pessoas falem em “identidade sexual”, “identidade nacional”, “identidade cultural” etc.. Por que? Porque elas confundem identidade com pertencimento. Assim, quando falam, por exemplo, em identidade brasileira, identidade francesa, confundem o que seja identidade – identidade é “A” idêntico a “A”, isto é, “Michel Serres” é idêntico a “Michel Serres”: isto é a identidade. O fato que ele seja francês... Isso não é a minha identidade, isso é meu pertencimento. O fato que eu seja judeu, católico, protestante... Pertencimento. O fato que eu me chame Serres é, aliás, um pertencimento a uma família. O fato que eu me chame Michel é pertencimento ao conjunto de pessoas que se chamam Michel. Tudo isso são pertencimentos. E, por conseqüência, confundir pertencimento com identidade é a própria definição de racismo. Porque se diz: ele é negro, ele é judeu, ele é católico, ele é... Não! Ele é Michel Serres. A identidade não deve ser confundida com pertencimento. Uma coisa é: A = A (“A” idêntico a “A”); outra coisa é: A Î {A} (“A” pertence ao conjunto “A”).

Rogério da Costa – E, contudo, é verdade que várias pessoas confundem sua identidade com seu pertencimento e se relacionam com os outros em nome de algo que é apenas um pertencimento e não sua identidade...

Michel Serres – Jamais farão progressos. É preciso ensiná-las de que se trata apenas de um pertencimento. Mas podemos ir mais longe e dizer: “qual é sua identidade?” Bem, minha identidade é a interseção de todos os meus pertencimentos. paulo como arlequim de picasso Eu sou brasileiro + moreno + filósofo + médico + ... + ... + ... e mais eu tenho pertencimentos, mais eu enriqueço minha identidade.

Ricardo Teixeira – E esses pertencimentos derivam, isto é, não são sempre os mesmos...

Michel Serres – Isso mesmo... Sempre exteriores. Mas se você confunde o fato de ser brasileiro com você mesmo, bem, evidentemente, neste caso, você vai assassinar o “não-brasileiro” em você...

Ricardo Teixeira – E a noção de saúde, não corresponderia igualmente a uma noção dinâmica, muito mais do que um estado bem definido? Por exemplo, em Canguilhem: mesmo partindo da idéia de “normatividade vital”, a saúde se define sempre por uma certa independência do instrumental médico: “eu estou em boa saúde na medida que eu posso prescindir dele”. Contudo, pode-se observar cada vez mais uma definição implícita de saúde que diz: “eu estou em boa saúde na medida que eu mantenho um certo acoplamento com o instrumental médico”. Trata-se de uma definição de saúde que compreende a idéia de um acoplamento do corpo com certos objetos...

Michel Serres – Você fala de Canguilhem e seu nome me veio ao espírito várias vezes durante a conferência, sem que eu o tenha citado. Ele faz parte do grupo de pessoas que tinha do vivo uma idéia antiga. Ele nada conheceu do que eu disse esta tarde, nada...

Ricardo Teixeira – E, contudo, ele escreveu depois da guerra...

Michel Serres – Sim, depois da guerra e ele desconhecia completamente a bioquímica. Eu me lembro – eu fui seu aluno – o dia em que fiz uma exposição sobre o repressor do sistema da lactose. Ah... Eu nunca vi esse homem mais “doente”! Ele ficou completamente perdido, completamente perdido: “O que é um repressor? O que é uma proteína? O que é o DNA?” Para ele, a medicina era a medicina de antes da guerra. Se você lê O normal e o patológico, não há nele uma única proteína, nenhum dos sistemas de estratégia de saúde que nós desenvolvemos nos últimos trinta anos. Portanto, ele faz parte desta aproximação do vivo que caracterizava a geração que nos precede e cuja visão, nós transformamos completamente...

Ricardo Teixeira – Neste caso, o Sr, está de acordo quando eu digo, por exemplo, que a definição de saúde não pode mais ser estabelecida independente dos objetos técnicos...

Michel Serres – Absolutamente.

Ricardo Teixeira – Eu gostaria que o Sr. falasse um pouco como vê este outro conceito de saúde...

Michel Serres – Eu não poderia tratar completamente essa questão agora, mas posso falar um pouco de uma nova idéia de médico. Eu tenho uma nova idéia do médico. Há uns quarenta anos que o prêmio Nobel de medicina não é dado a um médico; ele é sempre dado a um biólogo. Tem-se a impressão que a medicina foi roubada do médico, uma vez que os biólogos são os autores da nova concepção do vivo, da nova farmácia, das novas terapêuticas, das novas estratégias concernentes à sua relação com os elementos orgânicos etc., e, portanto, o médico recuou e sua única maneira de se defender é absorver mais e mais informação biológica, não é? Então, o médico ganha outra vez terreno e se torna cientista. E vê-se muito bem como nos países ocidentais o médico tende a se tornar mais e mais savant, a se tornar biólogo. Bem, eu creio, eu sonho com um terceiro estado do médico. Primeiro, o médico era Canguilhem – de uma certa maneira, Canguilhem é a “não-ciência” -; em seguida, o médico se torna biólogo; é preciso, agora, que dê um terceiro passo: definir em relação a esta ciência que tende a se tornar universal, uma nova relação com o indivíduo. Quer dizer, há um terceiro estado médico hoje que consiste na idéia de reformar as relações médico-paciente, levando em conta a ciência tal como ela se constituiu nos últimos trinta anos e, de repente, na sua relação, esquecê-la. Percebe? Um pouco como já se disse outrora, a “douta ignorância”. Você se lembra da “douta ignorância”?

Ricardo Teixeira – De Nicolau de Cusa.

Michel Serres – Sim, isso mesmo. Quer dizer que o médico deve ser savant (douto, erudito), mas ao mesmo tempo deve saber esquecer sua ciência. Porque aquilo que busca o doente não é mais, de modo algum, um resultado de laboratório. Isso o laboratório lhe dará sempre. Ele quer outra vez uma relação humana com o médico. Ele quer outra vez uma relação como a que havia em outros tempos, dado que as garantias científicas nós já temos. Então, que o médico seja savant, mas que ele esqueça sua ciência. Voilà!

Rogério da Costa – Portanto, nós temos o que aprender com as práticas analíticas, por exemplo?

Michel Serres – Sim, exceto pelo fato que as práticas analíticas são menos científicas que...

Rogério da Costa – Elas são menos científicas mas, de qualquer forma, se um médico puder ter um olhar sobre o ser humano um pouco mais global...

Michel Serres – Sim, sim.

Ricardo Teixeira – Neste último exemplo o Sr. tratou principalmente da relação do “médico privado”. O Sr. acredita que, tal qual afirmou em sua conferência, a chamada “medicina pública” continuará a responder por mais de 80% das conquistas no campo da saúde?

Michel Serres – Eu fiz um balanço da medicina, em alguns anos da sua história. Mesmo tomando decisões, você sabe, essas grandes decisões - por exemplo, no início do século se disse: “todo parteiro deverá lavar as mãos” etc. -, percebeu-se que todas essas decisões obrigatórias, com o controle da limpeza, salas de operação com controle etc., tudo isso era de uma eficácia extraordinária.

Ricardo Teixeira – Mas o Sr. acredita que a sociedade terá sempre uma dívida muito maior com a chamada “medicina pública” do que com a “medicina privada”?

Michel Serres – Sim, eu acredito. Porque, da mesma forma que eu digo que o novo médico terá uma nova relação com o indivíduo, da mesma forma tudo o que eu disse da ciência vai se recolocar do lado da “medicina coletiva”. Vocês, os sanitaristas, carregarão o peso da ciência e o médico carregará o peso da relação privada. É só a “medicina pública” que poderá, sem dúvida, suportar os altos custos e os grandes problemas implicados pela biologia, que se tornou de tal forma complexa.



A 'mudança verde' dos filósofos franceses


"A propriedade é adquirida e se conserva com a imundície. Ou melhor: a propriedade é aquilo que é sujo". Uma consideração que se desenrola, como um fio condutor, ao longo de todo o intenso livro do filósofo francês Michel Serres intitulado "Il mal sano" [O mal sadio, em tradução livre] (Editora Melangolo, 112 p.), um trabalho de genealogia cultural em torno do sentido oculto do direito de propriedade, que conduz o leitor das antigas tribos latinas à terrivelmente contemporânea e globalizada poluição planetária. Um exercício intelectual típico de Serres (professor em Stanford e acadêmico na França), no centro da sua epistemologia edificada na contaminação e no cruzamento de disciplinas, ao invés da hegemonia de uma só ciência, que, nos últimos tempos, se dedicou sempre mais a refletir sobre a dimensão filosófica do ambiente. A reportagem é de Massimiliano Panarari, publicada no jornal La Repubblica, 23-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: ADITAL

Assim, contamina-se por possuir, evidencia, com riqueza de testemunhas, o estudioso que se caracteriza, mais uma vez, pela prosa sofisticada (de traços enigmáticos) e pelo frequente recurso à metalinguagem (mediante a qual ele mostra, por exemplo, a consonância entre "propreté" (limpeza) e "propriété" (propriedade.

Uma atividade ancestral, que está no coração da humanidade e que funda, justapondo de fato, os direitos de propriedade por meio de secreções e dejetos (urina, excrementos, esperma, sangue), os quais delimitam, etologicamente, o território e definem a posse de um campo a ser cultivado, como de uma fazenda ou de uma mulher a ser inseminada, assim como o seu contrário, a expropriação, tentada ou realizada, porque, como nos lembra Serres, "squat" (de onde vem "squatter", isto é, o ocupante) indica justamente a posição encolhida das mulheres parturientes ou que defecam.

Enfim, sujar com os próprios líquidos e substâncias orgânicas significa se tornar possuidor de um objeto (ou de uma pessoa). E é isso que, mutatis mutandis, a humanidade, portadora perene desse vício de origem, faz, poluindo o planeta e mostrando assim, novamente, a sua insaciável sede de domínio sobre aquilo que nos circunda. Nesse sentido, a poluição "dura" das fumaças, dos resíduos e dos rejeitos equivale àquela "doce" (e até mais insidiosa) da publicidade, versão pós-moderna da frequente vontade de afirmação desmedida do ego.

Eis porque a poluição ambiental, que deve ser entendida como expropriação do mundo por nossa parte, remete à desoladora alienação interior que aflige a humanidade contemporânea, que pode se salvar unicamente compreendendo que somos meros coinquilinos do planeta, junto com outras espécies.

É necessário, invoca o autor (que indica Kant, definido por ele como o "squatter de Königsberg", como um dos adversários teóricos), que assumamos autenticamente a responsabilidade e tomemos consciência do nosso ser meros locatários (e nada mais) do "Hotel Humanidade", como deve ser na era da Rede, que tudo une, tornando supérfluo todo fechamento voltado à posse.

Serres faz um sofisticado manifesto para um novo Contrato natural, que podemos inscrever dentro de uma recente "mudança verde" da filosofia francesa, de Jean-Luc Nancy a Bruno Latour, produzida, não por acaso, no país de Daniel Cohn-Bendit (o ex "Dany Le Rouge" [o Vermelho], que se tornou mais recentemente "o Verde") e da impressionante afirmação eleitoral da sua lista Europe Écologie, mas também das declarações ecologistas (independentemente se sinceras ou instrumentais) do presidente Sarkozy.

Uma nação completamente pós-materialista que hoje, e sempre mais, se pensa e se sente também ambientalista.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Michel Foucault

A vacina

O jornal italiano La Repubblica, 21-07-2009, publicou texto do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), em que o autor analisa a vacina como "um típico mecanismo de segurança". A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS




O caráter certo e generalizável da inoculação e da vacinação permitia considerar o fenômeno em termos de cálculo das probabilidades, graças aos instrumentos estatísticos de que se dispunha.

A vacinação tinha isto de relevante: não objetivava tanto impedir a varíola, mas sim provocar algo semelhante nos indivíduos que eram inoculados. Graças a essa espécie de leve doença inicial, inoculada artificialmente, era possível prevenir os outros ataques eventuais da varíola.

Eis um típico mecanismo de segurança. Dupla integração, portanto: no âmbito das diferentes tecnologias de segurança e no interior da racionalização do caso e das probabilidades.

Tudo isso tornava essas novas técnicas seguramente aceitáveis, se não para o pensamento médico, pelo menos para os vários médicos, administradores, responsáveis pela polícia médica e, definitivamente, para as próprias pessoas.

Para ler mais:


domingo, 12 de julho de 2009

Observar a democracia com as lentes de Bobbio

Bobbio: que valor têm os direitos de liberdade sem o poder concreto de fazer o que é permitido fazer?


A teoria das regras constitutivas serve como diagnóstico do grau de democracia nos regimes políticos contemporâneos


por Michelangelo Bovero
Fonte: Site da Revista CULT

A tradição de pensamento que alguns estudiosos quiseram chamar de "escola de Turim" tem, entre seus temas principais de reflexão, e não apenas de preocupação intelectual, mas também de compromisso civil, o problema da democracia. Trata-se na realidade de um problema complexo, ou de um nó de problemas particularmente intricado, que deve ser enfrentado, sobretudo, com os instrumentos teóricos da análise conceitual.

A teoria analítica da democracia que foi elaborada dentro da escola de Turim, acima de tudo e eminentemente na obra de Norberto Bobbio, é em primeiro lugar uma teoria jurídica, distinta das teorias políticas, como, por exemplo, as de Giovanni Sartori ou Robert A. Dahl, e das teorias economicistas como as de Anthony Downs, e também de Joseph Schumpeter. A teoria de Bobbio é geralmente considerada a versão mais pontual e madura da chamada "concepção processual" da democracia, que, ao longo do século 20, para superar as ambiguidades e os equívocos das concepções "substanciais", concentrou a atenção sobre as "regras do jogo".

Nos últimos tempos voltou-se a refletir sobre este núcleo interno da concepção bobbiana, a teoria das regras constitutivas da democracia, na tentativa de reconstruí-la, reformulá-la e empregá-la como instrumento de diagnóstico para medir o grau de democracia dos regimes políticos contemporâneos.

A tabela bobbiana das regras democráticas

1 - Todos os cidadãos que alcançaram a maioridade, sem distinção de raça, religião, condição econômica e sexo, devem desfrutar dos direitos políticos, ou seja, todos têm o direito de expressar sua própria opinião ou de escolher quem a exprima por eles;
2 - O voto de todos os cidadãos deve ter o mesmo peso;
3 - Todas as pessoas que desfrutam de direitos políticos devem ser livres para poder votar de acordo com sua própria opinião, formada com a maior liberdade possível por meio de uma concorrência livre entre grupos políticos organizados competindo entre si;
4 - Devem ser livres também no sentido de ter condição de escolher entre soluções diferentes, ou seja, entre partidos que têm programas diferentes e alternativos;
5 - Seja por eleições, seja por decisão coletiva, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de considerar eleito o candidato ou considerar válida a decisão obtida pelo maior número de votos;
6 - Nenhuma decisão tomada pela maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar por sua vez maioria em igualdade de condições.

Essas seis regras são chamadas de "procedimentos universais", ou seja, as normas que estabelecem, de acordo com as fórmulas simples e iluminadoras de Bobbio, o "quem" e o "como" da decisão política - e que se encontram em todos os regimes geralmente chamados democráticos.


Foto: BrainPix
Norberto Bobbio: na realidade, as regras do jogo valem como condições da democracia



Todas as regras enumeradas por Bobbio dizem respeito, direta ou indiretamente, à instituição que caracteriza a democracia representativa: as eleições. Hoje, e não sem bons argumentos, tende-se a não considerar indissolúvel o nexo entre eleições e democracia. Que as eleições são um indicador insuficiente da democracia de um sistema político é algo evidente, até mesmo banal. Mas isso não deve levar à atribuição de uma importância secundária à instituição das eleições, nem mesmo a negligenciá-la ou desacreditá-la, como às vezes tendem a fazer alguns promotores da (assim chamada) "teoria deliberativa da democracia" atualmente em voga.

Um leitor de Bobbio poderia se limitar a confirmar outra obviedade banal: em uma coletividade de grandes dimensões, a autodeterminação democrática não pode se realizar a não ser sob a forma da democracia representativa, e esta não pode sobreviver sem as eleições. Há quem pense que as eleições podem ser abolidas e substituídas pelas formas difusas de "deliberação" (seja lá o que isso signifique). É verdade que uma democracia "apenas" eleitoral pode ser uma democracia aparente, mas também é verdade que, abolidas as eleições, não se teria mais nenhuma democracia, nem aparente nem real.

Critérios de democratização

A tabela bobbiana das seis regras não é a tradução sintética em normas, ou em princípios inspiradores de normas, da concepção processual da democracia. Assim, as seis regras são apenas a explicitação articulada de sua definição mínima "segundo a qual por regime democrático se entende principalmente um conjunto de regras de procedimento para a formação das decisões coletivas, nas quais é prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados".

Também com o propósito de testar a validade e a fertilidade da teoria bobbiana, eu sugeri que esse "conjunto de regras" pode ser adotado e utilizado como um verdadeiro e apropriado critério de democratização, simplificado, mas eficaz, ou seja, como parâmetro essencial de um juízo que estabelece se este ou aquele regime político realmente merece o nome de democracia. Na perspectiva de Bobbio, na realidade, as "regras do jogo" valem como condições da democracia. Aplicando de um modo elementar e intuitivo a gramática do conceito de "condição", pode-se dizer que, se essas regras encontrarem eco e aplicação real na vida política de uma coletividade, então essa coletividade pode se reconhecer e autodenominar democrática.

No capítulo da Teoria geral da política que assumi como texto de referência, Bobbio nos convida a considerar as seis regras como condições separadamente necessárias e apenas conjuntamente suficientes: "Não tenho dúvidas do fato de que basta a não observância de uma destas regras para que um governo não seja democrático". Em outro texto, Bobbio parece muito mais flexível: "Nenhum regime histórico jamais observou completamente o conteúdo de todas estas regras; e por isso é lícito falar de regimes mais ou menos democráticos".

Começo observando que Bobbio considera "graus diferentes de aproximação do modelo ideal". Devemos esclarecer que o "modelo ideal" que ele menciona não é a soma das promessas e ilusões que a doutrina democrática moderna, de Rousseau em diante, associou à prefiguração da comunidade política ideal. Nesse sentido, Bobbio dizia que o distanciamento da prefiguração doutrinária e idealizada da sociedade democrática, verificada em todas as experiências concretas de "realização" da democracia, não foi a "de 'transformar' um regime democrático em um regime autocrático". A fronteira entre os dois tipos de regime está no fato de que, e na medida em que, as regras do jogo democrático sejam respeitadas de alguma maneira e até certo grau.

O problema mais importante não é tanto o de definir o número de regras que devem ser respeitadas para que um regime concreto possa passar no teste da democracia, mas o da forma e do grau de sua aplicação. Então, adverte Bobbio, as regras do jogo são "aquelas listadas, simplíssimas, mas nada fáceis de aplicar corretamente". Por isso, na análise de casos das democracias reais, "deve-se ter em mente o possível desvio entre a enunciação [das regras] de seu conteúdo e o modo pelo qual elas são aplicadas".

E isso permite reconhecer que há democracias reais mais democráticas ou menos democráticas. Mas em 1984 Bobbio não hesitava: "mesmo a mais distante do modelo", ou seja, do paradigma de uma aplicação correta das regras do jogo, "não pode ser de modo algum confundida com um estado autocrático". Então, afirmava ele, apesar das secas réplicas da história às promessas e ilusões da doutrina democrática moderna, "não se pode falar propriamente de uma 'degeneração' da democracia".

Eu me pergunto: isso ainda é verdadeiro? Estamos dispostos a reconhecer essa afirmação, depois de 25 anos? Se mantivermos a formulação de Bobbio, que assumia como termo de comparação a "era das tiranias", os totalitarismos do século 20, provavelmente sim. Porém, podemos nos perguntar: depois da análise de Bobbio, que outras transformações sofreu a democracia?

Vejamos: diante do problema dos imigrantes, hoje particularmente agudo na Europa - ou, em outras partes do mundo, como na América Latina, diante da interminável massa de cidadãos inexistentes, excluídos não apenas da vida pública, mas condenados a uma condição de existência miserável e sem resgate -, como fica a condição de inclusão posta como primeira regra da tabela de Bobbio? Diante dos efeitos distorcidos da representação política, produzidos por grande parte dos sistemas eleitorais atualmente em vigor nas democracias reais, como fica a condição de equivalência dos votos individuais definida pela segunda regra?

Diante das grandes concentrações nas mídias, como fica a condição de pluralidade da informação exigida implícita mas claramente na terceira regra, para a livre formação das opiniões e das escolhas dos cidadãos? Diante da personalização da luta política e da administração do poder, da distorção das cúpulas e das "lideranças" da vida pública, das campanhas eleitorais reduzidas a duelos pela conquista monocrática dos cargos supremos, e do consequente empobrecimento das opções disponíveis, como ficam as condições de pluralismo político requeridas pela quarta regra?

E diante da configuração da dialética política como um jogo de soma zero, no qual "quem ganha leva tudo", não se poderia falar talvez de um abuso do princípio da maioria, postulado pela quinta regra como uma condição simples da eficiência da democracia? E, finalmente: diante das repetidas e difundidas violações dos direitos fundamentais, sobretudo dos direitos sociais, mas também dos direitos de liberdade, pelos mesmos governos das democracias reais nas mais recentes estações políticas, e diante das alterações na separação dos poderes, como ficam os "direitos das minorias" protegidos pela sexta regra como condição para a sobrevivência da democracia?

É supérfluo acrescentar que essas minhas considerações não pretendem de fato valer como uma crítica a Bobbio. Pelo contrário: elas pretendem mostrar a permanente validade, fertilidade e efetividade dos instrumentos conceituais que sua teoria da democracia nos oferece, mesmo se a aplicação desses instrumentos aos casos concretos da experiência política contemporânea nos cause uma preocupação, com relação aos destinos da democracia, maior do que aquela que o próprio Bobbio, o Bobbio "pessimista", manifestava um quarto de século atrás.

Tolerância - debate livre - fraternidade

Pode parecer que uma teoria centrada nas regras do jogo seja a expressão de uma concepção puramente técnica da democracia, estranha a toda problemática ética, e distante do mundo dos valores. Não é assim. Bobbio sente a necessidade de responder a uma pergunta que ele mesmo reconhece como "fundamental": "Se a democracia é principalmente um conjunto de regras de procedimento, como pode pretender contar com 'cidadãos ativos'? Para que cidadãos ativos existam, não seria preciso que tivéssemos ideais? Certamente temos ideais. Mas como não se dar conta de quais grandes lutas ideais produziram essas regras?". Em suma: Bobbio nos faz entender claramente que as mesmas técnicas processuais, "que tão frequentemente zombaram das regras formais da democracia", são o fruto de escolhas de valores, e são postas como condições para a criação de uma forma de convivência desejável e aprovada com base em determinados valores.

Mas quais valores? Para simplificar, sugiro dividir o mundo dos valores que são relacionados à ideia de democracia, fazendo dela um ideal a ser buscado, em dois hemisférios. No primeiro encontramos os valores implícitos nas mesmas regras processuais da democracia como objetivos ideais que esta apenas permite perceber, e então como critérios que a tornam preferível às outras regras políticas. São os valores democráticos no sentido estrito. Bobbio enumera explicitamente quatro: tolerância, não violência, renovação da sociedade pelo debate livre, e fraternidade.

Mas não é difícil ver que na tabela das seis regras do jogo democrático (sobretudo nas quatro primeiras) estão implícitos também os outros dois valores da tríade francesa clássica, ou seja, igualdade e liberdade. Não a igualdade e a liberdade em geral, em cada significado e especificação possível, mas sim determinados tipos delas. Corretamente democrático é o reconhecimento da dignidade política igualitária de todos os indivíduos, da qual decorre a distribuição igualitária do direito/poder de participar da formação das decisões coletivas. Do mesmo modo, corretamente democrática é a liberdade positiva, que é a liberdade como autonomia, a capacidade de determinar por si mesmo suas próprias opiniões e escolhas políticas, e de fazê-las valer na arena pública.

Isso significa talvez que as liberdades (assim chamadas) negativas ou civis, de um lado, e as dimensões econômico-sociais da igualdade, de outro, não são valores, ou não têm nada a ver com a democracia? Não: elas são valores, e nós as encontramos no segundo hemisfério do mundo axiológico que permeia a ideia de democracia. Não valores democráticos no sentido estrito, que são analiticamente incluídos no conceito de democracia - tanto é verdade que por vezes têm sido assumidos e reivindicados mesmo sem e contra a democracia, respectivamente pelos movimentos liberais e socialistas.

Contudo, são valores que devem ser reconhecidos como tais, e buscados para permitir a existência mesma da democracia e sua melhoria, e que por outro lado só a democracia permite realizar e garantir de formas não precárias ou distorcidas. Naturalmente, é preciso novamente distinguir e especificar: do ponto de vista democrático, nem toda forma de liberdade, nem toda forma de igualdade é um valor.

Aquelas que Bobbio chama de "as quatro grandes liberdades dos modernos" - a liberdade pessoal, de opinião, de reunião e de associação - são valores de tradição liberal que um bom democrata deve fazer. As normas das constituições liberais que reconhecem essas liberdades como direitos fundamentais da pessoa, esclarece Bobbio, "não são propriamente regras do jogo: elas são regras preliminares que permitem a realização do jogo". Poderíamos dizer que, se as regras do jogo são as condições da democracia, os quatro grandes direitos de liberdade negativa são suas pré-condições liberais. Mas devemos acrescentar que algumas dimensões não políticas da igualdade, também reivindicadas como direitos fundamentais das tradições socialistas, representam as pré-condições sociais das pré-condições liberais da democracia.

Que sentido teriam os direitos de participação política se não fossem garantidos os direitos à livre manifestação do pensamento, à livre reunião e associação? Mas que sentido teria a liberdade de pensamento, de reunião, de associação, sem o direito à educação, de um lado, e às informações livres e plurais, do outro? Que valor têm os direitos de liberdade sem o poder concreto de fazer o que é permitido fazer? Para que têm valor esses direitos sem as condições materiais que colocam os indivíduos enquanto tais, todos os indivíduos, como livres?

Para retomar, simplificar ainda mais, e tentar fixar algum ponto principal de orientação teórica, proponho o seguinte esquema conceitual. Uma afirmação como "a democracia é o regime da igualdade e da liberdade política" deve ser considerada como um juízo analítico: o predicado deixa explícito qual é o conteúdo do (significado do) sujeito. Uma proposição (dupla) como "a democracia é o regime das liberdades individuais e/ou das igualdades sociais", que à primeira vista pode parecer extravagante, contudo é diversamente reconduzida a algumas declinações históricas da noção de democracia.

Tal proposição deve ser considerada, feitas as especificações oportunas, como um juízo sintético: a síntese entre a) liberdade e igualdade política, b) liberdades liberais e c) justiça social representa, de um lado, uma demanda imprescindível, já que diz respeito ao nexo entre as condições e pré-condições da democracia; por outro lado, constitui um horizonte normativo inesgotável para a melhoria contínua da democracia e a correção de seus defeitos.

A ideia de democracia também pode ser empreendida de uma perspectiva diferente, adotando o esquema conceitual da tríade daquilo que Bobbio chama de seus ideais: democracia, direitos do homem e paz. Esses três ideais estão interligados por um nexo de implicação recíproca que a história da segunda metade do século 20 revelou: "Os direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico". Hoje podemos dizer que a necessidade daquele tríplice vínculo é confirmada, em negativo, também pelo "movimento contra-histórico" que estamos sofrendo logo depois do fim do século. Nas últimas duas décadas parece realmente que a história mudou de direção, que a corrente do movimento inverteu sua marcha, ou que aquilo que Bobbio chamava de "matéria bruta" do mundo opôs uma dura resistência aos ideais de democracia, dos direitos e da paz: não apenas freou sua afirmação, mas também provocou sua crise.

Crise da democracia

Que a democracia hoje esteja em crise, nos vários significados atribuídos a esta palavra, é uma afirmação banal, mas não por isso menos verdadeira. Como já tive ocasião de mencionar, um dos aspectos dessa crise consiste na difusão, em escala planetária, de certas formas de atuação política que alguns estudiosos batizaram com um neologismo: "antipolítica". Mesmo que o conceito ainda seja nebuloso, o termo designa com uma boa aproximação a visão e a estratégia dos partidos e movimentos que buscam agregar consenso ao redor de fórmulas demagógicas neopopulistas, caracterizadas pela contraposição da vontade "verdadeira" do "povo" àquela expressa pelas culturas políticas sedimentadas no sistema de partidos e das instituições de representação.

Na Europa muitos atores políticos de direita, expressões do "chauvinismo do bem-estar" produzido pela globalização, obtiveram notáveis sucessos com métodos antipolíticos. Na América Latina também há alguns sujeitos (com presunções e pretensões) de esquerda, que viram nas vítimas da globalização uma oportunidade para assumir os esquemas da antipolítica. Com efeito: para designar ambos, os de direita e de pseudoesquerda, eu seria tentado a adotar, em vez do neologismo "antipolítica", o termo mais explícito "antidemocracia"; também para sugerir que, apesar do consenso eleitoral obtido por esses atores políticos, trata-se de uma caricatura, de uma imitação de democracia: de uma democracia aparente que reveste e disfarça formas incipientes de autocracia eletiva.

A noção de antidemocracia contém um potencial explicativo maior. Em uma série de artigos dedicados à história política italiana, Bobbio elaborou um modelo conceitual baseado na dupla equação entre fascismo e antidemocracia, e entre democracia e antifascismo. A argumentação na qual esse esquema se desenvolve permite revelar a essencial negatividade lógica e axiológica do fascismo, cuja identidade se resolve na negação total da democracia. Sugiro que hoje isso pode, uma vez mais, revelar-se fértil para atingir esse modelo conceitual construído por Bobbio sobre a história italiana, para iluminar alguns dos derivados mais perigosos da política contemporânea.

Facismo pós-moderno

Ao risco de fazer tremer os historiadores de profissão, que já mal suportam o uso extenso do termo fascismo para designar realidades históricas distintas daquela originária da Itália, e se opõem decididamente à acepção genérica desse mesmo termo, que abrange vários tipos de regimes ditatoriais ou autoritários, eu proporia caracterizar as diversas manifestações da "antidemocracia" que estamos observando em muitas partes do mundo, embora em graus e formas diversas, como fascismo pós-moderno: que a mistura entre repressão violenta e ilusão demagógica própria do fascismo histórico privilegia (até agora?) o segundo ingrediente; que fomenta a hiperpersonalização da política e às vezes expressa figuras grotescas de poder carismático; que busca o fortalecimento do Executivo (depois de ter sido conquistado) debilitando vínculos e controles; que age de maneiras potencialmente (mas às vezes claramente) subversivas da ordem consolidada nas arquiteturas constitucionais. Um exemplo? Nos últimos anos de sua vida ativa, o próprio Bobbio sublinhou a analogia entre o Partido Fascista e a Forza Italia, o partido pessoal inventado por Berlusconi, mostrando a natureza essencialmente "subversiva" de ambos.

Em um dos artigos sobre a história italiana que acabo de mencionar, escrito em 1983, depois de lembrar o juízo irônico de Marx, de acordo com o qual certos fenômenos históricos ocorrem duas vezes, primeiro como tragédia e depois como farsa, Bobbio observava que o fascismo era ao mesmo tempo tragédia e farsa. A dimensão trágica não precisa ser ilustrada: basta mencionar a feroz repressão da oposição política e de toda forma de dissensão, e a miserável guerra ao lado da Alemanha nazista.

Com relação à dimensão farsesca, da qual Bobbio naquele texto oferece vários exemplos, me limito a recomendar (sobretudo para os mais jovens, que talvez não a conheçam) a visão de certas imagens dos "jornais cinematográficos" da época, que nos passavam a figura do "líder" Mussolini na sacada do Palazzo Venezia, com os punhos na cintura e o maxilar levantado, enquanto se dirigia à multidão da "massa oceânica": eu asseguro que elas são muito mais grotescas que a famosa sequência do filme de Charlie Chaplin na qual Hitler joga bola com o mapa-múndi.

Portanto, como tragédia e farsa foram perfeitamente fundidas no regime de Mussolini, Bobbio conclui então que o fascismo não teria podido se repetir. Hoje, um observador desencantado com a realidade não hesitaria muito para julgar aquela conclusão como precipitada. E, se fosse particularmente pessimista, adiantaria a hipótese de que talvez um novo ciclo de tragédias e farsas se abriu, ainda que com termos invertidos: em resumo, levantaria a questão de que muitos episódios políticos ridículos do fascismo pós-moderno, dos quais somos em diversas medidas (e não apenas na Itália) os espectadores não divertidos, poderiam preceder novas tragédias.

Um escritor do século 19, Vincenzo Gioberti, dedicou uma obra para glorificar a primazia moral e cívica dos italianos. Nas mais recentes estações políticas, frequentemente fui tentado a reverter a retórica giobertiana, denunciando a primazia imoral e anticívica dos italianos, que ofereceram ao mundo o modelo do fascismo desde o início do século 20 e, não satisfeitos, antes do fim do milênio, quase como uma grotesca prefiguração do apocalipse, colocaram em cena uma variação inédita da antidemocracia baseada na idiotização dos cidadãos pela mídia.

Bobbio se acostumou a repetir que a Itália é um laboratório político. Permito-me acrescentar: às vezes se assemelha ao laboratório de Frankenstein. Produz monstros. E como muitos produtos made in Italy demonstraram ser muito bem-sucedidos, eu recomendo a todos continuar observando atentamente aquilo que sai de nosso laboratório.

Tanto para o mal quanto para o bem. Nós também produzimos coisas boas. Acima de tudo - e não me canso de repetir -, a Constituição da República Italiana de 1948, que foi a primeira a ser elaborada no período imediato do pós-guerra, como fruto de uma assembleia constituinte eleita por sufrágio universal e pelo método proporcional, e que também pode ser considerada, a seu modo, como exemplar.

Tanto é verdade que foi tomada como um ponto de referência, e sob muitos aspectos como um modelo mesmo, a exemplo dos redatores da Constituição espanhola pós-franquista. E então de muitos produtos da cultura, não apenas artística, mas também propriamente política: a necessidade de enfrentar tantas calamidades afia o talento. Aqui, como conclusão, só posso recomendar, inclusive como um meio de formarmos anticorpos contra o risco de uma nova forma de antidemocracia travestida de democracia eleitoral, e contra os perigos de um fascismo pós-moderno, a leitura atenta da obra de Norberto Bobbio: um produto da melhor cultura italiana.














[grifos do blog]


sexta-feira, 3 de julho de 2009

Michel Foucault

A arte de viver

O jornal La Repubblica, 01-07-2009, publicou um texto do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), em que se debate a relação do cinismo, do ceticismo e do niilismo, a partir da arte. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS







Há uma razão que levou a arte moderna a se tornar o veículo do cinismo: falo da ideia de que a própria arte, seja literatura, pintura ou música, deve estabelecer uma relação com o real que vá além do simples embelezamento, da imitação, para ser deixada nua, para se tornar desmascaramento, raspagem, escavação, redução violenta da existência aos seus elementos primários. Não há dúvida de que essa visão da arte foi se firmando de modo sempre mais marcado a partir da metade do século XIX, quando a arte (com Baudelaire, Flaubert, Manet) se constituiu como lugar de irrupção daquilo que está embaixo, do lado de baixo, de tudo aquilo que, em uma cultura, não tem o direito ou, pelo menos, não tem a possibilidade de se expressar.

Com relação a isso, pode-se falar de um antiplatonismo da arte moderna. Se vocês viram a mostra sobre Manet neste inverno, entenderão o que eu quero dizer: o antiplatonismo, encarnado de maneira escandalosa por Manet, representa, a meu ver, uma das tendências de fundo da arte moderna, de Manet até Francis Bacon, de Baudelaire até Samuel Beckett ou Burroughs, mesmo que não se identifique atualmente como elemento caracterizador de toda a arte possível. Antiplatonismo: a arte como lugar de irrupção do elementar, como o despir-se da existência.

Em consequencia, a arte estabeleceu com a cultura, com as normas sociais, com os valores e os cânones estéticos uma relação polêmica, de redução, de recusa e de agressão. É esse o elemento que faz da arte moderna, a partir do século XIX, o movimento incessante por meio do qual toda regra estabelecida, deduzida, induzida, inferida sobre a base de qualquer um dos seus atos precedentes, foi rejeitada e recusada pelo ato sucessivo. Em toda forma de arte, pode-se encontrar uma espécie de cinismo permanente com relação a toda forma de arte conquistada: é o que podemos chamar de antiaristotelismo da arte moderna.

A arte moderna, antiplatônica e antiaristotélica: posta a nu, redução ao elementar da existência; rejeição, negação perpétua de toda forma já conquistada. Esses dois aspectos conferem à arte moderna uma função que, substancialmente, poderia ser definida como anticultural. É preciso opor a coragem da arte, na sua verdade bárbara, ao conformismo da cultura. A arte moderna é o cinismo da cultura, o cinismo da cultura que se revolta contra si mesma. E é sobretudo na arte, mesmo que não só nela, que se concentram, no mundo moderno, no nosso mundo, as formas mais intensas daquela vontade de dizer a verdade que não tem medo de ferir os seus interlocutores.

Naturalmente, ainda ficam muitos aspectos a ser aprofundados, particularmente o da própria gênese da questão da arte como cinismo da cultura. Pode-se ver os primeiros sinais desse processo, destinado a se manifestar de modo clamoroso nos séculos XIX e XX, em "O sobrinho", de Rameau e no escândalo provocado por Baudelaire, Manet, (Flaubert?).

Depois, existem as relações entre cinismo da arte e vida revolucionária: afinidade, fascinação recíproca (perpétua tentativa de unir a coragem revolucionária de dizer a verdade à violência da arte como irrupção selvagem do verdadeiro); mas também o fato de não serem substancialmente sobreponíveis, devido, talvez, ao fato de que, se essa função cínica está no coração da arte moderna, o seu papel no movimento revolucionário é só marginal, pelo menos desde que este último foi dominado por formas de organização, desde quando os movimentos revolucionários se organizam em partidos, e os partidos definem a "verdadeira vida" como total conformidade às normas, conformidade social e cultural. É evidente que o cinismo, longe de constituir uma ligação, é um motivo de incompatibilidade entre o ethos da arte moderna e o da prática política, seja ela também revolucionária.

Poder-se-ia formular o mesmo problema em termos diferentes: por que o cinismo, que no mundo antigo assumiu as dimensões de um movimento popular, tornou-se, nos séculos XIX e XX, uma atitude elitista e marginal, mesmo que importante para a nossa história, e por que o termo cinismo é utilizado quase sempre em referência a valores negativos?

Poder-se-ia acrescentar que o cinismo tem muitos pontos de contato com uma outra escola de pensamento: o ceticismo – também neste caso, um estilo de vida, mais do que uma doutrina, um modo de ser, de fazer, de dizer, uma disposição a ser, a fazer e a dizer, uma atitude a colocar à prova, a examinar, a colocar em dúvida. Mas com uma diferença extremamente grande: enquanto o ceticismo aplica sistematicamente essa atitude ao campo científico, quase sempre ignorando o exame dos aspectos práticos, o cinismo parece centrado em uma atitude prática, que se articula em uma falta de curiosidade ou em uma indiferença teórica e na aceitação de alguns princípios fundamentais.

Isso não exclui que, no século XIX, a combinação entre cinismo e ceticismo tenha estado na origem do "niilismo", entendido como modo de viver baseado em uma preciosa atitude com relação à verdade. Devemos deixar de considerar o niilismo sob um único aspecto, como destino inelutável da metafísica ocidental, à qual se poderia escapar apenas fazendo um retorno àquilo cujo esquecimento essa própria metafísica tornou possível; ou como uma vertigem de decadência típica de um mundo ocidental que já se tornou incapaz de crer em seus próprios valores.

O niilismo deve ser considerado, em primeiro lugar, como uma figura histórica particular pertencente aos séculos XIX e XX, mas deve também ser inscrito na longa história que o precedeu e preparou, a do ceticismo e do cinismo. Em outras palavras, deve ser visto como um episódio, ou melhor, como uma forma, historicamente bem definida, de um problema que a cultura ocidental começou a se colocar já há muito tempo: o da relação entre vontade de verdade e estilo de existência.

O cinismo e o ceticismo foram dois modos de se colocar o problema da ética da verdade. A sua fusão no niilismo ilumina uma questão essencial para a cultura ocidental, que pode ser formulada deste modo: quando a verdade é colocada continuamente em discussão pelo próprio amor pela verdade, qual é a forma de existência que melhor combina com esse contínuo interrogar-se? Qual é a vida necessária quando a verdade não é mais necessária? O verdadeiro princípio do niilismo não é: Deus não existe, tudo é permitido. A sua fórmula é, pelo contrário, uma pergunta: se devo me colocar diante do pensamento que "nada é verdadeiro", como devo viver?

A dificuldade de se definir a ligação entre o amor da verdade e a estética da existência está no centro da cultura ocidental. Mas não me preocupa tanto definir a história da doutrina cínica, quanto a da arte de existir. Em um Ocidente que inventou tantas verdades diversas e que formou tantas diferentes artes de existir, o cinismo serve para nos lembrar que bem pouca verdade é indispensável para quem quer viver verdadeiramente, e que bem pouca vida é necessária quando nos mantemos verdadeiramente na verdade.

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