quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O indivíduo como ponto inicial na filosofia kierkegaardiana

Hannah Arendt (foto) compreendeu o uso estratégico dos pseudônimos do filósofo dinamarquês, e não o considerava individualista ou enclausurado, menciona Marcio Gimenes de Paula. Ela o tinha como um dos mestres da suspeita, que toma o indivíduo como ponto de partida. Por: Márcia Junges e Jasson Martins. Fonte: Revista do Instituto Humanitas UNISINOS

Marcio Gimenes de Paula é graduado em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano Independente. Cursou graduação, mestrado e doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Atualmente, é professor adjunto II do departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe - UFS, pesquisador da FAPITEC-SE, membro da Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard (Sobreski), da Sociedade Brasileira de Filosofia da Religião, do Grupo de Pesquisa em Ciências da Religião da UFS, do Grupo de pesquisa sobre a obra de Kierkegaard da CNPq, e da Sociedade Feuerbach Internacional. Suas pesquisas versam sobre Filosofia da Religião, Ética, Kierkegaard e cristianismo. Publicou recentemente o livro Indivíduo e comunidade na filosofia de Kierkegaard (São Paulo: Paulus, 2009). Na Jornada Argentino-Brasileira de Estudos de Kierkegaard, em 12 de novembro, apresentará a comunicação “A temática da secularização: Hannah Arendt, leitora de Kierkegaard”.



IHU On-Line - Quais são os pontos de contato entre o tema da secularização entre Arendt e Kierkegaard?

Marcio Gimenes de Paula - A temática da secularização é bastante ampla e, a rigor, pode ser vista desde os primórdios do cristianismo. Ora ela parece se configurar com uma total ruptura dos conteúdos da fé e, em outros momentos, parece até ser um complemento da fé ou um aprofundamento dos seus conteúdos. Na obra de Hannah Arendt, pensadora política por excelência, penso que o ponto central se encontra exatamente na política. Em outras palavras, para a pensadora a secularização é vista como o momento onde os homens param de olhar para os céus e começam a preparar, a partir da sua condição dada, uma sociedade produzida por eles próprios. Nesse sentido, a política é, por si só, secularizante. Já para Kierkegaard, pensador do século XIX, descrente de sistemas e crítico da cristandade, a secularização é o ponto onde a humanidade vai inevitavelmente desembocar, pois depois da racionalização teológica, da massificação do homem e do tempo dos sistemas, tudo será explicado e resultará em produto da mão humana. Kierkegaard, seguindo a esteira agostiniana, é severo crítico do processo de secularização. Arendt parece ser sua observadora e admiradora, mas ambos enxergam o indivíduo perdido no meio de tudo isso. Talvez esse seja o ponto de contato entre ambos os pensadores.


IHU On-Line - Qual é a atualidade da secularização em Kierkegaard para discutirmos o indivíduo em nossos dias?

Marcio Gimenes de Paula - Antes de mais nada, parece que nunca é demais lembrar que Kierkegaard sempre separou claramente indivíduo de individualismo. O indivíduo, na era dos sistemas filosóficos e de uma cristandade massificadora, como foi o tempo do autor dinamarquês, parece ter sido soterrado por uma avalanche promovida ora pelo Estado, ora pela Igreja e até pelas universidades. Restava, seguindo a pista socrática e cristã, recuperar este indivíduo único e indivisível, átomo e, se quisermos pensar aqui mais teologicamente, imago Dei. Hoje nossa situação não parece tão diferente. Temos um individualismo doentio e seguimos a ter os indivíduos sufocados pelas mais diversas instituições e pressões. Quando alguém vai até um culto qualquer e se sente feliz por estar na companhia de milhares de pessoas no ato de louvor, isso nada mais é do que um sintoma de que ninguém acredita no ato em si, mas espera a legitimação do mesmo na multidão.


IHU On-Line - Como percebe os conceitos de indivíduo e comunidade partindo da obra desse autor?

Marcio Gimenes de Paula - Kierkegaard é um filósofo que possui um profundo apreço por dois grandes personagens célebres da subjetividade. O primeiro é Sócrates. O autor dinamarquês devota seus esforços a entender a filosofia socrática e sua afirmação pelo indivíduo. Mesmo quando o critica, Sócrates segue sendo a referência para um tempo que se perdeu em ilusões sistemáticas que parecem já tudo saber. Sócrates é o antídoto, o médico que aconselha o vômito em meio ao excesso de comilança. Por isso é que, não fortuitamente, ele será o modelo de toda a obra do autor até mesmo na crítica à Igreja oficial, já no final de sua produção. Já Cristo é a figura do mistério. Ele é aquele que preferia falar com cada indivíduo ao invés de ser legitimado pela massa, pela multidão. Contudo, Kierkegaard compreende Cristo também como Deus, como aquele capaz de trazer a salvação para cada indivíduo.


IHU On-Line - Atualmente, o que é o indivíduo numa sociedade secularizada e pós-metafísica?

Marcio Gimenes de Paula - Confesso que não sei muito bem o que dizemos quando afirmamos viver numa sociedade secularizada. É bem verdade que, especialmente depois do século XIX, a política como produto dos homens constrói – para o bem ou para o mal – o mundo ao seu redor. Contudo, a secularização não deixa de ter nunca um pouco de religioso, e a prova disso é a situação em que vivemos no mundo todo e, em especial, no Brasil. Estão aí os muitos fundamentalismos, as casas legislativas cheias de sinais religiosos e os governos, como o caso do governo brasileiro, assinando acordos que parecem ameaçar seriamente a laicidade do Estado. Assim, penso que o indivíduo numa sociedade secularizada e pós-metafísica (o que também me parece confuso, mesmo com as explicações perspicazes do professor Gianni Vattimo ) ainda se encontra em suspenso, entre a descrença e o pavor, entre o medo e a desconfiança.


IHU On-Line - Como Arendt, enquanto filósofa política, lê Kierkegaard, um filósofo tido como individualista e que escrevia recluso em um “castelo”, sob pseudônimos?

Marcio Gimenes de Paula - Penso que Arendt tinha grande apreço por Kierkegaard e não o considerava um pensador individualista ou enclausurado. Segundo avalio, ela sabia muito bem que o uso que Kierkegaard fazia dos pseudônimos era estratégico e que, além disso, sua posição de defesa do indivíduo não pode ser vista meramente como reacionária, mas antes como uma defesa diante da massificação, inclusive daquela operada pelos movimentos esquerdistas. Arendt o coloca, em sua obra Entre o passado e o futuro, como um dos mestres da suspeita, juntamente com Nietzsche e Marx, isto é, ela contraria a tradicional divisão e o coloca no lugar de Freud. Não parece pouca coisa para quem atentar ao detalhe.


IHU On-Line - Nesse sentido, como você percebe a contraposição entre as filosofias de Kierkegaard e Marx?

Marcio Gimenes de Paula - Creio que Karl Löwith, no seu clássico De Hegel a Nietzsche, aborda muito bem essa questão. Para ele, Kierkegaard é um típico pós-hegeliano e, como tal, se encontra numa esteira de pensadores que caminham entre a religião, a literatura e a política. Contudo, talvez Löwith tenha cometido um dado exagero ao colocar Kierkegaard no mesmo grau de contestação de Marx. O autor dinamarquês parece apontar claramente para um plano transcendente e sua política parece defender tal ponto o que, por si só, parece descaracterizar uma proposta política, embora tenha importantes contribuições para uma ética de fundo cristão e seja também importante para a alteridade. Marx parece romper com tal coisa, e sua proposta é claramente fundamentada no campo da imanência, na tentativa de alcançar a verdade pelos seus próprios esforços. Aqui penso que há uma diferença fundamental entre ambos.

IHU On-Line - Qual é a atualidade de Kierkegaard no contexto do pensamento filosófico contemporâneo?

Marcio Gimenes de Paula - A atualidade de Kierkegaard parece se provar, entre outras tantas coisas, por estarmos ainda hoje falando sobre ele, escrevendo sobre ele, organizando congressos, dando entrevistas. Numa era massificada, com instituições tão rígidas, penso que é fundamental a redescoberta do indivíduo e a ironia como instâncias significativas, lugares de onde a vida deveria partir. O indivíduo não é o ponto fundamental na filosofia de Kierkegaard, mas é talvez o ponto inicial. Por isso, sua influência é tão significativa em pensandores tão distintos como Paul Tillich, Karl Barth, Lacan, Wittgenstein, Heidegger, Jaspers, Sartre, Levinas, Hannah Arendt e tantos outros. Creio que muito mais do que ser kierkegaardiano, o desafio é pensar com e contra Kierkegaard quando necessário for. Compreendê-lo como uma perspectiva por onde se faz filosofia. Penso que isso dá muito mais alegria e sabor ao jogo.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

A filosofia de Kierkegaard como aporte ético à alteridade

Ainda que partindo do eu, filosofia do pensador dinamarquês pode fundamentar a defesa pela alteridade, pontua Patricia Carina Dip. Preeminência do ético sobre o metafísico é tributária a Levinas.

Por: Márcia Junges e Jasson Martins.Tradução: Jasson Martins.
Fonte: Revista do Instituto Humanitas UNISINOS

Entrevista concedida, por e-mail, pela filósofa argentina Patricia Carina Dip à IHU On-Line. Dip é doutora em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires - UBA, professora da Universidad Nacional de General Sarmiento – UNGS, e pesquisadora do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas - CONICET. Durante os últimos dez anos, dedicou-se a estudar, discutir e traduzir a obra de S. Kierkegaard. Publicou artigos em diversas revistas e participou de várias publicações conjuntas. No ano de 2007, publicou sua tradução (com um estudo preliminar) de S. Kierkegaard, Johannes Climacus o el dudar de todas las cosas (Buenos Aires: Editorial Gorla, 2007). Na Jornada Argentino-Brasileira de Estudos de Kierkegaard, apresentou o tema Subjetividade e Praxis: a recepção fenomenológica de Kierkegaard na obra de Michel Henry.


IHU On-Line - Na sua percepção, qual é a situação atual dos estudos de Kierkegaard no campo latino-americano de fala espanhola?

Patricia Carina Dip - Em minha opinião, os estudos da obra de Kierkegaard na América Latina de fala hispânica têm progredido consideravelmente nos últimos vinte anos. Tanto no México como na Argentina, foram fundadas bibliotecas e sociedades dedicadas exclusivamente ao estudo, tradução e divulgação da obra do pensador dinamarquês. Além disso, a figura de Kierkegaard foi ingressando paulatinamente na academia. Isso permitiu que se escrevessem vários trabalhos de doutorado discutindo suas ideias. Apesar de tudo isso ser muito positivo, ainda falta a tradução das obras completas em espanhol.

Por outra parte, apesar de que o maior impacto das ideias de Kierkegaard seja um fenômeno que pode ser observado em escala mundial, isso não significa que tenha surgido interpretações “integrais” de sua obra ou pensadores que pensem “com” Kierkegaard, inclusive distantes de seus pressupostos básicos. Espero que isto seja só um sintoma momentâneo dos estudos sobre o dinamarquês. Quer dizer, que em uma primeira etapa se produzam estudos especializados, porém que logo possamos observar a influência de sua obra em escritos originais.

“Compreender” corretamente um filósofo da estatura de Kierkegaard supõe abandonar seu caminho teórico com o objetivo de formular o próprio caminho. Ainda que este tipo de formulações não tenha sido realizado na América Latina, confio que formarão parte do que me atrevo a denominar “segunda etapa” na recepção do pensamento do dinamarquês. Esta consistiria no abandono da “letra” e a elaboração de um pensar atual.


IHU On-Line - Kierkegaard nos inspira a compreender e a mudar a política atual? Por quê? Se sim, em que aspectos?

Patricia Carina Dip - É difícil responder ao que nos induz Kierkegaard na primeira pessoa do plural. Por isso direi apenas ao que induz a mim. Acredito que o “subjetivismo” da filosofia kierkegaardiana, quer dizer, seu acento na compreensão do homem como uma espécie de “animal” que “valora”, pode servir de inspiração para transformar o atual funcionamento da política. O descrédito no qual tem caído a participação política tradicional obedece a distintos fatores; não obstante, disso não se deduz a “morte” do político, mas a necessidade de sua “ressurreição”. Neste sentido, a América Latina ocupa um papel certamente privilegiado, especialmente quando muitos intelectuais do primeiro mundo europeu tentaram convencer-nos de que havíamos ingressado na “pós-modernidade ou no pós-marxismo”. Ao contrário, creio que ainda não saímos da ilustração.

Neste sentido, considero fundamental recuperar um dos elementos essenciais da atitude ilustrada, a saber, o “anticonformismo”. Acredito que não devemos “conformar-nos” nem com leituras herdadas, nem com visões de mundo e interpretações do político que procuram aquietar as tensões sociais que podem ser observadas no seio do capitalismo global.

Kierkegaard pode servir de porta-voz da necessidade de “interessar-se” pela existência do atual estado de coisas, no sentido de sermos capazes de julgar o que sucede na história com nossas próprias vozes. Na Crítica de la Ilustración Agnes Heller diz que a alternativa é hoje “ou Kierkegaard, ou Marx”. Ela entende esta disjunção nos termos de ou bem elegemos o existencialismo individualista, ou bem a revolução socialista. Em certo sentido, me vejo inclinada a dar-lhe razão.


IHU On-Line - Como você analisa as trajetórias pessoais de Kierkegaard e Marx e os impactos que estas (a biografia) tiveram em suas filosofias?

Patricia Carina Dip - Em termos gerais sou inimiga das biografias. Especialmente do abuso em torno de sua utilização de que têm sido objeto os leitores de Kierkegaard. Não tem sentido tentar fundamentar o desenvolvimento de uma filosofia em aspectos relativos à vida íntima de quem a elabora. Um trauma infantil não conduz necessariamente à formulação de uma filosofia existencial, assim como tampouco a pobreza à teorização sobre a revolução social. Este tipo de abordagem me parece totalmente absurdo.

No entanto, acredito que há um modo muito mais rico de pensar a relação entre a “vida” e a “obra”. Trata-se de observar até que ponto o autor foi “consequente” com sua proposta. Um pensador como Hume nos induziria a crer que este tipo de exigência é quase “irrealizável”. Apesar de que, em certo sentido, isto seja correto, penso que um pensamento incapaz de ser consequente com seus próprios pressupostos, se torna indefectivelmente estéril.

Neste sentido, tanto Kierkegaard como Marx são modelos de intelectuais que expressam a necessidade de viver de maneira comprometida. Podemos inclusive pensá-los como autores complementares. Enquanto Kierkegaard nos exige um compromisso individual e privado, seja com o divino ou com o demoníaco, ou para dizê-lo com Nietzsche, que elejamos o bem ou o mal, o compromisso ao qual nos propõe Marx possui um sentido político social, ou bem nos identificamos com os valores da burguesia, ou bem com os do proletariado.


IHU On-Line - Pensando no aspecto do indivíduo, como entende a contraposição de suas filosofias, de Marx e Kierkegaard?

Patricia Carina Dip - Existe uma tendência habitual, baseada na leitura literal das declarações do próprio Kierkegaard, que leva a apresentá-lo como o filósofo cuja categoria fundamental é a noção de indivíduo. Embora de um ponto de vista filológico isto seja assim, é importante discutir que sentido tem a individualidade para Kierkegaard. Durante certo tempo, acreditei que se tratava do indivíduo apenas preocupado por suas circunstâncias, mesmo quando fosse apresentado sob o corretivo do “amor ao próximo”. Hoje tendo a considerar que, se a postura kierkegaardiana não é revolucionária, tampouco coincide plenamente com um mero reformismo. Inclino-me a pensar que o caráter do indivíduo kierkegaardiano é “psicológico”; e entendido em chave contemporânea acrescentaria que o modelo que o dinamarquês apresenta para evitar a recaída deste na “alienação” é a praxis cristã do amor ao próximo. Neste sentido, o dinamarquês não está longe do jovem Marx, também preocupado por resolver o problema da alienação própria da sociedade capitalista. Em termos gerais, diria que enquanto Kierkegaard descreve a alienação “psicológica” da sociedade burguesa, Marx descreve a alienação “social”. Ambos diagnosticam que o mal do mundo burguês é a alienação. A diferença reside na perspectiva da análise que cada um assume. Esta diferença, não obstante, é fundamental, posto que dela se deduzem distintas filosofias. A filosofia kierkegaardiana que se centra na descrição de fenômenos psicológicos e a filosofia marxiana que descobre um novo modo de pensar a história.


IHU On-Line - Qual é a atualidade da crítica de Kierkegaard e Marx para o pensamento continental?

Patricia Carina Dip - Levando em conta que considero a “globalização” como o modo no qual o capitalismo se expressa hoje, produzindo e justificando um fosso cada vez mais irrecuperável entre opressores e oprimidos, as condições históricas que se faziam necessárias para Marx pensar o socialismo não foram modificadas. Daí segue que ainda tem sentido trabalhar em prol da realização de um futuro socialista. Com isto quero dizer que as polêmicas em torno do fim das ideologias e a construção de democracias liberais me parecem parte de um programa teórico político que não compartilho e que denuncio como “tendenciosas”.

Neste contexto, Marx se torna mais atual do que nunca. Em algumas universidades latino-americanas, reaparece a necessidade de repensar o legado marxista, e isso me parece muito importante, ainda que insuficiente. Só poderemos avaliar até que ponto o marxismo se atualizou quando o modelo de produção capitalista tiver esgotado. Este esgotamento não é automático, mas depende de que os sujeitos históricos estejam dispostos a revitalizar a luta de classes. De modo que, em última instância, a atualidade do marxismo só poderá ser determinada pela história.

Pois bem, a atualidade de Marx não exclui a de Kierkegaard. Neste ponto me parece que a análise de Agnes Heller merece ser repensada. Um dos temas mais caros ao pensamento do dinamarquês, o problema da angústia, pode ser tomado como chave para entender a vigência de suas preocupações. Assim como as condições históricas que Marx tinha em mente ainda permanecem, as problemáticas da “psicologia da angústia” e a “ética da decisão” também. A profundidade do legado kierkegaardiano reside em certo grau de “universalidade” que possui seu discurso para compreender os fenômenos psicológicos e morais.


IHU On-Line - Quais são as principais chaves de leitura que esses pensadores nos fornecem para pensarmos a alteridade na sociedade pós-metafísica?

Patricia Carina Dip - Em primeiro lugar, o qualificativo “pós-metafísico” me parece complexo devido à infinidade de alternativas que abarca. Tanto Heidegger como Nietzsche e o próprio Kierkegaard, entre outros, foram críticos de um certo modo de fazer metafísica. No entanto, isso não é suficiente para incluir todos eles em um mesmo modelo teórico. A ontologia fundamental, o niilismo e o cristianismo não podem ser identificados, simplesmente. Em segundo lugar, não acredito que seja possível defender a vigência da filosofia sem assumir algum modo, mais ou menos crítico, de entender a metafísica. Por último, me parece importante discutir a assunção de certas modas filosóficas que a maioria das vezes nos impedem de pensar.

Dito isto, acredito que em Kierkegaard aparece a preeminência do ético por sobre o metafísico, da qual é devedor Levinas. Neste contexto, a ética cristã do amor ao próximo permite, ainda que o dinamarquês se ocupe de pensar o eu antes que ao outro, retirar derivações importantes para quem esteja interessado em formular uma “filosofia da alteridade”. Apesar de que o ponto de partida de Kierkegaard é o eu, sua filosofia pode ser entendida como um aporte ético para os que desejam defender uma verdadeira alteridade, e não apenas pronunciar um discurso “politicamente correto” sobre a diferença e a tolerância, porém “praticamente” estéril. Este aporte reside em compreender a singular presença do outro como um imperativo moral. Neste sentido, o dinamarquês nos obriga a atuar ainda quando não possamos formular uma “filosofia da alteridade” propriamente dita.

No que a elaboração de uma tal filosofia diz respeito, acredito que é iminente sua necessidade. Uma análise clara sobre as exigências da mesma nos conduziria a uma crítica do discurso pós-moderno sobre a “diferença”. Na formulação desta crítica, o marxismo poderia ocupar um papel fundamental na hora de descrever o sentido ideológico do programa teórico da filosofia da diferença. O antídoto contra a ideologia que pretende ser inclusiva “na teoria” aceitando, não obstante, a exclusão na “prática” ser constituída pela “filosofia da praxis”.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Renato Janine Ribeiro

O fim do mundo.

Artigo de Renato Janine Ribeiro (foto), professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP), publicado por EcoDebate, 08-09-2010.
Fonte: UNISINOS




Este ano está marcado por tragédias naturais. No dia 1º de janeiro, Angra dos Reis sofreu uma quantidade terrível de mortes, em acidentes pavorosos. Em abril, foi a vez de Niterói. Mais uns dias, e um vulcão na Islândia parou o tráfego aéreo na maior parte da Europa. O medo se difunde – o medo de algo tão horrível que poderia ser o fim do mundo.

Hoje, é difícil alguém sustentar que Deus está tão encolerizado com a maldade dos homens que virá nos castigar por ela. Mas durante muito tempo se viveu sob o fantasma da Arca de Noé: tanto se pecou que as águas devastariam tudo, poupando apenas, quem sabe, os poucos justos. O mesmo se deu, segundo a Bíblia, em Sodoma e Gomorra. E certamente há pessoas de forte religião e pouca reflexão que acreditam nesse cenário, isto é, que o pecado seja a causa de um castigo divino.

Bons e maus. Seria mais ou menos óbvio Deus premiar os bons e punir os maus. Nisso entra o modelo Noé, Sodoma, Gomorra. Mas constatamos, com frequência, o contrário: gente boa que sofre, patifes que prosperam. Aqui entra o modelo Jó.

Homem temente a Deus, Jó é riquíssimo. Mas o diabo diz ao Senhor que Jó só é tão bom devido a sua prosperidade. Deus então autoriza Satã a destruir tudo o que Jó possui. Mas Jó, a todos os que acusam Deus por mau, responde que o Senhor deu, o Senhor tira. (No fim da história, ele recupera tudo o que perdeu). A história de Jó autoriza dizer que os bons sofrem porque Deus está testando a fé, a bondade e as suas virtudes. Em outras palavras, tudo o que sucede – de bom e mau – neste mundo pode ser explicado em termos religiosos. Mas hoje muitos de nós não aceitamos mais essas explicações como suficientes. Podemos crer em Deus, sim, mas queremos algo mais sofisticado – que é a Ciência.

A Ciência

Substituímos, então, uma visão mística por uma científica: as agressões contra a natureza estariam levando a uma série de catástrofes. Essas nada têm de religioso. São, simplesmente, reações naturais.

Um exemplo: há décadas que a cidade de São Paulo vem ocupando as margens dos rios com avenidas que chamamos, ótimo duplo sentido, de “marginais”. Quando chove muito, elas se inundam. Mas, na verdade, elas não são nossas: pertencem ao rio. Seul devolveu as marginais ao rio Cheonggyecheon, que tinha virado um esgoto impermeabilizado. São Paulo, enquanto isso, neste começo de 2010, impermeabilizou ainda mais as margens do Rio Tietê… É a crônica de uma destruição anunciada. Contudo, aqui surgem duas questões delicadas.

Será um mito? A primeira: será que, por trás da preocupação com a destruição da natureza, pulsará um novo milenarismo? ‘Milênio’ é uma palavra que indica um tempo – redondo, exato, múltiplo de mil: o ano Mil, em que o mundo ia acabar, o ano 2000, em que nossos computadores iam se apagar. Uma data, portanto, na qual devem ocorrer coisas portentosas. Podem até ser boas. Mas a maior parte de nós receia calamidades: o mundo destruído, nossos arquivos deletados.

Existirá um poderoso modelo mental que nos faz temer o futuro e inventar um passado admirável? O sonho com a “idade de ouro” em que não havia poluição, em que nossos alunos eram atentos, as pessoas, respeitosas, as cidades, seguras… não é que tudo isso esteja errado: mas é que omite a miséria que havia, a saúde ruim, a educação má, a expectativa de vida baixa. Então, é justo ter cautela quando tudo se reveste dos tons do apocalipse. Nem apocalipse nem paraíso, eis a condição humana.

Assim, críticos da Ecologia e defensores do desenvolvimento a qualquer custo alegam que estaríamos presos a um paradigma que faz crer na iminência de um mal fortíssimo, de um milenarismo no mau sentido. Vejam que esse argumento é útil para quem nega que o aquecimento global seja consequência dos abusos humanos. Em vez de mudar as ações que destroem florestas e desequilibram o planeta, mudaríamos nossa cabeça, que acha que tais atos são destrutivos.

Será verdade? A segunda perspectiva é mais assustadora. Reconhece, como a grande maioria dos cientistas, que o aquecimento global deve muito à ação irresponsável do homem. A presença do homem no mundo é recente se comparada com o tempo de existência do universo. Já ouviram a comparação da vida do universo com um relógio de 24 horas, no qual a existência humana ocuparia apenas os últimos minutos – ou segundos? Pois é. Se assim for, por que nossa espécie não sumirá um dia, como tantas outras?

O fato é que a Ciência tem apurado, com rigor nunca antes visto, riscos sérios que estão diante de nós. Também é verdade que ela exige mudanças em nossa conduta, se quisermos salvar nosso mundo. E, além disso, essas alterações farão um mundo melhor. Alguém tem dúvida de que o desperdício está longe de ser uma virtude ética?

Não precisamos ver, nas calamidades de Angra, Niterói e do vulcão islandês, um castigo de Deus, ou sequer a resposta imediata da natureza à devastação humana, mas podemos perceber que cuidados são necessários. Um novo e interessante espaço de discussão está crescendo, mundo afora, de pessoas que querem reduzir, reutilizar e reciclar. Uma responsabilidade com o mundo está substituindo, a meu ver com vantagem, as antigas lealdades confinadas ao Estado Nacional. Enfim, se nos tornarmos cidadãos globais, fará parte de nossa cidadania uma ética que respeite a natureza de uma forma talvez inédita.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Scarlett Marton

Uma ética nietzschiana

Dossiê: Genealogia e transvaloração dos valores morais para naturalizá-los

Por Scarlett Marton.
Fonte: Revista CULT


Ousado, irreverente, rebelde, é sobretudo dessa maneira que Nietzsche é conhecido entre nós. Filosofando a golpes de martelo, este pensador, um dos mais controvertidos de nosso tempo, não hesita em seus escritos em desafiar normas. Tanto é que ele vem questionar nossa maneira habitual de proceder, nosso modo costumeiro de agir. Ao criticar de forma contundente os valores que norteiam nossa conduta, quer mostrar que, ao contrário do que supomos, o bem nem sempre contribui para o prosperar da humanidade, nem o mal para a sua degeneração.

Diagnosticar os valores estabelecidos é um dos propósitos que Nietzsche se coloca nos textos a partir de Assim Falava Zaratustra. Introduzindo a noção de valor, ele opera uma subversão crítica: põe de imediato a questão do valor dos valores e, ao fazê-lo, levanta a pergunta pela criação dos valores. Se nunca se colocou em causa o valor dos valores “bem” e “mal”, se nunca se hesitou em atribuir ao homem “bom” um valor superior ao do “mau”, é porque se consideraram os valores essenciais, imutáveis, eternos.

Mas, ao contrário do que sempre se acreditou, Nietzsche quer evidenciar que os valores “bem” e “mal” têm uma proveniência e uma história. Eles não existiram desde sempre, não são obra de uma divindade ou de um princípio superior. “Humanos, demasiado humanos”, em algum momento e em algum lugar, simplesmente foram criados; por isso mesmo, surgem, passam por transformações e podem vir a desaparecer, dando lugar a novos valores.

Na Grécia antiga dos tempos homéricos, a aristocracia guerreira concebeu espontaneamente o princípio “bom”, que atribuiu a si mesma; só depois criou a ideia de “ruim”, como “uma pálida imagem-contraste”, para designar os que não pertenciam à casta, os que não eram dignos de serem inimigos. Com o judaísmo e o cristianismo, os sacerdotes converteram a preeminência política em preeminência espiritual. Enquanto valor aristocrático, “bom” se identificava a nobre, belo, feliz; tornando-se valor religioso, passou a equivaler a pobre, miserável, impotente, sofredor, piedoso, necessitado, enfermo. A transformação por que então passaram os valores morais foi fruto do ressentimento de homens fracos, que, não podendo lutar contra os mais fortes, deles tentaram vingar-se através desse artifício.

Nesse sentido, a religião cristã, desde o seu aparecimento, desempenhou papel de extrema relevância. Criação do apóstolo Paulo, ela veio impor o reino dos fracos e dos oprimidos. Se Nietzsche se dedica a criticá-la de forma radical, é antes de mais nada porque a vê como um sintoma da degeneração dos impulsos vitais. Produto do ódio e desejo de vingança daqueles a quem não é dado reagir e só resta res-sentir, ela seria a expressão mesma da decadência.

Perspectivismo, não relativismo

Ora, ao apontar as diferentes perspectivas a partir das quais surgem os valores, Nietzsche conta desmontar o mecanismo insidioso que impedia de questioná-los. Não vacila em levar à mesa de dissecação o ressentimento, a culpa e a má consciência, o altruísmo, o amor ao próximo e as chamadas virtudes cristãs. Com um agudo sentido de análise, empenha-se em desvendar o funcionamento secreto das paixões do homem.

É em Montaigne, Pascal, La Rochefoucauld, Vauvenargues e Chamfort que Nietzsche se inspira em suas reflexões acerca da conduta humana. É neles, ao lado do escritor Stendhal, que encontra alimento para as suas reflexões morais. Os chamados moralistas franceses, em vez de procurar pautar o comportamento do homem por alguma lei divina ou princípio superior, propõem-se estudar o ser humano tal como ele é. Sem se preocupar com a natureza humana universal ou a misericórdia de Deus que viria salvá-la, querem tomar por objeto de estudo o homem, sem recorrer à metafísica ou à teologia.

A obra que esses pensadores empreendem consiste, de modo geral, numa análise sutil dos móveis do homem. Embora quase todos cuidem do modo de agir individual, sempre o concebem como determinado ou corrompido por preconceitos da sociabilidade. No século 17, Pascal dedica-se a fazer ver que o homem sempre se ilude a respeito de si mesmo. É por desconhecer-se que se imagina grande; é para evitar o espetáculo da própria condição que recorre a dissimulações. Observa como as conveniências sociais transformam seus móveis verdadeiros e, sob a máscara da vaidade, descobre seus apetites inconfessáveis. E, com muita propriedade, escreve nos Pensamentos: “Divertida justiça que um rio limita! Verdade aquém dos Pirineus, erro além” (fragmento 294). No século 18, Chamfort amplia o âmbito da pesquisa e chega a encarar a moralidade social como englobando ou alterando a dos indivíduos; no século 19, Stendhal é o primeiro que, pela observação comparada dos costumes de diversos povos, acredita atingir fatos gerais.

Assim como esses pensadores franceses que tanto admira, Nietzsche quer fazer ver que os valores não são universais. Mas nem por isso resvala no relativismo. Insiste, ao contrário, que não basta mostrar que os valores surgiram a partir de ângulos de visão diferentes. Não basta relacioná-los com as perspectivas que os engendraram; é preciso ainda investigar que valor norteou essas perspectivas ao criarem valores.

Genealogia dos valores

Na ótica nietzschiana, a questão do valor apresenta duplo caráter: os valores supõem perspectivas que os engendram; estas, por sua vez, ao criá-los, supõem um valor que as norteia. É nisso que consiste o procedimento genealógico. A genealogia comporta assim dois movimentos inseparáveis: de um lado, relacionar os valores com perspectivas avaliadoras e, de outro, relacionar estas perspectivas avaliadoras com um valor.

É preciso, pois, encontrar um valor ou, se se quiser, um critério de avaliação que não tenha sido criado, ele mesmo, por uma perspectiva avaliadora. Em outras palavras: é preciso adotar um critério de avaliação que não possa ser avaliado. E o único critério que se impõe por si mesmo é a vida. “É preciso estender os dedos, completamente, nessa direção e fazer o ensaio de captar essa assombrosa finesse – de que o valor da vida não pode ser avaliado”, afirma Nietzsche. “Por um vivente não, porque este é parte interessada, e até mesmo objeto de litígio, e não juiz; por um morto não, por uma outra razão” (Crepúsculo dos Ídolos, “O Problema de Sócrates”, parágrafo 2).

Moral, política, religião, ciência, arte, filosofia, qualquer apreciação de qualquer ordem deve ser submetida ao exame genealógico, deve passar pelo crivo da vida. Fazer qualquer apreciação passar pelo crivo da vida equivale a perguntar se contribui para favorecê-la ou obstruí-la; submeter ideias ou atitudes ao exame genealógico é o mesmo que inquirir se são signos de plenitude de vida ou da sua degeneração; avaliar uma avaliação, enfim, significa questionar se é sintoma de vida ascendente ou declinante.

Viver”, define Nietzsche em Para Além de Bem e Mal, “é essencialmente apropriação, violação, dominação do que é estrangeiro e mais fraco, opressão, dureza, imposição da própria forma, incorporação e pelo menos, no mais clemente dos casos, exploração” (parágrafo 259). A partir daí, compreende-se que ele encare a moral cristã como negação da vida. E, se tivesse sentido falar em bem e mal, consideraria bom tudo o que contribui para a expansão e exuberância da vida e mau tudo o que provém da fraqueza.

Transvaloração dos valores

Mas ao lado da vertente corrosiva de sua obra, Nietzsche apresenta-nos outra, construtiva. Entendendo que o filósofo deve ser o “médico da civilização”, a ele atribui a tarefa de “resolver o problema do valor”, “determinar a hierarquia dos valores”. A filosofia tem de mergulhar fundo na própria época para ultrapassá-la; ela deve visar o que está por vir, tendo em mira um objetivo preciso: a criação de valores.

É por isso que Nietzsche concebe sua obra como a tentativa de retomar as rédeas do destino da humanidade. Sócrates representou um marco na visão grega do mundo, substituindo o homem trágico pelo teórico; e Cristo, um marco no pensamento ocidental, substituindo o pagão pelo novo homem. Mas, com ele, a negação deste mundo em que vivemos aqui e agora “se fez carne e gênio”. Inimigo implacável do cristianismo, Nietzsche nele encontrará um adversário que julga à sua altura. Conta inverter o sentido que ele procurou dar à existência humana; espera subvertê-lo. E, para inaugurar esta nova era, tem de realizar a transvaloração de todos os valores.

Transvalorar é, antes de mais nada, suprimir o solo a partir do qual os valores até então foram engendrados. Aqui, Nietzsche espera realizar obra análoga à dos iconoclastas: derrubar ídolos, demolir alicerces, dinamitar fundamentos. É deste ponto de vista que critica a metafísica e a religião cristã.

Traço essencial de nossa cultura, o dualismo de mundos foi invenção do pensar metafísico e fabulação do cristianismo. Com Sócrates, teve início a ruptura da unidade entre homem e mundo – e a filosofia converteu-se, antes de mais nada, em antropologia. Com o judaísmo, houve o despovoamento de um mundo que estava cheio de deuses – e a religião tornou-se, acima de tudo, um “monótono-teísmo”. Com o cristianismo, propagou-se a mentira da vida depois da morte e do chamado reino de Deus. Desvalorizando este mundo em nome de um outro, essencial, imutável e eterno, a cultura socrático-judaico-cristã é niilista desde a base.

Transvalorar é, também, inverter os valores. Aqui, Nietzsche conta realizar obra análoga à dos alquimistas: transformar em ouro o que até então foi odiado, temido e desprezado pela humanidade. É deste ângulo de visão que denuncia o idealismo e reivindica a adesão a esta vida tal como a vivemos, a aceitação deste mundo tal como o encontramos aqui e agora.

É chegada “a hora do grande desprezo”; é chegado o momento de questionar tudo o que até então o ser humano venerou e, pelo mesmo movimento, afirmar tudo o que até então ele negou. Só assim será possível revelar o que por trás dos valores instituídos se esconde e trazer à luz o que eles mesmos escondem. Se outrora o maior delito era o cometido contra Deus, agora mais sacrílego ainda é delinquir contra a Terra. Se outrora se prezava acima de tudo a vida depois da morte, agora é urgente entender que eterna é esta vida. Se outrora a alma mostrava descaso pelo corpo, agora é preciso que o corpo torne evidente o caráter fictício da alma.

Transvalorar é, ainda, criar novos valores. Aqui, Nietzsche pretende realizar obra análoga à dos legisladores: estabelecer novas tábuas de valores. É desta perspectiva que concebe a filosofia.

Eliminando as esperanças ultraterrenas, Zaratustra, “o sem-Deus”, conta reinscrever o ser humano na natureza. Suprimindo o além, Nietzsche, “o anticristo”, quer estabelecer uma nova aliança entre homem e mundo. Naturalizar os valores morais, é nisso que consiste seu empreendimento filosófico.

É bem verdade que, em momento algum, o autor de Assim Falava Zaratustra pregará um tipo de comportamento determinado ou imporá um estilo de vida específico; ele jamais pretenderá dizer o que se deve fazer. Sublinhando o caráter singular e irrecuperável de cada ação, Nietzsche insistirá em fazer ver que nosso modo de agir tem doravante de nortear-se por valores em consonância com a Terra, com a vida, com o corpo.

E, para tanto, ele se empenhará tanto na crítica corrosiva dos valores quanto na criação de novos valores. Genealogia e transvaloração aparecem assim como as duas faces da mesma moeda. Afinal, “quem quiser ser um criador no bem e no mal, esse tem de ser um aniquilador e destruidor de valores”.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Entrevista - Gilles Lipovetsky

Gilles Lipovetsky: "a pós-modernidade não existe"

Fonte: Revista Filosofia Ciência & Vida - Edição 49


Na entrevista exclusiva por telefone para Marcelo Galli/Filosofia Ciência & Vida, Lipovetsky falou sobre muitos temas, à maneira dos seus diversos estudos, nos quais a moda, o consumo, a revolução feminina, a Ética e o indivíduo, entre outros, são observados e elucidados, expondo a sua dinâmica na contemporaneidade. Membro do Conselho de Análise Social, órgão de apoio ao primeiro-ministro da França, termômetro para questões delicadas como a proibição do véu islâmico e outros sinais ostensivos religiosos nas escolas, Lipovetsky escreveu os livros O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas (Companhia das Letras), A Sociedade da Decepção, A Era do Vazio e A sociedade pós-moralista, estes últimos publicados no Brasil pela editora Manole.


FILOSOFIA - Você diz que não é correto falarmos que vivemos a pós-modernidade e empregou o conceito de "hipermodernidade". Mas o que seria, uma sociedade pós-moderna? Qual seria a sua dinâmica?

Gilles Lipovetsky - Acredito que temos sociedades cada vez mais hipermodernas. A modernidade já passou em algum sentido, porque o seu princípio organizacional, a tecnociência, o mercado e a democracia são cada vez mais constituições do nosso mundo. Por isso que não é possível falar atualmente de sociedade pós-moderna, não consigo imaginá-la. Pode-se pensar em um sistema futuro que poderá conciliar os imperativos da Economia com os da Ecologia, por exemplo, mas isso não seria pós-moderno, mas sim outra face da modernidade.

FILOSOFIA - Em sua opinião, o que atualmente a Filosofia tem deixado de abordar, refletir, criticar?

Gilles Lipovetsky - A Filosofia hoje não tem mais a necessidade de antigamente ou não somente de maître à penser, da via ativa que defende as grandes questões morais, políticas, sociais, ou que defende os povos colonizados ou luta contra o imperialismo. Essas grandes figuras intelectuais que lutam pelas grandes coisas, os grandes combates, não são mais úteis porque vivemos em sociedades educadas: as pessoas são formadas, têm acesso a informações pela imprensa ou internet. Os filósofos hoje devem pensar o mundo em sua complexidade e por meio de duas coisas essencialmente: fazer pensar o presente de longa duração, compreender a história do presente e, em segundo lugar, apontar os paradoxos da nossa época. Eu não vejo mais a necessidade de engajamento dos filósofos.

FILOSOFIA - De acordo com essa perspectiva, podemos então dizer que vivemos a época da "hiper-relatividade"? Porque há sempre resistência quando as coisas parecem generalizadas.

Gilles Lipovetsky - Sim, existe sempre um paradoxo porque vivemos em um mundo contraditório e complexo. Por isso eu acredito que a Filosofia esteja aí não para dar lições, porque a sociedade é individualista, mas inteligência para a compreensão do mundo e esclarecer de que forma vivemos. Não temos mais as grandes religiões, os grandes sistemas políticos que dão o sentido geral da vida, esta é a razão pela qual precisamos da Filosofia.

Não é possível falar em sociedade pós-moderna. Seu princípio organizacional, a tecnociência, o mercado e a democracia são cada vez mais constituições do nosso mundo
FILOSOFIA - O que é a nova sociedade de consumo e o papel da felicidade na sua dinâmica?

Gilles Lipovetsky - É muito complicado, existem muitas coisas envolvidas. Escrevi um livro para descrevê-la chamando de "hiperconsumista", isto é, que consome de uma maneira "hiperindividualizada". Ela é baseada nos indivíduos e não mais na família, por exemplo, como no caso da telefonia. Cada membro da família tem um telefone atualmente, até mesmo as crianças, e isso pode ser estendido aos computadores e máquinas fotográficas, etc. Portanto, cada vez mais por meio do "hiperconsumismo" cada indivíduo pode construir sua vida de uma maneira mais autônoma e livre, porque se é menos tributário do ponto de vista coletivo.

FILOSOFIA - Isso ocorre em todas as classes sociais?

Gilles Lipovetsky - O "hiperconsumo" é igualmente responsável pelo desaparecimento da cultura de classes. Nas favelas, por exemplo, mesmo os pobres conhecem as marcas de luxo, acompanham a moda, sabem de marcas conhecidas e querem viajar em férias por causa da publicidade e da televisão. As classes sociais ainda existem, há cada vez mais os mais ricos e os mais pobres e grandes injustiças, porém, ao mesmo tempo, todos têm o mesmo ponto de referência. E aqui surgem alguns problemas, porque os pobres desejam ter um carro, viajar, consumir marcas famosas e se frustram porque nem sempre têm dinheiro. Cria-se, dessa maneira, uma sociedade da frustração.

FILOSOFIA - A crise econômica do final de 2008 mudou algo desse panorama?

Gilles Lipovetsky - Acredito que não. Existe a crise e esta alterou o nível de consumo, o mercado perdeu sua legitimidade. Parece que surge uma economia mais sóbria, os consumidores se tornam mais sábios e racionais, ou seja, consomem menos. Acredito que essa prudência seja algo conjuntural devido à crise. Mais do que nunca, os consumidores de hoje querem novidades, que são como estimulantes da existência.

FILOSOFIA - Qual é a grande decepção das pessoas atualmente?

Gilles Lipovetsky - Há uma decepção política permanente. Veja, após a realização de eleições, as pessoas ficam decepcionadas muito rapidamente, insatisfeitas com os personagens políticos, pensam que a Política é impotente. Há também muita decepção com a vida privada, observe a desestruturação das famílias, os divórcios, ou seja, é difícil viver em família. Há também insatisfação com a vida cultural. No caso da televisão, o capitalismo cultural produz muitos produtos, programas, filmes e música, e o gosto das pessoas é individualizado. Não acontece mais como na sociedade tradicional, quando as pessoas consumiam as mesmas coisas. Os gostos hoje são bem diferentes.

FILOSOFIA - Porém, essa decepção generalizada não seria ela mesma o motor para a mudança?

Gilles Lipovetsky - Sim, porque as empresas, os criadores, também prestam atenção nas mudanças de gostos. Provavelmente a decepção seja útil ao sistema capitalista.

FILOSOFIA - E, muito perigoso, é o fenômeno da decepção com a democracia, não?

Gilles Lipovetsky - Há uma decepção democrática por um lado, mas ao mesmo tempo não se enxerga outra coisa senão a democracia. E essa insatisfação está ligada de alguma maneira ao fenômeno da mundialização, principalmente na Europa. Na China não há decepção com a mundialização, por outro lado, para eles, ela é uma oportunidade, e o mesmo serve para o Brasil.

O "hiperconsumo" é responsável pelo fim da cultura de classes. Mesmo os pobres conhecem as marcas de luxo e querem viajar em férias por causa da publicidade e da televisão

FILOSOFIA - O Brasil e os países latino-americanos podem apontar ao mundo uma nova alternativa de modo de viver e de fazer? Uma nova visão de mundo?

Gilles Lipovetsky - De modo de viver e fazer, não tenho certeza. Culturalmente, provavelmente, veja o sucesso da música brasileira e de filmes argentinos. Agora, visão de mundo, a América Latina é liberal atualmente. Mesmo o presidente Lula, que veio da extrema esquerda, não fez a revolução. Não estou certo de que haja uma visão de mundo latino-americana diametralmente diferente da realidade. Todos os países da região, menos a Venezuela de Hugo Chávez, vivem sob o liberalismo. Vive-se sob o domínio da democracia e do capitalismo neoliberal. O problema é que naqueles países há também corrupção, problemas com o narcotráfico e violência.

FILOSOFIA - A construção do feminino é ainda um monopólio masculino?

Gilles Lipovetsky - Isso é uma coisa que tem mudado bastante. As mulheres não têm mais a obrigação de casar-se, ter filhos ou cuidar da casa. Elas podem fazer parte da Política ou criar uma empresa, não são mais os homens que decidem o que elas devem ou podem fazer. Aliás, são elas que pedem mais o divórcio. Não diria que foi uma revolução completa, existe muita coisa que se mantém, mas para as questões essenciais da vida em relação à família, trabalho, Política ou cultura há um espaço enorme de liberdade.

FILOSOFIA - A moda atualmente é uma forma de liberação, inovação, ou tornou-se, desculpe pelo trocadilho, uma camisa de força?

Gilles Lipovetsky - A moda, falo da vestimenta, para ser preciso, é muito menos importante hoje do que antigamente. Por meio das roupas não é possível saber se uma pessoa é pobre ou rica. O corpo sim é mais importante, leve em conta a cirurgia plástica e academias. Antes, a moda possibilitava para as pessoas expressarem sua classe social. Hoje, por outro lado, é mais importante parecer mais jovem do que mais rico. Para muitas mulheres é mais importante fazer regime do que comprar um vestido. A moda não tem mais a centralidade social de outrora.

FILOSOFIA - Após quase três décadas de hipermodernidade, você já chegou a fazer uma análise retrospectiva sobre ela? Quero dizer, ganhamos ou perdemos? Ela trouxe mais malefícios ou benefícios?

Gilles Lipovetsky - Podemos analisar essa questão de dois pontos de vista diferentes. Com a hipermodernidade e a globalização perdemos bastante, porque surgiram novos poderes que interferem nas nossas vidas, em particular mercados de trabalho muito competitivos; as pessoas perdem mais facilmente seus empregos. Há muita ansiedade e estresse no mundo do trabalho. Dessa maneira, a hipermodernidade aumenta muito a ansiedade dos indivíduos, tanto na esfera econômica quanto, principalmente, na vida privada. A Europa está com dificuldade de crescer, mas países como a China e até o Brasil estão se saindo bem. Por isso, é preciso enxergar a questão na sua totalidade. De outra maneira, no aspecto da vida privada, a hipermodernidade foi útil em dois aspectos: as pessoas são mais livres, pode-se ou não se casar, os homossexuais estão aí, e isso é positivo; ao mesmo tempo, a vida individual ficou muito difícil, porque há muita decepção, a comunicação entre as pessoas tornou-se difícil, há muito sentimento de solidão. Ao mesmo tempo, as pessoas viajam e acessam a internet, comunicando-se com muitas pessoas. A hipermodernidade é positiva e negativa, depende do grupo social ao qual se pertence. Para as categorias sociais pouco flexíveis, a mundialização é muito difícil. Na hipermodernidade, as pessoas devem ser mais móveis, ter a capacidade de se adaptar; para quem não consegue fazer isso, a hipermodernidade torna-se difícil. Mas para as pessoas que são flexíveis e têm a capacidade de mudar de atividade, é uma oportunidade.

Na hipermodernidade, as pessoas têm que ter capacidade de adaptação; para quem não consegue, torna-se difícil. Mas para os que são flexíveis, é uma oportunidade
FILOSOFIA - Apesar de citar vários filósofos e pensadores nos seus livros, há algum de sua preferência?

Gilles Lipovetsky - Não. Eu nem sempre fui compreendido na França por ser muito eclético. Não me identifico com uma Filosofia em particular. Eu gosto de todos os grandes pensadores, todos eles me cativam, mas meu trabalho não é de comentar uma disciplina ou escola filosófica. Li bastante Marx, Freud, Nietzsche, Tocqueville, são pensadores muito importantes, mas diferentes entre si. Em cada um me interessa algo e aproveito no meu trabalho.

domingo, 1 de agosto de 2010

"O mundo moderno é o mundo sem política: Hannah Arendt"

"O mundo moderno é o mundo sem política: Hannah Arendt" (foto) é o tema da IHU On-Line nº 206. Contribuíram para essa edição Julia Kristeva, Miroslav Milovic,Françoise Collin, Sylvie Courtine-Denamy, Lisa Disch e Fina Birulés.
Fonte: UNISINOS


Entrevista com Miroslav Milovic: “Arendt. O otimismo pensando a dignidade da política”
Milovic leciona no Deptº de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Belgrado, Iugoslávia, é doutor em Filosofia pela Universidade de Frankfurt. Na Universidade de Paris IV, Sorbonne, França, cursou outro doutorado em Filosofia, com a tese Razão teórica e razão prática e suas relações com a comunidade ética e política. É pós-doutor pela Universidade de Ioannina, Grécia.

IHU On-Line - É possível desconstruir e refundar a política, sobretudo a democracia, com base no pensamento de Hannah Arendt? Como e por quê?

Miroslav Milovic - Hannah Arendt acredita que a separação platônica entre o ser e a aparência marca um passo histórico não só para a vida dos gregos, mas para todo o caminho posterior da civilização. A desvalorização da aparência e a afirmação do ser são os aspectos da reviravolta na vida dos gregos e do Ocidente europeu. Com isso, tem início uma específica tirania da razão e dos padrões na nossa vida. Isso é o que Nietzsche elabora como o começo do niilismo na Europa. A estrutura já determinada, estática, entre o ser e a aparência, tem conseqüências catastróficas para o próprio pensamento. Ele se torna mera subsunção das aparências às formas superiores do ser. Nesse mundo tão ordenado, quase não temos que pensar mais. O pensamento não muda a estrutura dominante do ser. Essa inabilidade do pensamento termina, no último momento, nas catástrofes políticas do nosso século. Tantos crimes, mas quase sem culpados. O indivíduo que não pensa e se torna cúmplice dos crimes: essa é a banalidade do mal diagnosticada por Hannah Arendt como a conseqüência dessa tradição filosófica que quase mumificou a estrutura do ser e nos marginalizou. Por isso, Arendt vai iniciar o projeto sobre a política no contexto da diferença ontológica de Heidegger. Política faz a diferença, política cria a ontologia, a possibilidade do Novo. Arendt ainda tem o otimismo pensando a dignidade da política.

IHU On-Line - Em que medida essa descontrução metafísica, que inclui a política, conforme sugere Chantal Mouffe, oferece a possibilidade de se pensar uma democracia radical? Qual é a conexão entre o pensamento de Arendt com o de Mouffe?

Miroslav Milovic - Afirmar a política e afirmá-la para além da metafísica são os pontos que unem Hannah Arendt e Chantal Mouffe . No entanto, a inspiração da Chantal Mouffe é diferente, posto que esta não vem da filosofia heideggeriana, mas primeiro, da experiência psicanalítica, em que o sujeito é sempre falta, sempre uma condição conflitiva e segundo, da idéia derridiana da diferença. A diagnose da Modernidade, entre as duas, é semelhante também. Mouffe fala sobre a perspectiva econômica do liberalismo moderno em que a política desaparece. A despolitização é a diagnose que ela, com Arendt, faz sobre a Modernidade. A condição humana na Modernidade, para Arendt e para Mouffe, é mais individual e econômica do que política e coletiva. Por isso, a Modernidade chega só até a uma democracia representativa e não até a uma democracia participativa. O mundo liberal não é necessariamente ligado à democracia. Eu acho que as diferenças começam quando tratam o conceito do pluralismo na política. No livro sobre o paradoxo democrático, Mouffe diz que o pluralismo em Arendt fica sem antagonismo, ou que o agonismo político fica sem antagonismo. Arendt procura as soluções e não uma abertura para o caráter aberto e conflitivo da política que Chantal Mouffe quer defender.

IHU On-Line - O que podemos entender exatamente por democracia radical? E por que ela seria uma impossibilidade, conforme o senhor cita em sua comunicação da Anpof, A desconstrução da política - Hannah Arendt e Chantal Mouffe, apresentada em 25-10-2006, em Salvador, Bahia?

Miroslav Milovic - Chantal Mouffe quer elaborar uma concepção antifundamentalista da política. A inspiração é, como mencionei, por um lado derridiana, pensando o conceito da diferença, e por outro, psicanalítica, pensando o caráter conflitivo da natureza humana. Mouffe inclusive fala sobre os perigos de uma teoria que procura as soluções consensuais e assim marginaliza os verdadeiros conflitos. É provável que a desconstrução das políticas da identidade crie a possibilidade da democracia. A filosofia e a cultura quase sempre instauraram a ausência no ser humano, que deveria ser superada na perspectiva do tempo linear; e esse tempo é o tempo do cristianismo, do capitalismo, do hegelianismo. Desconstruindo a metafísica da presença, Derrida articula o vazio que nunca deve ser preenchido. Preencher o vazio significaria o estabelecimento da nova identidade. Criticar a Identidade, afirmando a diferença significa que o lugar da política e do direito tem que ficar vazio, para não criar as novas formas da ideologia. Ou, com as palavras de Claude Lefort , “a soberania popular junta-se à imagem de um lugar vazio, impossível de ser ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pública não poderiam pretender se apropriar dela” (Lefort, C., A invenção democrática. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 76). Neste vazio político, Chantal Mouffe entende o sentido do paradoxo democrático. A democracia cria o paradoxo, porque a realização dela seria já a sua desintegração.

IHU On-Line - No campo da ética, em específico, como o pensamento arendtiano possibilita uma revitalização da democracia?

Miroslav Milovic - Para Heidegger, a pergunta sobre os outros é apenas uma promessa - como dirá Habermas - que ele nunca vai cumprir. A filosofia heideggeriana não é a filosofia dos Outros. Um específico egoísmo, talvez o egoísmo europeu, domina sua filosofia. Assim a filosofia de Heidegger se transforma numa específica geopolítica. Husserl também, falando sobre a crise atual da humanidade, aponta a Europa como a única alternativa. Mas o que dizer sobre a tradição européia e essa impossibilidade filosófica de incluir a questão sobre o outro? O que dizer sobre esse específico autismo europeu? O conceito da Europa, por exemplo, iniciou-se e fortaleceu-se - como algumas interpretações históricas estão sugerindo - com as Cruzadas, dentro dessa identidade militar e não dentro da pergunta sobre os outros e sobre a diferença. Por causa disso, pode ser que o atual discurso sobre a grandeza européia seja somente a tentativa de esconder a sua mediocridade. No projeto arendtiano, onde não existe uma identidade originária da política, nós não somos os seres políticos por natureza. A política pode ou não acontecer entre nós. Contrária às dificuldades husserlianas e heideggerianas sobre os outros, a ação politica em Arendt é sempre uma interação. Os outros são pressupostos e não só conseqüências de uma reflexão solitária. Já em livro sobre Santo Agostinho , Arendt libera-se da ontologia heideggeriana ligada à morte e procura uma afirmação dos outros, dos próximos. Claro, Arendt sabe que Santo Agostinho não liga a liberdade à politica. A liberdade para ele não é tanto um projeto político. Assim a Modernidade herda essa dimensão não-politica da liberdade advinda do cristianismo.

IHU On-Line - A destituição do humano é uma das formas da banalidade do mal? Que exemplos dessa realidade poderiam ser dados sobre os tempos em que vivemos?

Miroslav Milovic - O mundo moderno, desencantado, não fala mais a linguagem da filosofia, como pensavam os gregos, tampouco fala a linguagem divina, como pensavam os religiosos, mas fala a linguagem da ciência e da matemática. Pensando assim, Descartes reifica o mundo no sentido epistemológico, o que traz conseqüências dramáticas. Husserl critica com toda a força essa reificação na qual a vida perdeu o papel constitutivo. Hoje a clonagem científica é só mais um exemplo de situação na qual a reprodução da vida é ligada à ciência e não mais à própria vida. A vida, ou melhor, o concreto, o particular, estão com a Modernidade, entrando num caminho sem saída, e no último momento serão superados no pensamento de Hegel . O mundo moderno não é o mundo para os indivíduos.

IHU On-Line - Arendt sempre demonstrou enorme desconfiança com os sistemas de pensamento, que para ela se sustentavam em uma simplificação inaceitável da realidade. O espaço político no século XXI também precisa ser pensado com relação a essa multiplicidade do Grund, como o pensamento pós-moderno sugere?

Miroslav Milovic - É compreensível, por exemplo, a desconfiança que Derrida tem sobre Heidegger. A profunda filosofia heideggeriana não fez dele um democrata. Assim, parece que o projeto da confrontação com a tradição e a Modernidade, o esboço da destruição da metafísica fica ainda aberto. A subjetividade e outros lugares privilegiados do pensamento tradicional têm de ser desconstruídos. A metafísica que pensa a identidade - ou a metafísica da presença - tem que ser superada pelo pensamento da diferença. A hermenêutica de Heidegger ainda afirma os lugares privilegiados para pensar a autenticidade do ser. Assim, ela ainda não é a diferença verdadeira, a diferença que produz a diferença. A diferença de Heidegger parece mais uma diferença reificada, determinando - poderíamos dizer assim - os lugares para a aparição do autêntico.

IHU On-Line - Que aspectos do pensamento político de Arendt oferecem inovações na interpretação dos grandes clássicos da filosofia, como Marx, Hegel e Heidegger?

Miroslav Milovic - A Modernidade vem, assim parece, atrás do pensamento grego. A Modernidade afirma a vida na política, a vida biológica, quer dizer, as condições da sobrevivência, do labor e do trabalho. Sobreviver – esse foi o projeto moderno anunciado em Hobbes . Para os gregos, podemos nos lembrar, o projeto político não era sobreviver, mas viver bem, e, quem sabe, aproximar-nos do mundo eterno, do próprio divino. A Modernidade, aproximando o privado e a natureza à política, anuncia uma especifica despolitização. O mundo moderno é o mundo sem a política, o mundo da economia e das condições da sobrevivência. Nós somos testemunhas dessa herança. Arendt fala contra Marx . Hoje, para sobreviver, agora no contexto do terrorismo, temos que criar as novas formas da autoridade política. Sobreviver ainda é um projeto político, ou melhor dizendo, em Arendt, é um projeto da negação da política. Estamos muito distantes do projeto grego que tentou unir a política com a liberdade e não com a natureza. Hegel liga a política com a liberdade, mas dentro de um projeto metafísico. Por isso, Arendt quer seguir o projeto heideggeriano da destruição da metafísica, articulando o caminho político dessa destruição. Incluir a interação neste projeto da diferença é a contribuição importante da Hannah Arendt.


Entrevista com Françoise Collin: “A banalidade do mal é o mal da covardia”
Collin é doutora em Filosofia, lecionou em Bruxelas, nas Faculdades St. Louis e no Instituto Superior de formação Social, depois em Paris, na Universidade Americana (CPEC) e no Collège International de Philosophie. Em 1972, fundou a primeira revista feminista de língua francesa: Les Cahiers du Grif.

IHU On-Line - Quais os aspectos do pensamento arendtiano que podem contribuir para a revitalização do conceito de comunidade?

Françoise Collin - A noção de “mundo comum” (antes que de comunidade) é essencial para Hannah Arendt, mas o mundo comum não é, ou não é somente um fato, é um ato, requerendo a iniciativa de cada um(a). Ele é compreendido não somente como o comum dos iguais, mas como o comum dos diferentes. O que permite a comunidade dos diferentes é “o diálogo plural”, sobre o qual ela insiste muito: a pluralidade não sendo a multiplicidade, mas a diversidade daqueles que se manifestam. A interpelação mútua de uns pelos outros é o que cimenta o comum.

IHU On-Line - Em que aspectos podemos dizer que suas idéias políticas apresentam influências do mundo clássico grego? A partir disso, como é possível conciliá-las com as filosofias de Kant e de Santo Agostinho e fundá-los num agir moral?

Françoise Collin - Ela se refere aos filósofos gregos, Platão e Aristóteles , sem esquecer os pré-socráticos. Mas ela se refere também ao modelo democrático da cidade grega, para mostrar ao mesmo tempo sua importância e seus limites, porque a polis grega instaura um mundo comum público, uma ágora, onde cada um pode manifestar sua opinião e confrontá-la com a dos outros. Mas há limites, pois o acesso à ágora é reservado, de uma parte, somente aos homens (sendo as mulheres confinadas na casa com os escravos), e, de outra parte, somente aos gregos de nascimento. Trata-se de uma pluralidade, mas de uma pluralidade dos mesmos, uma pluralidade que procede previamente de exclusões. É esse todo o problema que Arendt expõe – e, sem dúvida, com base em sua origem judaica: como ser cidadão sem precisar dissimular ou renegar sua origem “nacional”, como, apesar dessa origem, ser um cidadão por inteiro.

IHU On-Line - Quais as influências de Arendt sobre o feminismo de nossa época?

Françoise Collin - Hannah Arendt não se engajou nem no feminismo alemão, que se expandia na Alemanha antes da Segunda Guerra Mundial (onde se manifesta, por exemplo, (Marianne Weber ), embora ela tenha publicado um artigo sobre o livro de uma feminista (artigo retomado em francês nos Cahiers du Grif: Hannah Arendt, 1985), nem no feminismo americano dos anos 1960. No entanto, em diversos pontos de sua obra, ela realça o problema que representa o fato de ser uma mulher num mundo de homens, e pode-se pensar que sua insistência sobre a importância do papel das diferenças na pluralidade tem a ver com sua experiência de mulher e com sua experiência de judia. Acontece, além disso, que seu primeiro livro: Rahel Varhaegen, escrito pouco antes de sua partida da Alemanha, embora ele seja publicado bem mais tarde, quando ela vivia nos Estados Unidos, analisa o destino de uma mulher judaica no Século das Luzes e a dupla marginalização com a qual ela se defronta.

IHU On-Line – À luz do pensamento de Arendt, como podemos compreender os totalitarismos que existem no século XXI?

Françoise Collin - O totalitarismo representa uma decorrência bem precisa da vida política do século XX, a saber, o nazismo conduzindo à exterminação de milhões de pessoas, não em razão de sua oposição ao regime, mas em razão de sua raça, porque elas são consideradas como supérfluas. Trata-se de um fenômeno único na história, o que não significa que não haja outras formas políticas devastadoras no mundo, mas que é preciso analisar cada uma em sua especificidade. É verdade que lhe ocorre juntar o estalinismo ao nazismo nessa análise, na medida em que, para um e o outro regime, os indivíduos em particular são despojados de toda autodeterminação, em favor de um poder e de uma ideologia que funcionam à sua revelia e por cima de suas cabeças.

IHU On-Line - E como o pensamento de Arendt ajudou na consolidação dos direitos humanos?

Françoise Collin - Pelo acento posto na singularidade: cada um é alguém – diz ela, independentemente de todos os seus outros componentes. Mas ela insiste no fato de que os direitos humanos (os direitos do homem) são um princípio nobre, mas vazio, se eles não são ampliados com os direitos do cidadão, isto é, daquele que pode “se manifestar pela palavra e pela ação” na constituição de um mundo comum. Há um “direito de ter direitos”, diz ela. Sabendo que no mundo por vir, os homens serão mais confrontados com a migração, ocorre-lhe mesmo sonhar com uma “cidadania ´trans-estática´” (como ela a pensou, aliás, para os judeus dispersos em numerosas nações).

IHU On-Line - O que seria a destituição do ser humano à qual se refere Arendt? Como ela se relaciona com o totalitarismo?

Françoise Collin - A exterminação, certamente, que é a destruição física dos “inoportunos” ou dos “supérfluos”. Também a exclusão de camadas sociais, de raças ou de nações, do diálogo constitutivo do mundo comum, do diálogo democrático, nacional ou internacional. A parte da vida e a parte dos direitos, e, em primeiro lugar, do direito à palavra.

IHU On-Line - A banalidade do mal continua presente em nossa sociedade? Como? A burocracia moderna prossegue sendo uma das premissas dessa banalidade do mal?

Françoise Collin - A banalidade do mal, fórmula que foi mal compreendida na época por seus leitores, quando ela visava à exterminação dos judeus, não significa que o mal cometido seja banal, mas que, infelizmente, o mal não é cometido por grandes criminosos, havendo exceção, mas por aqueles que se podia crer serem pessoas honestas, honestos pais de família, como ela o diz, e potencialmente por cada um de nós, se ele/ela não exerce constantemente sua vigilância e sua faculdade de julgar. Assim, sob o nazismo, milhares de “pessoas bravas” deixaram fazer sem protestar, deixaram massacrar seus vizinhos, seus próximos, como se eles não percebessem nada. O crime não está somente no fato de abster-se de julgar e de decidir, de tomar partido. A banalidade do mal é o mal da covardia, que nos leva a afastar-nos do assassinato dos próprios vizinhos como se não nos dissesse respeito. E mais, que se “deixe fazer”, fechando-se sobre o único cuidado de si.

IHU On-Line - De que forma podemos compreender a afirmação de Arendt de que o território do qual emergiu o monstro totalitário é o mesmo de onde surgiu a democracia liberal?

Françoise Collin - No que diz respeito à Europa, em todo o caso, é lá, com efeito, que foi fundada a democracia, isto é, o poder do povo pelo povo. Como esta mesma Europa, e esta Alemanha que foi o berço do pensamento das Luzes, puderam dar lugar ao totalitarismo? Não há resposta lógica (mesmo se numerosas análises podem esclarecer o surgimento do nazismo e de Hitler numa Alemanha humilhada por sua derrota na Primeira Guerra Mundial e por uma miséria que atingia as classes médias). Em todo o caso, vemos que a grandeza do pensamento jamais preserva da decadência política.

IHU On-Line - Como percebe a influência de Heidegger na obra de Arendt? Em que aspectos ela rompe e supera seu pensamento?

Françoise Collin - O ensinamento de Heidegger , de quem ela era aluna, foi determinante para Arendt em sua juventude, pelo menos porque ele lhe passou a convicção da importância de “pensar”, e de pensar por si mesma. Ela jamais o negou, já que ela publicou suas obras nos Estados Unidos após a guerra. Ela não é a única a ter pensado fundamentada em Heidegger, sem segui-lo, no entanto, em sua deriva. Não se pode esquecer que outros pensadores, e mesmo outros pensadores judeus, tão importantes como Emmanuel Levinas (de quem se celebra o centenário de nascimento), também foram entusiastas do pensamento de Heidegger, de quem também seguiram os seminários antes da guerra. Pode-se hoje, anos mais tarde, detectar tudo o que, no pensamento do filósofo, tinha ressonâncias danosas, mas, no momento de sua recepção, em todo o caso, sua mensagem não teve tal ressonância. Este é todo o mistério da polissemia de uma obra... No entanto, não se pode, em algumas linhas, analisar o que em Arendt é herança de Heidegger. Digamos, ao menos, que o que não o é, é a idéia da necessidade da iniciativa singular “se manifestar pela palavra e pela ação” como “alguém”, em relação não com o Ser, mas com a pluralidade dos outros. O “hören” [escutar] que, em Heidegger, é a escuta do Ser, de cada ‘estar-aí’ solitário, é simultaneamente para Arendt escuta dos outros, os “alguéns” na constituição de um mundo.

Para ler as outras entrevistas e o artigo "O quarto das ferramentas", sobre escritos de Hannah Arendt entre 1950 e 1973, clicar aqui.

domingo, 4 de julho de 2010

Injustiças globais: o mundo contemporâneo entre riqueza e miséria



A reportagem de Giuliano Battiston, publicada no jornal Il Manifesto, 20-06-2010,  com tradução de Alessandra Gusatto.
Fonte: UNISINOS






Como se pode conciliar o nosso universalismo moral, que implica a paridade de estado moral de todos os seres humanos, com a tolerância e a docilidade pela pobreza global e o crescimento das desigualdades? E por que acabamos por adotar uma dupla moral, “impondo à ordem econômica global vínculos morais mais fracos respeito a qualquer ordem econômica nacional”? É em torno destas interrogações sobre a problemática assimetria de juízos que aplicamos no âmbito nacional e global, que o filósofo alemão Thomas Pogge (foto), aluno crítico de John Ralws, articulou Pobreza mundial e direitos humanos. Responsabilidade e reformas internacionais, recém lançado pela Laterza (ed. Luigi Caranti, tradução de Daniele Botti, ca. 55 Euros, pg. 400).

Um texto, já amplamente discutido a nível internacional, movido por duas convicções fundamentais: de um lado que cada esquema institucional é injusto quando pressupostamente produz violações de direitos humanos que poderiam ser evitadas, do outro lado, que a atual ordem econômica mundial, estruturada de acordo com os interesses dos países ricos a alto consumo é extremamente injusta. Para modificar e “para aproximar a nossa ordem internacional aos nossos valores morais”, diz Thomas Pogge (que encontramos em Roma, na sede da Laterza), bastariam reformas constitucionais internacionais, modestas e realizáveis. Como na vez da criação de uma nova patente para os medicamentos essenciais, que autorizam ao titular da patente a ser financiado por fundos púplicos proporcionais aos efeitos da invenção sobre o Global Burden Disease (www.healthimpactfund.org), o peso global das doenças. Pois “aquilo que parece um projeto essêntrico e utópico será um modelo daquilo que a justiça exige”.

"A pobreza grave – escreve no seu livro – não é nenhuma novidade. Novidade é o tamanho das desigualdades no mundo“, porque “enquanto a pobreza e a desnutrição são mais ou menos constantes, as desigualdades, e consequentemente evitar a pobreza piorou...”.


Eis a entrevista.

É necessário explicar por que acha que a ordem mundial atual e as instituições que a regem estejam causando o crescimento das desigualdades?

Um dos principais fatores de crescimento das desigualdades está nas tendências da globalização que está fazendo com que os instrumentos e lugares de decisão estejam passando do nível nacional ao nível supranacional, onde o processo de decisão é impermeável aos interesses dos cidadãos normais, e pode ser influenciado somente por uma quantidade restrita de atores e agências, entre as quais os governos fortes e as grandes empresas. Trata-se de uma lógica que se autoalimenta, porque os ricos e os potentes se beneficiam das regras que de certo modo foram escritas por eles mesmos, se tornando sempre mais, enquanto que os pobres, ignorados e excluídos das discussões sobre as regras globais, vão sendo sempre mais marginalizados, acabando por não serem beneficiados pelo crescimento econômico. As estatísticas sobre a recente evolução das desigualdades nos dizem que 5% da população mundial tem a sua disposição uma porção de riqueza cada vez maior, cerca da metade do rendimento mundial, enquanto que a metade mais pobre detem menos do que 3%. Uma enorme discrepância que aumenta pois a minoria mais potente tem o controle oligárquico sobre as regras globais, mas também porque os dados efetivos não são muito conhecidos: a maior parte das pessoas tem medo de saber como estão mesmo as coisas, pois concluiriam que deve-se agir. Preferem, do contrário, evitar a controversia entre os próprios interesses materiais e os próprios deveres morais.

O senhor contesta não somente a idéia de que a ordem mundial atual não esteja causando a pobreza, mas também promove a tese confortante segundo a qual, nós cidadãos e governo das sociedades ricas, não somos responsáveis. Porque pensa que seja importante distinguir entre o dever positivo (ajudar aqueles que estão mal ou pior do que nós) e o dever negativo (não danificar indevidamente os outros com a nossa conduta)?

Se nos convencermos que a pobreza é uma questão de dever positivo, o dever de ajudar aqueles que necessitam, facilmente nos acontentaremos com aquilo que fizemos, até porque se torna complicado estabelecer aquilo que devemos e podemos fazer. Muito mais difícil é do contrário satisfazer o dever negativo, que brota do conhecimento de sermos nós a danificar os pobres, pois ganhamos com as regras globais injustas para enriquecermos as suas custas. Não estamos simplesmente ajudando pouco: mantendo as instituições globais injustas, desenhadas para nosso benefício, estamos mantendo um enorme déficit de direitos humanos nos países pobres. Temos portanto a responsabilidade, e somos parte do problema. Mas exatamente por isso poderemos nos tornar parte da solução. Os cidadãos dos países ricos deveriam sentir a responsabilidade por serem membros de países razoavelmente potentes. A Itália, por exemplo, tem um papel importante na União Europeia, que por sua vez é um dos atores econômicos mundiais mais influentes, capaz de moldar as regras globais. Os cidadãos italianos são responsáveis pela conduta do seu governo, e se deixam o governo agir de certa forma, são responsáveis. Depois de tudo, são eles que controlam o governo e tem a opção de escolher outro.

Entre os objetivos de seu trabalho há a formulação de um critério fundamental de justiça de base, que seja moralmente plausível e internacionalmente aceitável, e que funções como “núcleo universal de todos os critérios de justiça”, com o qual avaliar como as instituições tratam as pessoas. Por que defende que tal critério poderia ser “melhor formulado na linguagem dos direitos humanos”?

Gostemos ou não, nas discussões internacionais relacionadas a paz e a justiça nenhum outro código ou linguagem é assim tão reconhecido como válido e legítimo. Por si só, porém, tal linguagem não soluciona a dúvida relativa a qual sejam os direitos humanos efetivos e, sobretudo, a que deveres correspondem. Muitos falam de direitos, sem responsabilidade e deveres, são totalmente inúteis. Peguemos o direito a comida: na África metade da população não usufrui deste direito. Se não prestarmos atenção a responsabilidade, não podemos nos limitar a dizer que se trata de uma coisa errada. Por isso, estou a procura de instrumentos para apontar responsabilidades exatas que possam ser construidas sobre a base de um amplo consenso que existe sobre os direitos humanos: todas as regras, a nível global e nacional, deveriam ser definidas de modo tal que cada déficit ou desprezo dos direitos humanos, que viesse a ocorrer devido a definição de tais regras, deva ser evitado o mais possível. Em outros termos, se existem leis onde se possa prever que não satisfarão alguns direitos humanos, e se existem formulações alternativas a estas, então devemos adotar estas últimas. Neste caso, também manter leis, das quais alternativas sabemos poder reduzir o nível de comprimento dos direitos humanos constitui uma violação dos direitos humanos.

No pensamento e na realidade política contemporânea, escreve, é central “a idéia do Estado territorial autônomo, como modalidade de organização política dominante”. De acordo com este modelo caracterizado por uma soberania concentrada verticalmente em um só plano, o senhor propoe uma gradual reforma das instituições globais que leve a uma dispersão vertical da soberania. Por que devemos desejar este processo de unificação e decentralização, que reforce a união política além da autoridade estatal?

Uma primeira razão está relacionada a segurança: em um mundo no qual os Estados estão em competição, e temem que outros estados se tornem mais fortes militarmente e economicamente, o sistema é altamente instável, e implica a tendência de debilitar os outros, e em alguns casos de atacá-los por primeiro. Ainda, vivemos em um sistema no qual existem muitas externalidades negativas relacionadas a primeira: a tecnologia progride, e com ela crescem também os danos ambientais, que não mais repercutem somente nas suas fronteiras nacionais. Há necessidade, portanto, de organizar as nossas sociedades levando em consideração estas externalidades negativas, transformando os processos de decisão mais inclusivos. Uma necessidade evidente no caso da poluição, mas também importante em muitos outros setores, onde a colaboração e a criação de bens comuns assegurariam uma vida melhor e mais segura. A terceira razão é que cada unidade política corre o risco de ser “raptada” por qualquer elite, seja essa um grupo militar ou um círculo econômico.

A injustiça que viria a acontecer poderia ser facilmente evitada onde existem esquemas hierárquicos em mais níveis, constituido por unidades completamente organizadas que resistem as imposições destas elites, e que em linha geral são capazes de se controlarem, de denunciar respectivos abusos, de levá-los públicos. Por outro lado, as tendências de unificação e decentralização já estão ocorrendo, também se muitas vezes ocorram de forma errada, levando por exemplo a instituições de nível global opacas, privas de legitimidade democrática, fechadas e assim por diante. A tendência de dividir o poder no alto já está presente. Mas também há a tendência de dividí-lo na parte inferior. Duas tendências que, hoje, se ligam estreitamente: se os Estados nação se tornam mais fracos, e se quem os controla tem menos poder, é porque boa parte do poder passou para outro lugar, ficando assim ainda mais fácil consentir autonomias locais. No âmbito da União Europeia, por exemplo, não é assim relevante que a Bélgica continue sendo um Estado único ou se divida, enquanto em um sistema no qual o poder esteja concentrado em nível de Estado, a diferença seja enorme. Creio que hoje, a tarefa não seja tanto aquela de acelerar esta “decentralização de segunda ordem”, mas sim fazer com que os novos poderes supranacionais estejam abertos ao juízo público, e que estejam basados em processos democráticos.


Uma trajetória de estudos na linha de Kant e Rawls

Nascido em Hamburgo em 1953, Thomas Pogge se formou em Sociologia na sua cidade natal, para depois se mudar para Harvard, onde fez o seu doutorado com John Rawls. Já professor de Ciências Políticas na Columbia University, hoje ensina Filosofia e Relações Exteriores em Yale, além de ser o diretor do Center for the Study of the Mind na Universidade de Oslo. Autor de livros dedicados a Kant e John Ralws, entre os quais vale relembrar “Kant, Ralws and Global Justice” (tema de seu doutorado), “Realizing Ralws” (Cornell University Press, 1989) e “John Ralws” (C. H. Beck Verlag, 1994), chamou a atenção no debate internacional com a publicação, em 2002, da primeira edição inglesa de “Probeza mundial e direitos humanos. Responsabilidade e reformas internacionais” (lançado na Itália pela editora Laterza nos primeiros meses deste ano), ao qual deu seqüência em 2010 com “Politics as Usual: What Lies behind the Pro-Poor Rhetoric” (Polity Press).

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