sábado, 29 de agosto de 2009

José Fernandes P. Júnior

O sofrimento dos filósofos - Reflexões em torno da constante retórica que encontramos nos preâmbulos da dor humana

por José Fernandes P. Júnior é graduado em filosofia e professor de filosofia na rede pública do DF.
Fonte: Revista Filosofia






Dia desses um amigo meu ao notarme meio cabisbaixo deduziu aquele meu momento da seguinte maneira: "Não sabia que os filósofos sofriam". Degustei suas palavras com o tempero do silêncio. No entanto, aquela sua dedução levou-me a ponderar sobre o sofrimento dos filósofos. E por lógica, só pelo fato de refletir sobre a questão, automaticamente estou a constatar que, realmente, os filósofos sofrem ou sofreram. Daí, devemos dar razão a Publio Terêncio, poeta romano, quando disse que "nada do que é humano me estranho".

Ora, refletir sobre o sofrimento é antes de tudo fazer uma pausa na vida e tentar descobrir porque a felicidade nos abandonou. Foi-se a felicidade, veio o sofrimento. Assim, quando Sêneca, em "Cartas a Lucílio", afirmou que "os homens considerados felizes são, na verdade, os mais infelizes", quis realmente afirmar que podemos disfarçar o sofrimento, mas não negar sua existência.

Em resposta ao meu amigo, poderia ter lhe feito as seguintes perguntas: O que dizer de Sócrates, sofrendo a ansiedade da morte, após ter bebido cicuta? E mesmo do "maldito" Maquiavel quando torturado e exilado de sua terra devido a perseguições políticas? Que dizer de Schopenhauer, ofuscado por Hegel e esquecido de todos seus compatriotas? De Kierkegaard, quando sua amada Regine Olsen o rejeitou e, também, foi ridicularizado na Dinamarca? E até mesmo do estóico Sêneca exilado em Córsega por cerca de dez anos? (creio não ser necessário falar de mártires como Giordano Bruno para demonstrar que até mesmo os filósofos sofrem).

O certo é, conforme Eric Fromm, que "o homem é o único animal cuja existência é um problema", e o seu existir muitas vezes é por sofrimentos, perturbações e desassossegos que o deixa sem sentido - é aí que a vida perde a graça. Quando o sofrimento chega na soleira da vida humana, o ser humano se revela frágil frente ao seu novo estado. Se era alegre, fica triste; se perdeu a pessoa que amava, fica como um barco à deriva; se perdeu a saúde ao ser atacado por uma doença maligna, fica debilitado; enfim, o sofrimento atinge o ser humano por meio de suas multifaces - doença, morte, solidão, rejeição, desprezo... Tudo isso gera no ser humano alguma ponta de sofrer.

Haveria algum antídoto para combater ou curar o sofrimento? A ciência sempre procura soluções para cura de doenças; mesmo àquelas que são incuráveis, busca um paliativo para aliviar os sofrimentos do paciente. O "senso-comum" por sua vez - quando o sofrer é psicológico, empírico-sentimental - não hesita em usar o chavão-clichê: "o tempo é o melhor remédio" ou "o tempo a tudo cura". Será? O tratamento dado pela filosofia é diferente, vejamos como alguns de nossos filósofos enfrentam o problema.

Sócrates, ao sentir que seu julgamento resultaria numa condenação injusta, adverte: "Pois bem, senhores juízes, vós também deveis estar dispostos à esperança em relação à morte, pensando somente isso, que nenhum mal pode atingir o homem reto nem em vida nem depois de morto (...)". Sócrates presume que deveria cumprir uma pena capital injusta, mas encara a situação corajosa e resignadamente, pois sabia que o desespero não aliviaria em nada sua dor. Sofrer além do sofrimento é agravar a situação. O certo é que Sócrates enfrentaria o sofrimento resultante de uma condenação injusta e, consequentemente, a morte como um mártir. Suas últimas e memoráveis palavras, após tomar o veneno, foram: "É chegada a hora de partir: eu para a morte e vós para a vida. Quem de nós encontrará o melhor destino só Deus sabe".

Os estóicos (gr.: Stoa) resumiam o viver neste mundo com uma fórmula simples, mas severamente cruel no seu cumprimento, qual seja, "suporta e renuncia" (sustine et abstine). Assim, qualquer espécie de sofrimento deveria ser tido como algo que o destino nos tivesse preparado e, por isso, debalde seria a preocupação inútil que roubava a paz e perturbava o espírito. Para os Estóicos, como também para Epicureus e Cínicos, o conceito de ataraxia (do gr.: literalmente significa ausência de inquietação, tranquilidade) fazia parte do caminho de sabedoria que estas Escolas buscavam; isso não significa dizer que esses filósofos não sofriam, mas que viam no sofrimento um exercício de libertação e de busca elevada do espírito.

Schopenhauer, por sua vez, dá-nos - como possibilidade transitória de escape do sofrimento - a contemplação do belo artístico. A arte, segundo o autor de o mundo como vontade e representação, traz um alívio para os fardos deste nosso viver, e a música nesse particular tem uma grande importância: "Uma sinfonia de Beethoven descobre- nos uma ordem maravilhosa (...) Depois de ter meditado longamente sobre a essência da música, recomendo o gozo desta arte como a mais deliciosa de todas. Ouvir longas e belas harmonias, é como um banho de espírito purifica de toda a mancha, de tudo que é mau, mesquinho", diz Schopenhauer. (p. 146, Dores do mundo)

Kierkegaard, como alívio e superação do sofrimento recomenda-nos à Fé. Esta é o antídoto para todo o desespero e angústia que perpassam o "eu" humano. Aliás, a fé é na concepção kierkegaardiana o último salto existencial do indivíduo para chegar àquele que pode livrá-lo de todo sofrimento. Talvez tenha sido a fé autêntica em Cristo que fez o filósofo dinamarquês superar os traumas existenciais decisivos de sua vida: o relacionamento frustrado com Regina Olsen e o combate com a igreja de seu tempo.

Bom, meu caro amigo, como se vê, os filósofos também sofrem. Mas também procuram superá-lo. E quando preferem resignadamente aceitar sofrer, como fazem ou fizeram os estóicos, na verdade buscam com isso não sofrer ainda mais - esta é a exceção. A regra, bem definida por Lessing, é: "Por que não podemos aguardar tranquilamente a vida futura, como aguardamos o dia de amanhã (...)" . Assim, pois, o ser humano está sempre fugindo daquilo que frustre seus planos e traga tristeza. Mas, quando menos esperamos, a vida arrebata nossa provisória felicidade e deixa-nos todos cabisbaixos.

Renato Janine Ribeiro

Corruptos ou assassinos. Qual criminoso é pior?

Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP). www.renatojanine.pro.br
Fonte: Revista Filosofia




O que é pior, o crime de corrupção ou o crime contra a vida? Essa pergunta às vezes é interpretada em termos de classes sociais. Corruptos são ricos; assassinos cruéis, pobres. Criminosos de colarinho-branco furtam dinheiro público e assim impedem a construção ou manutenção de hospitais e escolas.

Matam, ou pelo menos geram ignorância. Contudo, seu crime é cometido à distância. Eles, pessoalmente, não matam ninguém, não torturam, não se sujam. Outros criminosos roubam, olham a vítima na cara, espancam-na, às vezes a matam com crueldade. O dano que fazem aos cofres públicos é pequeno. Se medirmos o custo social de seus crimes, provavelmente é menor do que o dos criminosos elegantes e educados de cima.

Há várias maneiras de lidar com essa distinção. Podemos dizer que os primeiros criminosos, os ricos que furtam a todos nós, não representam perigo para nossa segurança física. São pessoas de convívio social possível. A pior pena para eles é forçá-los a devolver o dinheiro furtado. É provável que não lhes sobre nada.

Dificilmente usarão da força bruta contra alguém. Não precisariam ir presos, a não ser, claro, como exemplo e também para persuadi-los a devolver o que subtraíram. Essa é a tese de parte razoável de nossa imprensa: só deve perder a liberdade quem representa risco para a segurança (basicamente, física) dos outros. Mas nem todos concordam com isso. Porque desse modo vai para a cadeia o pé de chinelo, digamos assim, e não o grande criminoso.

Imaginemos a seguinte situação: um país, devido à corrupção, tem um péssimo sistema de Educação e oferece poucas oportunidades aos mais pobres.

Parte destes acaba indo para a criminalidade. Então, quem punir? Irão presos os pobres que assaltaram, estupraram, mataram. Já os ricos que roubaram dinheiro público devolverão o que puderem e terão uma pena alternativa.

Isso está correto, se as pessoas forem presas em função de sua periculosidade - isto é, do potencial de perigo que representam para a sociedade. Mas é injusto, se perguntarmos quem causou essa situação torta. Porque ficarão soltos os maiores responsáveis, os causadores da calamidade, e serão presas pessoas que, não houvesse a corrupção, talvez não fossem para o caminho do crime hediondo. Mais um ponto, aqui.

O sistema penal obedece a uma lógica dupla. Por um lado, pune em função do passado. Não é justo condenar alguém que não tenha cometido um crime. A justiça, neste caso, é retributiva, isto é, retribui o mal que foi feito. Mas a característica que enobrece a justiça moderna é não pensar só no passado, e sim no futuro. Deve-se pagar pelo que se fez, mas deve-se, sobretudo, pensar no que vai acontecer de agora em diante.

Isso quer dizer que alguém só deve ser preso, por exemplo, se assim evitarmos que cometa novos crimes, ou se dissuadirmos outras pessoas de o imitarem. Então, quem merece mais ir preso? O pobre cruel ou o rico corrupto? O diretamente mau ou o indiretamente malvado? Quem fez mal a alguns ou a multidões? Difícil essa opção. É evidente que, conforme eu formule a pergunta, induzirei mais uma resposta ou outra. Se perguntar quem é mais perigoso para encontrar na rua, é o bandido cruel. Se perguntar quem causou maiores males para a sociedade, é o rico corrupto.

Impunidade Esta discussão, no Brasil, tem um quê de abstrata. Mas, nos Estados Unidos, Bernard Madoff foi condenado a 150 anos de prisão. Mesmo que viva ainda muito tempo, não deverá sair nunca da cadeia. Seu crime - furtar uma fortuna de ricos e de fundos de caridade - veio à luz em dezembro de 2008; foi condenado em sete meses.

No Brasil, provavelmente nunca seria preso. O Supremo o soltaria, se um juiz o condenasse. Se um dia fosse julgado em última instância, algum detalhe processual o salvaria.

Mas a discussão, em tese, continua válida. Porém, só à primeira vista a oposição aqui está entre direita e esquerda. Sim, porque a um olhar apressado parece que a cadeia para os violentos (isto é, os pobres) seria uma opção de direita. Os ricos protegeriam os seus, é essa a ideia.

Só que está errada. O erro é que ladrões como Madoff não roubaram pobres - com exceção, talvez, de alguns fundos. Suas principais vítimas foram os ricos. Todos sabemos de ladrões de casaca que deram golpes na praça, prejudicando grandes empresas ou empresários, e soltos ficaram. Portanto, não prendê-los não é proteger os ricos. É, justamente, não protegê-los...

Há uma discussão clássica a respeito. Na Inglaterra do século XVIII, como em vários países europeus, a pena de morte se aplicava a muitos delitos hoje tidos por leves - como o furto, digamos, de uns R$ 20. Um historiador comentou que isso provava o caráter de classe de uma justiça que enforcava os pobres. Foi fácil contra-argumentar que quem rouba ricos pega valores bem mais altos: um furto de R$ 20 é um crime contra pobres. Portanto, a Justiça da época podia até perseguir os pobres, mas não por este argumento - que mostra justamente que ela protegia a propriedade, ainda que pequena, dos pobres.

Mas o debate daqui é difícil de resolver. Procurei expor duas posições. Tentarei uma conclusão provisória. Defender penas altas para quem agride fisicamente outra pessoa é uma reação talvez mais frequente das pessoas. E há uma razão para isso. Quem "mata rindo", para citar o codinome de um bandido particularmente odioso, vai muito longe na desumanização.

Uma pessoa que, quanto mais sua vítima implora, mais a agride, é alguém a quem falta o mínimo de contato social. O corrupto Bernie Madoff talvez tenha, em comparação, uma dificuldade maior de ser tão desumano - de olhar na cara a sua vítima e de gozar com seu sofrimento. Talvez o grande ladrão goze apesar do sofrimento alheio. Talvez o criminoso cruel goze graças ao sofrimento do outro. Não deixa de ser uma diferença.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Roberta De Monticelli

Os valores compartilhados do humanismo ateu


"A tese de que o ateísmo é niilismo moral não só é, creio, falsa, mas é também uma ferida profunda causada a todos os homens de boa vontade que dedicaram a vida inteira à busca do verdadeiro – nas ciências ou nas coisas humanas – e não encontraram nada digno do nome de Deus." A opinião é da filósofa italiana e professora da Universidade Vita-Salute San Raffaele Roberta De Monticelli, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 22-08-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



Pode um humanismo ateu não ser niilista de um ponto de vista ético? O problema, levantado pelo Pontífice e retomado com posições opostas por Adriano Sofri e Vito Mancuso, é crucial: não só na metafísica e na moral, mas na consciência contemporânea e marcadamente na italiana, no momento atual, dividida como está entre a constatação de que não há limites ao arbítrio e à impunidade onde o poder não observa regras, e a esperança de uma renovação moral e civil: que, porém, passará em primeiro lugar na mente e no coração dos indivíduos, ou não ocorrerá nunca mais. Por isso, permito-me expor as razões pelas quais eu acredito que se deva discordar desta vez da tese de Vito Mancuso, o teólogo que é hoje parte viva e grande dessa esperança de renovação.

A questão é crucial porque o fato de se colocá-la equivale a perguntar-se se uma ética laica é ou não possível. Defino os termos. Por ética entendo a consciência daquilo que é devido por alguém a todos, em qualquer circunstância dada. Por ética laica entendo a ética enquanto seu valor exista independentemente da hipótese de que haja um Deus e enquanto seja acessível e praticável independentemente de qualquer crença relativa a Deus. A tese fundamental de uma ética laica afirma portanto que a consciência do meu dever em toda circunstância dada é acessível (com o mesmo cansaço, tormento ou certeza) a qualquer um, crente, diversamente crente, indiferente, não indiferente ou ateu.

Mancuso considera que essa tese é falsa – que a existência indubitável de ateus de altíssima sensibilidade moral (ou vice-versa, de homens de religião que são privados daquela) demonstra apenas que esses supostos ateus tais não são (e erram ao crerem-se como tais) e que aqueles supostos religiosos também não o são. Desta vez, parece-me que deve-se discordar de Mancuso e da quase totalidade dos filósofos continentais, que o seguiriam sem hesitar na crítica do "antropocentrismo" ou humanismo moderno.

A tese de que o ateísmo é, enfim, niilismo moral não só é, creio, falsa, mas é também uma ferida profunda causada a todos os homens de boa vontade que dedicaram a vida inteira à busca do verdadeiro – nas ciências ou nas coisas humanas – e não encontraram nada digno do nome de Deus. Vito, não podes exigir que chamemos de Deus a dimensão "espiritual" da vida, o amor ou a relação ordenada da qual viemos. Nada é mais secreto, gratuito e zeloso do que o nome de Deus nos lábios de um homem, nada é mais sagrado do que a liberdade de rejeitar ao bem da vida esse nome, assim como de pronunciá-lo.

O absoluto respeito intelectual, além de moral, da liberdade de fé se deve a cada um. Essa é, acredito, uma proposição da ética. E digo liberdade de fé incluindo o ateísmo, dado que, para as posições metafísicas últimas (se o mundo natural necessita de um fundamento ulterior a si mesmo ou não) não existe demonstração. E eis o argumento em defesa da tese de que o humanismo ateu não implica necessariamente em um niilismo moral. Remonta a Platão, àquele seu diálogo que liberta a ética da religião. Defender que ateísmo implica em niilismo é defender que, se Deus não existe, tudo é permitido. Mas essa tese é verdadeira só se, no dilema de Eutifron, é verdadeiro um dos lados da alternativa: o bem é bem porque Deus o quer. Só nesse caso, evidentemente, se Deus não existe, "tudo é permitido". Não há diferença entre o bem e o mal. Então, "bem" é o que, de vez em quando, os homens decidem que seja – e quem tem o poder decide pelos outros, e a quem se opõe não sobra nada a não ser apelar a si mesmo. Esse é o voluntarismo, a tese de que não há verdade e falsidade nas questões de valor, mas só as vontades (e o seu conflito). Mas, naturalmente, pode ser verdadeira, ao invés, a tese alternativa do dilema: que, no caso, Deus quer o bem porque é bem. Nesse caso, mesmo que Deus não exista, o bem continua sendo bem, e o mal, mal.

É nas coisas humanas mesmas que há qualidades positivas e negativas. Financiar favores privados com cargos públicos é mal. Toda forma de mafiosidade dos comportamentos é um mal. Toda vez que a rejeitamos, experimentamos o bem e o mal. Certamente, existe uma interpretação do humanismo ateu que implica no niilismo, e é precisamente a voluntarista. Foi aquela, por exemplo, de Sartre – e é hoje a tragédia da cultura também progressista e liberal que não consegue se libertar do relativismo de valor. "Addio alla verità" [Adeus à verdade] é o título do último livro de um influente filósofo pós-moderno [Gianni Vattimo], e parece-me que ele fala sobre si mesmo. Mas devemos, talvez, decretar que não pode existir um ateísmo compatível com a ética?

Isso seria confundir o ethos – que é o estilo de vida e a escala de valores, a vocação e a fé, a identidade pessoal ou moral de alguém – com a ética, que é o dever de cada um para com todos. E qual é o primeiro dever ético senão o de concordar com o ethos do meu semelhante ateu, contanto que se demonstre compatível com a ética, o mesmo respeito que exijo pelo meu? Não é essa uma versão da regra de ouro?

Em conclusão: ou é só uma questão de palavras, e basta chamar de "Deus" uma relação entre pessoas – mas então o pobre ateu moralmente cristalino duvidará se deve se considerar apenas incoerente ou também tolo, visto que não havia se dado conta de que o divino estivesse "todo ali". Ou, como eu acredito, não é exatamente uma questão de palavras, porque o que está em questão é a liberdade e a gratuidade (ou a graça) do ato com o qual o homem de fé doa a sua aceitação e a sua vida àquilo que nem a ciência pede nem a ética comanda.

Está em questão a liberdade com a qual o perplexo suspende essa aceitação, e o ateu a rejeita: a sacrossanta liberdade daquilo que cada um é o devir – além daquilo que deve aos outros. A ética vem antes: porque é condição deste. Dessa liberdade diante das coisas últimas, na qual está definitivamente toda a profundidade e a seriedade da nossa breve vida. Uma sociedade civil e justa nada mais é do que a condição para que esse humano luxo se torne acessível a cada um. Mas como construí-la se se coloca a ética depois da fé, e assim a essa liberdade de cada um, pela qual a ética é feita, se corta um dos caminhos possíveis, sem a qual as outras perdem seu sentido?

Liberdade e economia na Filosofia do Direito de Hegel

Autor: Prof. Dr. Arnaldo Fortes Drummond/UFU
Fonte: Revista Eletrônica Estudos Hegelianos




Esta comunicação diz respeito a um projeto de pesquisa sobre Hegel, em nível pós-doutoral junto ao Professor Dr. Marcelo F. de Aquino do PPGFilosofia da UNISINOS. Esse projeto de pesquisa pretende analisar a concepção hegeliana de sociedade civil[1], voltada propriamente à parte relativa a liberdade de mercado, destacando aí os limites intransponíveis para o exercício da eticidade e, conseqüentemente, de uma combinação entre ética e economia numa sociedade organizada sob o primado do mercado.

O natural desdobramento deste projeto, a ser desenvolvido em etapa posterior ao pós-doutorado, é a relação temática entre liberdade e sociedade civil em Hegel com vistas a contribuir para uma Teoria Social (TS)[2] alternativa cujo papel é o de formular de maneira integrada os temas econômico, político e do direito de uma nova ordem social.

Para esta futura TS, tornar-se-á indispensável assumir uma concepção de liberdade que fundamente a contraposição à global teoria econômica capitalista. Pois, a teoria econômica liberal, como se sabe, sempre se apresenta tendo como princípio a liberdade de mercado ou a lógica livre do mercado. Logo, como há na raiz da teoria econômica capitalista uma concepção falsa de liberdade, sem refutá-la, não se consegue propor algo alternativo.

Ninguém como Hegel fez do tema da liberdade o núcleo de um sistema conceptual. [3]Por isso, o pensamento de Hegel continua sendo a fonte mais fecunda para pensar as teorias cujo princípio, raiz ou fundamento seja a liberdade. Ele é, por isso, o pensamento para orientar a crítica radical a toda Teoria Política cujo princípio é o da liberdade, conforme as vertentes do liberalismo em sua inata condição contratualista. E é o pensamento para rechaçar o primado econômico como operador exclusivo da sociedade civil, ainda que ele considere essa sociedade civil o lugar social onde se privilegiam os interesses e necessidades particulares em detrimento do interesse comum.

A sociedade civil moderna, na acepção de Hegel, sendo um dos três momentos essenciais da dialética da eticidade concreta, não pode ser autonomizada em seu primado econômico sem contrariar o princípio da liberdade. Aos que evocam para a sociedade civil o princípio da liberdade de mercado, o que a tornaria, portanto, sociedade civil burguesa, há desconhecimento de princípio anterior de ordem ou Estado que não é, pois, o da liberdade realizada. Ao contrário, o princípio aí implícito de um Estado feito pela autonomização da sociedade civil burguesa é, no máximo, o da realização institucional e, pois, dogmática de um Estado de Entendimento o qual é contrário ao exercício da liberdade concreta.[4]

O Estado de Entendimento reduz duplamente o exercício da liberdade concreta. Do lado individual, a liberdade fica reduzida a livre arbítrio e, do lado social, a liberdade inscrita no direito em geral atrofia-se em modelo de universalidade hipotética de relações jurídicas para conciliar a liberdade de escolha individual dentro de um sistema social de necessidades e recursos pré-existente. A liberdade, então, torna-se: 1) prisioneira de uma racionalidade externa a si que, por isso; 2) assume caráter técnico que implica em; 3) uma ordem tecnicamente administrada ou contratual ou Estado de Entendimento que, por sua vez; 4) apenas opera segundo um direito privado uma vez que; 5) arbitra conflitos de interesse privados e contratos particulares segundo a hegemonia ou o Poder de tais interesses. Com isso, em nome de um operador exclusivo que é o Estado de entendimento, atropela-se a eticidade concreta de um Estado provedor da liberdade concreta.

Segundo Hegel, a perspectiva do contratualismo/jusnaturalismo própria ao Estado de Entendimento não permite a realização do fenômeno absolutamente original da sociedade contemporânea que é a sociedade civil moderna – lugar social do indivíduo e de suas necessidade particulares no mundo do trabalho e da produção – enquanto momento essencial de mediação na dialética de construção da eticidade concreta ou Estado Justo (ético). Por isso, as relações sociais no Estado de Entendimento são relações contratuais de caráter privado que falseiam o interesse geral ou público.

Daí, o diagnóstico de Hegel, ainda atual, da enorme confusão no Estado liberal o qual impede a construção de um direito estatal ou público e a sua efetivação porque é, por assim dizer, um anti-Estado ao se subsumir à dinâmica da sociedade civil onde os interesses que prevalecem são de natureza privada.[5]

A concepção hegeliana de liberdade a partir da vontade, embora estudada e re-valorizada nos círculos filosóficos contemporâneos é chave hermenêutica e heurística para uma Teoria Social, ainda longe de ser compreendida pelas Ciências Humanas em geral. Compreendê-la e aplicá-la como Hegel a postulou no domínio da eticidade é transformar o atual mundo político, econômico e jurídico em verdadeiro e, pois, concreto humanismo, isto é, o humanismo fundado na liberdade concreta cujo exercício não se aliena do conteúdo de si.

Isto resgataria uma Teoria Social que, em nome da verdadeira liberdade, contrapõe-se à global teoria econômica capitalista sob cuja liberdade de mercado quer justificar seu fundamento humanista.

Hegel funda nova perspectiva de abordagem ao tema da liberdade no idealismo alemão. Por sua vez, o idealismo alemão fundara a liberdade na lógica do saber absoluto. É o que fizeram Kant e Fichte ao considerar a possibilidade de um conhecimento imediato, respectivamente, do dever moral provindo da razão prática (Kant) e da liberdade provinda do eu universal e infinito (Fichte). Em ambos, a liberdade ainda não ganhara autonomia de liberdade e sim, de liberdade pensada enquanto representação de autonomia. Segundo a denominação de Hegel, esta liberdade ainda é mediada pelo intelecto. Essa acepção de liberdade, para Hegel, não ultrapassa o livre-arbítrio, isto é, a liberdade fundada sobre um vazio de si enquanto exclusão do conteúdo de si.[6]

A liberdade, sistematizada sobretudo nos §§ 4-30 da introdução dos Princípios da filosofia do direito, passa a constituir em Hegel não apenas a fonte da Filosofia do direito, mas o princípio de sua filosofia especulativa que, nesta acepção, é a matriz do verdadeiro conhecimento. A filosofia especulativa é o sistema logico-onto-gnosiológico em que ser e pensar são ser e manifestar-se como momentos indissociáveis da dialética da liberdade[7].

Nos parágrafos 1 a 4 da introdução, Hegel institui o limite intransponível entre o conhecimento produzido pelo intelecto cujo principal produto é a ciência particular ou específica e o conhecimento que provém da liberdade cujo principal produto é a própria ciência ou filosofia enquanto certeza em si e para si do autoproduzir-se. Por isto é um saber denominado especulativo uma vez que seu operador é causa eficiente de si mesmo como o saber absoluto.

A liberdade do intelecto é abstrata na medida em que, mediada pelo intelecto, é apenas pensada, quer positiva ou negativamente, como escolha livre ou liberdade de escolha, isto é, livre-arbítrio. Mas de que outra maneira se poderia pensar a liberdade sem pensá-la abstratamente? É possível pensá-la, sim, segundo Hegel, como liberdade concreta, através do saber especulativo. A especulação é, portanto, o único procedimento gnosiológico que Hegel reserva à filosofia de seu tempo, embora ninguém o tivesse desvendado na amplitude que ele propôs. Esta é, pois, uma invenção hegeliana.[8]

Sobre esta liberdade concreta, ele vai tratar os próximos parágrafos da Introdução, da maneira mais sistemática que em seus outros escritos[9]. Bastam os parágrafos 5 a 7 para fixar os fundamentos desta liberdade onde já se identifica a chave hermenêutica de todo sistema de Hegel: a liberdade concreta. E, conseqüentemente, o saber em que ela se funda: o saber absoluto ou o conceito.

Hegel demonstra (§§ 5-7) que o tema da liberdade não pode ser produzido pelo intelecto sem suprimir a verdadeira liberdade: a liberdade concreta ou real. Pois, o intelecto pensa (entendimento) a realidade apenas representando-a , isto é, dissociando-se do objeto investigado ao abstrair-se dele e, por isso, o representa. O intelecto, então, ao relacionar-se com o objeto cria necessariamente a dualidade entre universal e particular; infinito e finito. Desse modo, não se refere imediatamente ao objeto concreto e sim, à sua representação abstrata.

Ao contrário, a liberdade verdadeira é concreta (“tudo que é verdadeiro é concreto”)[10] e, por isso, ela se produz como vontade, isto é, caminho cuja mediação entre o universal e o particular, o infinito e o finito é a própria imanência da abstração de auto-produzir-se: a liberdade da vontade .[11]

A imanência da abstração do auto-produzir-se da liberdade da vontade é denominada por Hegel determinidade. Pois, diferentemente do intelecto, cuja abstração do objeto é sua representação, a abstração da vontade é em si mesma uma determinação indissociável do objeto a que se destina. Diferentemente da representação do intelecto, o auto-produzir-se da abstração da vontade é uma determinação que reúne de maneira indissociável universal e particular, infinito e finito. O que é, então, esta determinação da liberdade da vontade senão o saber absoluto – saber resolvido sobre o saber que sabe agir ou saber que sabe imediatamente seu saber agir – senão propriamente o conceito? Logo, para Hegel, liberdade e conceito são noções homólogas de um mesmo sistema porque liberdade concreta é homóloga à forma da verdade ou Idéia ou Conceito. Com isso, a verdadeira ciência é a que se produz como liberdade concreta em cujo princípio reúne-se dialeticamente ética, política, direito e economia para instituir nova Teoria Social ou Teoria do Estado assumida enquanto eticidade concreta: a liberdade fazendo-se enquanto conceito de si na vida social.

O projeto de pesquisa visa a refutar, desse modo, três momentos dialeticamente indissociáveis ainda enunciados de maneira preliminar nesta fase da investigação:

1º Momento – Identidade: A liberdade de mercado é, de fato, ordem ou estado de mercado cujo princípio é o primado da lei de mercado (ou lei do mais forte) na relação de competição econômica. Esta lei funda, portanto, um Estado sem ethos público em que prevalece a lógica do interesse privado.

2º Momento – Diferença: A economia torna-se falsamente uma ordem econômica (Estado) quando , de fato, é instância da sociedade civil que trata das relações sociais de carências e interesses particulares.

3º Momento – Singularidade: No Estado do mais forte em que prevalece a ordem econômica ou ordem de mercado, a sociedade civil, contrariamente a Hegel, ganha autonomia de momento exclusivo e substitui a dialética da eticidade concreta (família, sociedade civil, estado). O Estado do entendimento, então, sob o primado da ordem econômica, substitui o Estado da liberdade.

Pode-se dizer em formulação preliminar que, no Estado do entendimento sob o primado da ordem de mercado, há uma dialética do anti-Estado da liberdade ou um Estado que não permite a liberdade efetiva como seu fundamento.
Neste tipo de Estado, o agir econômico, ao contrário do que propala todo liberalismo ou toda teoria econômica liberal, é o agir econômico para não ser livre no sentido do exercício da liberdade subjetiva: é o anti-Estado hegeliano.


Notas:

[1] A sociedade civil a que me refiro nesta comunicação é sempre a moderna sociedade civil. Ela é diretamente tratada por Hegel em sua Filosofia do Direito nos §§ 181-208.
[2] A expressão Teoria Social é aqui tomada na ampla acepção frankfurtiana de Ordem Política ou Teoria de Estado.
[3] LIMA VAZ, Ética filosófica 1, p. 374 -404.
[4] § 183.
[5][5] “l’immixtion de ce rapport [contratuel], ainsi que celle des rapports de propriété privée en général, dans le contexte étatique a produit les plus grandes confusions dans le droit étatique et dans l’effectivité. »FD §75 nota.
[6] No Prefácio, Hegel já caracteriza a acepção kantiana de liberdade como livre arbítrio ou liberdade do vazio ou liberdade negativa.
[7] LIMA VAZ, op. cit., p. 374-376.
[8] No final do adendo do § 4, Hegel indica a introspecção sobre a vontade como a mediação reveladora da liberdade concreta de onde provém o saber especulativo. Esta invenção hegeliana é considerada superior à revolução copernicana de Kant, conforme LIMA VAZ, op. cit., p. 366.
[9] Cf. o primeiro parágrafo do Prefácio.
[10] Afirmação de Hegel no adendo do § 7.
[11] Final do adendo do § 6.

sábado, 22 de agosto de 2009

Entrevista - Marcel Gauchet

Estamos sob o efeito de uma anestesia coletiva sem precedentes na história’.


“Nós estamos na entrada de um túnel de questionamento do nosso sistema, e não numa crise cíclica clássica. É uma crise moral, intelectual e política que vai se desenrolar ao longo dos próximos anos. Em outras palavras, nós vemos ‘o mundo pós’ apenas de longe”, afirma o filósofo francês Marcel Gauchet. A entrevista é de Valérie Segond e está publicada no jornal econômico francês La Tribune, 27-07-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS





“Nada mais será como antes”, disse Nicolas Sarkozy. Para você, quais serão as principais mudanças?


O retorno ao mesmo me parece inteiramente improvável, ainda que a maior parte dos atores esteja esperando impacientemente o retorno ao “business as usual”, por medo, sem dúvida, de que não precise refletir! Para poder se projetar no futuro, seria preciso, em primeiro lugar, compreender o que está acontecendo. Ora, o que é surpreendente na situação atual é constatar até que ponto a inteligência está desarmada. Nós temos muito mais meios de ação que em 1929, mas bem menos meios intelectuais do que na época.

Entretanto, se fosse tentar desvelar a sua gênese, o que diria?

Me parece que a crise se desenvolve sobre o fundo de importantes transformações, que constituem suas subjacências. Em primeiro lugar, na história, todas as grandes crises foram crises de ajustamento. E está claro que o sistema econômico internacional viveu modificações consideráveis nas relações de força. Nós passamos de um mundo dominado pelos Estados Unidos a um universo policêntrico, no qual as novas potências financeiras emergiram aproveitando-se de trinta anos de acumulação de reservas ligadas ao encarecimento do preço da energia e das matérias-primas. Não estamos falando das novas potências industriais asiáticas. A própria América Latina foi se livrando da dominação norte-americana. Tudo isso coloca a questão do papel do dólar, e da nova distribuição do trabalho, das rendas e dos projetos econômicos em escala planetária. Mas, isso não é tudo.

Nós também conhecemos uma mutação do sistema técnico. A informatização das nossas vidas assim como das nossas sociedades produziu efeitos consideráveis que nós subestimamos. Assim como há muito tempo foi o caso da industrialização ou do aparecimento da eletricidade, ela modificou em profundidade as relações sociais. Porque a informatização se ampliou bem mais que o trabalho humano: ela multiplicou o pensamento em si mesmo, e assim aumentou o potencial da economia da inovação. Doravante, as máquinas fazem o trabalho do cérebro, afetando pelo alto o comando social, e por baixo os critérios da empregabilidade. Nós não dominamos as consequências desse processo.

Enfim, a crise marca o fim da revolução neoliberal inaugurada há trinta anos pelo advento do thatcherismo. Ora, esta revolução era também uma revolução filosófica, segundo a qual só o indivíduo existia, o bem comum se constituindo como resultado da arbitragem pelo mercado dos interesses particulares. Hoje, está evidente que esta visão de mundo encontrou seus limites.

Nós vamos, portanto, passar a outra coisa...

Sim, mas a quê? Porque esta filosofia era de tal modo compartilhada que nós deixamos de refletir sobre a marcha do nosso mundo. E diante da força do consenso, os portadores de um modelo alternativo eram obrigados a se calar! É impressionante ver que os apelos para uma nova regulação são apenas fórmulas verbais sem consistência, sem coerência. Nós estamos na entrada de um túnel de questionamento do nosso sistema, e não numa crise cíclica clássica. É uma crise moral, intelectual e política que vai se desenrolar ao longo dos próximos anos. Em outras palavras, “o mundo pós” nós o vemos apenas de longe.

Devemos recorrer então aos filósofos para fazer emergir novos modelos?

As coisas não acontecem dessa maneira. A invenção de novos modos de pensar é um processo coletivo muito mais complexo. Os filósofos vêm depois, eventualmente para engrossar o movimento. Não foi Marx quem inventou o socialismo, ainda que tenha contribuído muito com ele. “A coruja de Minerva alça seu voo somente com o início da noite”, como dizia Hegel, que sabia do que estava falando.

Esta crise vai embaralhar as cartas dos valores dominantes? Constatar o retorno da comunidade no lugar do individualismo, da lógica do Estado no lugar dos interesses particulares, do desenvolvimento sustentável no do crescimento, do político no do econômico?

Esperamos! Mas a gente não pode se enganar: um provável retorno dos valores só pode surgir de um sonho coletivo que só tem lugar naquelas pessoas que o querem. Ora, no momento, estamos sob o efeito de uma anestesia coletiva sem precedentes na história! É preciso dizer que o nível de proteção social muito elevado do qual nós nos beneficiamos coletivamente cria uma situação de conforto pouco propício para os questionamentos. Contrariamente aos anos 1930, quando a mobilização insurrecional era uma ameaça diária, nós não estamos em uma situação de urgência.

Você percebe a emergência de novos riscos, por exemplo, o retorno do protecionismo em detrimento do desenvolvimento das trocas, ou dos integrismos em vez da equivalência das ideologias?

Eu não sou profeta, mas é provável que a saída da crise se traduza em um aumento da competição entre países que terão reforçado a sua coerência na provação. Se a América perdeu a sua posição hegemônica absoluta nesses últimos anos, não devemos subestimar a sua capacidade de reação ao se mobilizar em torno de um grande projeto nacional. Historicamente, as crises sempre foram, para a América, um momento propício para reencontrar a fé, e tomar seu destino na mão através de decisões chaves.

Os emergentes, como a China, não vão afrouxar facilmente a corda. No futuro, a vantagem competitiva determinante será de natureza política: vencerão os mais criativos porque eles terão sido capazes de mobilizar as energias em torno de um projeto identificador. Isso coloca um grave problema para a Europa, que não tem a armadura institucional de semelhante política e que a amputou em grande parte a capacidade em seus países membros. Ela corre o risco de engrossar o final da fila. Não é hora de regenerar o modelo. Se os países europeus não partirem com um projeto cooperativo para o mundo do tipo deste que eles souberam construir entre si, e se não souberem vendê-lo, esta crise será um cataclismo para eles.

O que poderá mudar “o mundo pós”?

Os destinos sempre se forjam em função de dois pólos: de um lado, a herança, o que se é pela história e que determina a nossa identidade. De outro, a capacidade de propor um objetivo plausível, suscetível de criar uma mobilização coletiva. É o que Barack Obama está tentando fazer na América.

Quando os responsáveis pela crise saíram todos das melhores escolas, como irá evoluir a relação com as elites?

A rejeição das elites e do conhecimento é um risco real. Ela leva a um mau caminho: já que as suas belas teorias nos colocaram contra a parede, para que refletir! Ora, é precisamente de teorias melhores e de ideias mais justas que temos urgentemente necessidade. Mas, a necessidade faz a lei e eu me inclino a um razoável otimismo: a história mostra que a espécie humana nunca se resigna completamente a sofrer sem compreender. Ela se adapta incessantemente e reinventa o mundo.

[grifos do blog]


segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Falar ou calar sobre Deus? A relação linguagem-teologia

"Sobre aquilo de que não se pode falar deve-se calar", disse Wittgenstein em seu "Tractatus". No prefácio, porém, dissera que "tudo aquilo que pode ser dito pode ser dito claramente". E quando esse "aquilo" é Deus? Como falar sobre Deus frente aos limites da linguagem?
Fonte: UNISINOS



A partir do pensamento de Wittgenstein, o Prof. Dr. Luigi Perissinotto, da Universidade Ca' Foscari de Veneza, na Itália, irá contribuir com os debates do X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades, que ocorre na Unisinos entre os dias 14 a 17 de setembro de 2009. Organizado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o Simpósio conta com a parceria da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e do Escritório da Fundação Ética Mundial no Brasil.
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Perissinotto estará presente na Unisinos no dia 15 de setembro, para ministrar a conferência "As narrativas de Deus e as questões de linguagem a partir de Wittgenstein", das 14h30min às 16h30min.

Formado em filosofia pela Universidade Ca' Foscari de Veneza, é doutor na mesma área pela Universidade Estatal de Milão. De 1992 a 2002, foi pesquisador e professor associado do Departamento de Filosofia e Teoria das Ciência da Universidade Ca' Foscari de Veneza. Atualmente, é professor de Filosofia da Linguagem na mesma instituição. É também membro da Sociedade Filosófica Italiana e da Austrian Ludwig Wittgenstein Society, na Áustria. É redator da revista "Filosofia e Teologia".

Em seu livro "Wittgenstein. Una guida" (Feltrinelli 1997), sem tradução para o português, o filósofo italiano comenta algumas ideias do filósofo austríaco a respeito da relação linguagem-metafísica, como quando Wittgenstein afirma que o método correto da filosofia seria "nada dizer senão aquilo que pode ser dito [...], e, toda vez que alguém quiser dizer algo metafísico, mostrar-lhe que, em certos sinais nas suas proposições, não deu significado algum". Eis aí, segundo Perissinotto, "o limite em que a filosofia é convidada a calar".

Por outro lado, o autor de "Tractatus", segundo Perissinotto, apresenta grandes questionamentos e desafios para as narrativas teológicas hoje. Como quando o autor defende que todas as conjecturas e previsões que formulamos sobre aquilo que ocorrerá ou que virá estão embasadas na "lei mais simples que pode ser lembrada com as nossas experiências": ou seja, tentamos "'guiar os eventos do mundo', fazer com que ocorra aquilo que desejamos, e que não ocorra aquilo que tememos". Essa "radical acidentalidade de tudo aquilo que ocorre" do filósofo austríaco, segundo Perissinotto, traz, por sua vez, o aspecto ético do pensamento de Wittgenstein, para quem, afirma o autor italiano, uma vida feliz e justa é aquela "de quem vive em harmonia com o mundo". Ou, nas palavras teologicamente questionadoras do filósofo austríaco, a vida de "quem não precisa mais de um fim fora da vida".

E aqui talvez esteja uma das ideias centrais de Wittgenstein em diálogo com a noção de Deus: como pode o homem ser feliz se não pode ficar longe da miséria deste mundo? Para ele, a vida feliz, boa e justa é a vida que pode renunciar aos prazeres do mundo. E, por isso, Wittgenstein não oferece um convite a fugir do mundo nem a condenar a vida, afirma Perissinotto.

Quanto à linguagem, Wittgenstein afirma: "A filosofia se limita a colocar tudo diante de nós e não explica e nem deduz nada. Como tudo está ali à mostra, não há nada a ser explicado. Aquilo que está escondido não nos interessa". Para ele, afirma Perissinotto, "o erro mais grave da filosofia consiste em buscar uma explicação", pois isso seria cair em um "jogo linguístico". Na realidade, para Wittgenstein, pede-se que a filosofia compreenda e penetre na operação "da nossa linguagem, não de uma linguagem 'ideal' qualquer".

Nesse sentido – e aqui a relação direta com as imagens de Deus que construímos –, o que impede o reconhecimento das operações da nossa linguagem, segundo Wittgenstein, "é a força por meio da qual algumas imagens, incorporadas e inscritas na própria linguagem, tendem a nos seduzir e a nos desviar".

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