segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Roberta De Monticelli

Os valores compartilhados do humanismo ateu


"A tese de que o ateísmo é niilismo moral não só é, creio, falsa, mas é também uma ferida profunda causada a todos os homens de boa vontade que dedicaram a vida inteira à busca do verdadeiro – nas ciências ou nas coisas humanas – e não encontraram nada digno do nome de Deus." A opinião é da filósofa italiana e professora da Universidade Vita-Salute San Raffaele Roberta De Monticelli, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 22-08-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



Pode um humanismo ateu não ser niilista de um ponto de vista ético? O problema, levantado pelo Pontífice e retomado com posições opostas por Adriano Sofri e Vito Mancuso, é crucial: não só na metafísica e na moral, mas na consciência contemporânea e marcadamente na italiana, no momento atual, dividida como está entre a constatação de que não há limites ao arbítrio e à impunidade onde o poder não observa regras, e a esperança de uma renovação moral e civil: que, porém, passará em primeiro lugar na mente e no coração dos indivíduos, ou não ocorrerá nunca mais. Por isso, permito-me expor as razões pelas quais eu acredito que se deva discordar desta vez da tese de Vito Mancuso, o teólogo que é hoje parte viva e grande dessa esperança de renovação.

A questão é crucial porque o fato de se colocá-la equivale a perguntar-se se uma ética laica é ou não possível. Defino os termos. Por ética entendo a consciência daquilo que é devido por alguém a todos, em qualquer circunstância dada. Por ética laica entendo a ética enquanto seu valor exista independentemente da hipótese de que haja um Deus e enquanto seja acessível e praticável independentemente de qualquer crença relativa a Deus. A tese fundamental de uma ética laica afirma portanto que a consciência do meu dever em toda circunstância dada é acessível (com o mesmo cansaço, tormento ou certeza) a qualquer um, crente, diversamente crente, indiferente, não indiferente ou ateu.

Mancuso considera que essa tese é falsa – que a existência indubitável de ateus de altíssima sensibilidade moral (ou vice-versa, de homens de religião que são privados daquela) demonstra apenas que esses supostos ateus tais não são (e erram ao crerem-se como tais) e que aqueles supostos religiosos também não o são. Desta vez, parece-me que deve-se discordar de Mancuso e da quase totalidade dos filósofos continentais, que o seguiriam sem hesitar na crítica do "antropocentrismo" ou humanismo moderno.

A tese de que o ateísmo é, enfim, niilismo moral não só é, creio, falsa, mas é também uma ferida profunda causada a todos os homens de boa vontade que dedicaram a vida inteira à busca do verdadeiro – nas ciências ou nas coisas humanas – e não encontraram nada digno do nome de Deus. Vito, não podes exigir que chamemos de Deus a dimensão "espiritual" da vida, o amor ou a relação ordenada da qual viemos. Nada é mais secreto, gratuito e zeloso do que o nome de Deus nos lábios de um homem, nada é mais sagrado do que a liberdade de rejeitar ao bem da vida esse nome, assim como de pronunciá-lo.

O absoluto respeito intelectual, além de moral, da liberdade de fé se deve a cada um. Essa é, acredito, uma proposição da ética. E digo liberdade de fé incluindo o ateísmo, dado que, para as posições metafísicas últimas (se o mundo natural necessita de um fundamento ulterior a si mesmo ou não) não existe demonstração. E eis o argumento em defesa da tese de que o humanismo ateu não implica necessariamente em um niilismo moral. Remonta a Platão, àquele seu diálogo que liberta a ética da religião. Defender que ateísmo implica em niilismo é defender que, se Deus não existe, tudo é permitido. Mas essa tese é verdadeira só se, no dilema de Eutifron, é verdadeiro um dos lados da alternativa: o bem é bem porque Deus o quer. Só nesse caso, evidentemente, se Deus não existe, "tudo é permitido". Não há diferença entre o bem e o mal. Então, "bem" é o que, de vez em quando, os homens decidem que seja – e quem tem o poder decide pelos outros, e a quem se opõe não sobra nada a não ser apelar a si mesmo. Esse é o voluntarismo, a tese de que não há verdade e falsidade nas questões de valor, mas só as vontades (e o seu conflito). Mas, naturalmente, pode ser verdadeira, ao invés, a tese alternativa do dilema: que, no caso, Deus quer o bem porque é bem. Nesse caso, mesmo que Deus não exista, o bem continua sendo bem, e o mal, mal.

É nas coisas humanas mesmas que há qualidades positivas e negativas. Financiar favores privados com cargos públicos é mal. Toda forma de mafiosidade dos comportamentos é um mal. Toda vez que a rejeitamos, experimentamos o bem e o mal. Certamente, existe uma interpretação do humanismo ateu que implica no niilismo, e é precisamente a voluntarista. Foi aquela, por exemplo, de Sartre – e é hoje a tragédia da cultura também progressista e liberal que não consegue se libertar do relativismo de valor. "Addio alla verità" [Adeus à verdade] é o título do último livro de um influente filósofo pós-moderno [Gianni Vattimo], e parece-me que ele fala sobre si mesmo. Mas devemos, talvez, decretar que não pode existir um ateísmo compatível com a ética?

Isso seria confundir o ethos – que é o estilo de vida e a escala de valores, a vocação e a fé, a identidade pessoal ou moral de alguém – com a ética, que é o dever de cada um para com todos. E qual é o primeiro dever ético senão o de concordar com o ethos do meu semelhante ateu, contanto que se demonstre compatível com a ética, o mesmo respeito que exijo pelo meu? Não é essa uma versão da regra de ouro?

Em conclusão: ou é só uma questão de palavras, e basta chamar de "Deus" uma relação entre pessoas – mas então o pobre ateu moralmente cristalino duvidará se deve se considerar apenas incoerente ou também tolo, visto que não havia se dado conta de que o divino estivesse "todo ali". Ou, como eu acredito, não é exatamente uma questão de palavras, porque o que está em questão é a liberdade e a gratuidade (ou a graça) do ato com o qual o homem de fé doa a sua aceitação e a sua vida àquilo que nem a ciência pede nem a ética comanda.

Está em questão a liberdade com a qual o perplexo suspende essa aceitação, e o ateu a rejeita: a sacrossanta liberdade daquilo que cada um é o devir – além daquilo que deve aos outros. A ética vem antes: porque é condição deste. Dessa liberdade diante das coisas últimas, na qual está definitivamente toda a profundidade e a seriedade da nossa breve vida. Uma sociedade civil e justa nada mais é do que a condição para que esse humano luxo se torne acessível a cada um. Mas como construí-la se se coloca a ética depois da fé, e assim a essa liberdade de cada um, pela qual a ética é feita, se corta um dos caminhos possíveis, sem a qual as outras perdem seu sentido?

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