sábado, 22 de agosto de 2009

Entrevista - Marcel Gauchet

Estamos sob o efeito de uma anestesia coletiva sem precedentes na história’.


“Nós estamos na entrada de um túnel de questionamento do nosso sistema, e não numa crise cíclica clássica. É uma crise moral, intelectual e política que vai se desenrolar ao longo dos próximos anos. Em outras palavras, nós vemos ‘o mundo pós’ apenas de longe”, afirma o filósofo francês Marcel Gauchet. A entrevista é de Valérie Segond e está publicada no jornal econômico francês La Tribune, 27-07-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS





“Nada mais será como antes”, disse Nicolas Sarkozy. Para você, quais serão as principais mudanças?


O retorno ao mesmo me parece inteiramente improvável, ainda que a maior parte dos atores esteja esperando impacientemente o retorno ao “business as usual”, por medo, sem dúvida, de que não precise refletir! Para poder se projetar no futuro, seria preciso, em primeiro lugar, compreender o que está acontecendo. Ora, o que é surpreendente na situação atual é constatar até que ponto a inteligência está desarmada. Nós temos muito mais meios de ação que em 1929, mas bem menos meios intelectuais do que na época.

Entretanto, se fosse tentar desvelar a sua gênese, o que diria?

Me parece que a crise se desenvolve sobre o fundo de importantes transformações, que constituem suas subjacências. Em primeiro lugar, na história, todas as grandes crises foram crises de ajustamento. E está claro que o sistema econômico internacional viveu modificações consideráveis nas relações de força. Nós passamos de um mundo dominado pelos Estados Unidos a um universo policêntrico, no qual as novas potências financeiras emergiram aproveitando-se de trinta anos de acumulação de reservas ligadas ao encarecimento do preço da energia e das matérias-primas. Não estamos falando das novas potências industriais asiáticas. A própria América Latina foi se livrando da dominação norte-americana. Tudo isso coloca a questão do papel do dólar, e da nova distribuição do trabalho, das rendas e dos projetos econômicos em escala planetária. Mas, isso não é tudo.

Nós também conhecemos uma mutação do sistema técnico. A informatização das nossas vidas assim como das nossas sociedades produziu efeitos consideráveis que nós subestimamos. Assim como há muito tempo foi o caso da industrialização ou do aparecimento da eletricidade, ela modificou em profundidade as relações sociais. Porque a informatização se ampliou bem mais que o trabalho humano: ela multiplicou o pensamento em si mesmo, e assim aumentou o potencial da economia da inovação. Doravante, as máquinas fazem o trabalho do cérebro, afetando pelo alto o comando social, e por baixo os critérios da empregabilidade. Nós não dominamos as consequências desse processo.

Enfim, a crise marca o fim da revolução neoliberal inaugurada há trinta anos pelo advento do thatcherismo. Ora, esta revolução era também uma revolução filosófica, segundo a qual só o indivíduo existia, o bem comum se constituindo como resultado da arbitragem pelo mercado dos interesses particulares. Hoje, está evidente que esta visão de mundo encontrou seus limites.

Nós vamos, portanto, passar a outra coisa...

Sim, mas a quê? Porque esta filosofia era de tal modo compartilhada que nós deixamos de refletir sobre a marcha do nosso mundo. E diante da força do consenso, os portadores de um modelo alternativo eram obrigados a se calar! É impressionante ver que os apelos para uma nova regulação são apenas fórmulas verbais sem consistência, sem coerência. Nós estamos na entrada de um túnel de questionamento do nosso sistema, e não numa crise cíclica clássica. É uma crise moral, intelectual e política que vai se desenrolar ao longo dos próximos anos. Em outras palavras, “o mundo pós” nós o vemos apenas de longe.

Devemos recorrer então aos filósofos para fazer emergir novos modelos?

As coisas não acontecem dessa maneira. A invenção de novos modos de pensar é um processo coletivo muito mais complexo. Os filósofos vêm depois, eventualmente para engrossar o movimento. Não foi Marx quem inventou o socialismo, ainda que tenha contribuído muito com ele. “A coruja de Minerva alça seu voo somente com o início da noite”, como dizia Hegel, que sabia do que estava falando.

Esta crise vai embaralhar as cartas dos valores dominantes? Constatar o retorno da comunidade no lugar do individualismo, da lógica do Estado no lugar dos interesses particulares, do desenvolvimento sustentável no do crescimento, do político no do econômico?

Esperamos! Mas a gente não pode se enganar: um provável retorno dos valores só pode surgir de um sonho coletivo que só tem lugar naquelas pessoas que o querem. Ora, no momento, estamos sob o efeito de uma anestesia coletiva sem precedentes na história! É preciso dizer que o nível de proteção social muito elevado do qual nós nos beneficiamos coletivamente cria uma situação de conforto pouco propício para os questionamentos. Contrariamente aos anos 1930, quando a mobilização insurrecional era uma ameaça diária, nós não estamos em uma situação de urgência.

Você percebe a emergência de novos riscos, por exemplo, o retorno do protecionismo em detrimento do desenvolvimento das trocas, ou dos integrismos em vez da equivalência das ideologias?

Eu não sou profeta, mas é provável que a saída da crise se traduza em um aumento da competição entre países que terão reforçado a sua coerência na provação. Se a América perdeu a sua posição hegemônica absoluta nesses últimos anos, não devemos subestimar a sua capacidade de reação ao se mobilizar em torno de um grande projeto nacional. Historicamente, as crises sempre foram, para a América, um momento propício para reencontrar a fé, e tomar seu destino na mão através de decisões chaves.

Os emergentes, como a China, não vão afrouxar facilmente a corda. No futuro, a vantagem competitiva determinante será de natureza política: vencerão os mais criativos porque eles terão sido capazes de mobilizar as energias em torno de um projeto identificador. Isso coloca um grave problema para a Europa, que não tem a armadura institucional de semelhante política e que a amputou em grande parte a capacidade em seus países membros. Ela corre o risco de engrossar o final da fila. Não é hora de regenerar o modelo. Se os países europeus não partirem com um projeto cooperativo para o mundo do tipo deste que eles souberam construir entre si, e se não souberem vendê-lo, esta crise será um cataclismo para eles.

O que poderá mudar “o mundo pós”?

Os destinos sempre se forjam em função de dois pólos: de um lado, a herança, o que se é pela história e que determina a nossa identidade. De outro, a capacidade de propor um objetivo plausível, suscetível de criar uma mobilização coletiva. É o que Barack Obama está tentando fazer na América.

Quando os responsáveis pela crise saíram todos das melhores escolas, como irá evoluir a relação com as elites?

A rejeição das elites e do conhecimento é um risco real. Ela leva a um mau caminho: já que as suas belas teorias nos colocaram contra a parede, para que refletir! Ora, é precisamente de teorias melhores e de ideias mais justas que temos urgentemente necessidade. Mas, a necessidade faz a lei e eu me inclino a um razoável otimismo: a história mostra que a espécie humana nunca se resigna completamente a sofrer sem compreender. Ela se adapta incessantemente e reinventa o mundo.

[grifos do blog]


Transparência Brasil

Projeto Ficha Limpa

Acervo CULT

Acervo CULT
A revista CULT acaba de digitalizar o conteúdo integral dos DOSSIÊS publicados mensalmente, desde 1997, que se tornaram fonte de pesquisa não apenas para estudantes e professores, mas também para aqueles interessados na obra e na biografia das grandes figuras do pensamento ocidental. CULT é reconhecida por trazer textos exclusivos, produzidos pelos maiores especialistas nacionais. Caso encontre dificuldades, enviar uma mensagem para site@revistacult.com.br.

Quem sou eu

Minha foto
Teresina, Piauí, Brazil
Powered By Blogger