domingo, 8 de março de 2009

Entrevista - Cecília Pires

“A mulher, talvez, até nem precisasse de um dia especial”.

Transformações, fortalecimentos e lutas marcam a vida das mulheres há muitos séculos. Pelas batalhas que travou e pelas dificuldades e desigualdades que enfrenta ainda hoje, a mulher ganhou um dia, o dia 8 de março. Para a filósofa Cecília Pires, em entrevista concedida à IHU On-Line, essa é uma data que nem precisaria existir se as pessoas voltassem a si mesmos e recompusessem um processo de integração com a sua humanidade.

A partir da sua própria história como filósofa num campo onde o homem tem maior presença e destacando exemplos de mulheres que contribuem para o fortalecimento da cultura da mulher, ela nos concedeu essa entrevista para repensarmos o que é ser mulher, atualmente.

Graduada em Filosofia, Pires é especialista em Orientação Educacional e mestre em Filosofia, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Cursou doutorado em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com a tese O ISEB e a questão do nacionalismo. É pós-doutora pela Universidade Paris I, França. Professora nos cursos de graduação e pós-graduação de Filosofia da Unisinos, escreveu, entre outros, Reflexões sobre Filosofia Política (Santa Maria: Pallotti, 1986) e Ética da Necessidade e outros desafios (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004). Organizou Vozes silenciadas. Ensaios de Ética e Filosofia Política (Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2003).
Fonte: UNISINOS


IHU On-Line – Quem é a mulher hoje?

Cecília Pires – Essa é uma pergunta que exige algumas identificações. A mulher hoje se traduz por ser um sujeito de forte consciência de si mesmo, de sua identidade e seus direitos e perspectivas de vida, trabalho e realização. Penso que toda essa questão da comemoração do 8 de março (que tem a ver com a chacina que foi feita com as tecelãs de uma fábrica de Nova Iorque) mostrou uma evolução grande do papel da mulher no mundo, em todos os aspectos, desde a família, trabalho, lazer, vida política e religião. Penso, contudo, que em determinadas culturas a mulher ainda tem um papel secundário, submetida a vários processos de humilhação e exclusão social, e que as coisas vividas por ela ainda não são plenas. A mulher hoje é um sujeito que chegou a um lugar social histórico de reconhecimento. Ainda há, contudo, muitas coisas a serem resolvidas.

IHU On-Line – Quais são suas maiores conquistas e seus maiores desafios?

Cecília Pires – O desafio da mulher hoje é uma compreensão do equilíbrio e da paz no mundo. Não que a mulher tenha que ser um eixo desse equilíbrio e paz, e falo isso do ponto de vista da minha subjetividade. Acredito que o mundo hoje precisa de muita paz, serenidade e equilíbrio, e o sujeito masculino da espécie é muito agressivo, belicoso, sai muito à caça, à dominação, talvez fazendo sofisticadamente no momento contemporâneo aquilo que já se fazia antes. A mulher cuidava da prole e o homem saia à caça. Esses papéis não se inverteram necessariamente. Eles se reproduziram de forma diferente.

Mas o desafio do equilíbrio no mundo hoje para a mulher é a questão maior, sobretudo quando vemos mulheres em lugares de destaque na política nacional e internacional. A questão da serenidade e da delicadeza, que fazem parte do universo feminino, sem qualquer tipo de discriminação à figura do masculino, que também pode ser delicado e equilibrado, é o grande desafio: junto com os companheiros homens, pensar a paz no mundo. As guerras, agressões e conflitos já se deram de todas as formas.

Lucidez e cumplicidade

É triste vermos nas manchetes dos jornais dois casos cruéis no Brasil, um no Nordeste, outro aqui no Sul, de meninas grávidas, violadas por padrastos e, quem sabe, com a cumplicidade da própria mãe. Ainda assim, um ou outro líder da igreja local condena o aborto feito em cumprimento da lei, pois havia risco de vida para a menina e a gravidez era oriunda de estupro. Com isso, não estou defendendo o aborto, até porque sou contra ele. Mas esses são casos de absoluta exceção. É muito triste que em pleno século XXI esses fatos acontecem em nosso país. Então, nos perguntamos sobre a lucidez ou cumplicidade que as mulheres envolvidas nesses processos tiveram sobre essas crianças vítimas da violência masculina, e ainda pior, vinda pessoas de dentro de casa.

Sobre as conquistas das mulheres, se pensarmos em relação ao modo de produção capitalista que seguimos, todos tem que ter trabalho. Então menciono as conquistas no mundo do trabalho, e os direitos inclusive em consequência relacionados a esse mundo do trabalho. Nesse aspecto, há que se destacar o próprio reconhecimento profissional. Em décadas passadas, sobretudo até 1980, havia muita diferença entre salários femininos e masculinos. Havia empresas, como nossa Petrobras, que buscava poucas engenheiras, e mais engenheiros. Penso que essa questão discricionária está sendo superada em algumas situações. Infelizmente, ainda há muitas situações a serem resolvidas. Vamos pensar sobre a Lei Maria da Penha, criada exatamente como um protesto jurídico político sobre a violação de uma mulher. Seria muito melhor que não precisássemos dessa lei, já que a justiça não deveria ter um sexo, e deveria trabalhar com equilíbrio. Mas não é isso que acontece. Há, portanto, muitas lacunas, ainda, e pouco entendimento. Outro exemplo é que, às vezes, alguns setores da sociedade são muito discricionários com a questão da mulher e trata a questão das pessoas que lutam pela emancipação feminina com deboche. Esse respeito ainda precisa ser conquistado. Talvez a mulher até nem precisasse de um dia especial. A questão seria os humanos se voltarem a si mesmos e se recomporem num processo de integração de sua própria humanidade. Como isso não acontece, fazemos várias situações de identificação específica, como o dia do idoso, da criança, da mulher. Na verdade, a sociedade precisaria evoluir mais em relação a isso. Esse é o maior desafio.

IHU On-Line – Como percebe o poder e o pensamento feminino no mundo contemporâneo?

Cecília Pires – Esse poder e pensamento estão bastantes presentes no mundo de hoje. Há situações hoje, em que lideranças femininas cresceram de uma forma mais sólida, mas vinculada a representações como as mulheres do movimento negro, do Movimento Sem Terra, nas lutas sindicais, nas representações parlamentares, nas situações de governabilidade e representando vários segmentos sociais. Vejo que sempre parece uma espécie de destaque e esse destaque me parece pejorativo em relação à forma como a mulher se trata e se apresenta. Por exemplo, a mídia, em suas manchetes, fez várias observações um pouco irônicas, mordazes, sobre as cirurgias que a ministra Dilma Roussef [1] teria feito. Isso é absolutamente secundário na vida política do país. Se fôssemos pensar em inúmeros deputados, senadores e presidentes da República, inclusive, que fizeram essas cirurgias faciais, perceberemos que as manchetes dos jornais não tiveram o mesmo encaminhamento, fazendo esse tipo de declaração mordaz.

IHU On-Line – E por que a senhora acha que a mídia faz isso?

Cecília Pires – A mídia é muito estimulada por um espírito mesquinho, de um certo primitivismo de pensamento, pragmático, pobre. Ao invés de mostrar o que as pessoas como sujeitos sociais e políticos estão fazendo, ou não fazendo, tecendo críticas a partir de situações consolidadas, efetivadas, comprovadas, falam de detalhes sobre o corte de cabelo, o botox do rosto, o tipo de saia. A mídia quer alimentar um certo tipo de público que gosta disso.

IHU On-Line – De certa forma a mulher, que tem um papel de formadora de opinião, contribui para isso?

Cecília Pires – Não penso que isso poderia ser colocado na generalidade. Penso que há algumas mulheres filósofas, sociólogas, escritoras, religiosas, líderes populares que contribuem muito para a formação de opinião. Mas é numa outra área, num outro viés da questão, não é simplesmente na questão estético-cultural. Não que essa não seja uma questão importante, a beleza é uma condição que construímos e gostamos, mas essa coisa de padrões de beleza, de estrutura corporal, de formas de se vestir e de se portar valendo como um modelo, fica parecendo um rito de estátua. Penso que a vida de uma mulher pública é muito invadida, devassada, e que às vezes é muito ruidoso tudo isso, e em nada contribui para o convívio social. Ainda que do ponto de vista do universo masculino isso também possa acontecer, não é de uma forma tão mordaz e caricata quanto é feito em relação à mulher.

São coisas de uma tibieza de espírito, de pessoas que não conseguiram ver as coisas em uma totalidade de significados, com maior envolvimento para a humanidade e consigo mesmos. Isso é algo que deixa a desejar, no meu ponto de vista. A feminilidade e a masculinidade são características dos seres vivos da espécie e que tinham que ser respeitadas nessas condições, tais como se apresentam. Penso que tudo isso não contribui para a paz, e sim para a violência, para a competição. Claro que talvez haja muitas mulheres que até estimulam esse tipo de comportamento, podem até gostar de estar na mídia dessa forma, mas acho que não são todas as mulheres públicas que se enquadram nesse quesito.

IHU On-Line – Quais são os maiores preconceitos que persistem em torno das mulheres?

Cecília Pires – Um dos preconceitos que persistem é, de um modo geral, acerca da inteligência da mulher e da sua emocionalidade. Por mais que as mulheres se esforcem e lutem, escrevam, pesquisem, investiguem, isso é colocado com certo destaque, com uma espécie de espanto, e não como uma compreensão normal de que é própria do ser humano a inteligência. E a questão da sensibilidade também persiste. Permanece aquela estrutura cartesiana de uma divisão entre razão e sensibilidade, em que o homem é todo razão e a mulher é toda sensibilidade. Isso não é verdadeiro. O homem também sofre, sente, chora. Essas não são prerrogativas femininas. Mesmo assim, há situações, leituras, interpretações que vivenciam esse tipo de preconceito: que a mulher chora, faz charme, faz uso de sedução para conquistar as coisas, cativar os homens. Isso, colocado de uma forma pejorativa, pouco nobre. O ser humano em geral é sensível, sedutor, inteligente, bem como bruto, terrível, agônico, violento. Não existe uma dimensão de coisa perfeita que seja de coisa de homem, ou coisa de mulher. O problema é a forma como é colocado esse tipo de coisa.

Há preconceito até contra a mulher que dirige. A violência do trânsito está evidente. E há homens que, quando veem uma mulher ao volante, buzinam, tomam atitudes pouco educadas, para dizer o mínimo. Se formos fazer uma coletânea dos ditos, anedotas, isso fica patente. É algo imenso do ponto de vista do preconceito. Infelizmente há coisas que não avançaram em várias situações. Há lugares que parece que são dados apenas ao mundo masculino. A humanidade ainda terá que caminhar e avançar muito nesse sentido, inclusive no Ocidente. Entra aí a questão dos mitos, de que atrás de todo grande homem há uma grande mulher, de que a mulher foi tirada da costela de Adão. Isso virou brincadeira, sarcasmo, e sempre se coloca a mulher em papel secundário. Acho isso desnecessário, porque homens e mulheres se completam, se amam e interagem exatamente porque são diferentes. A mulher não busca uma identidade física e emocional masculina, e nem o homem busca uma identidade física e emocional feminina. Os seres humanos buscam a felicidade, sonhos conjuntos, e nesse sentido buscam um convívio, uma partilha. Aliás, a partilha é outro desafio, dos olhares, das compreensões a partir de caminhos que se afastam e se encontram.

IHU On-Line – A filosofia é machista? Por que tão poucas mulheres são reconhecidas e respeitadas por seu pensamento, enquanto filósofas?

Cecília Pires – Essa é uma pergunta recorrente. Costumo dizer que na história da filosofia são poucas as mulheres que se apresentam e são reconhecidas como pensadoras. Se recorrermos à história da filosofia antiga, isso é quase nulo. Menciona-se a mulher de Sócrates, apenas. O que percebo é que o mundo do pensamento ficou muito associado ao mundo masculino, ao mundo do poder. Vimos toda a história da humanidade como se processou, a história da dominação masculina sobre o mundo feminino e é claro que isso se refletiu na história da igreja e da humanidade. O século XX, nesse sentido, recompôs essa situação, e as mulheres tiveram mais condições de trabalho, estudo e investigação e aí, nas universidades, abriram-se lugares para as mulheres. Contemporaneamente, não se pode dizer que existe propriamente uma discriminação das mulheres na filosofia. As mulheres estão presentes na filosofia como professoras, escritoras, investigadoras. A Unisinos é um exemplo disso. No nosso colegiado do PPG, somos em três mulheres [2]. O número de homens é maior, mas isso é uma contingência.

Em outras universidades que trabalhei onde eu era a única mulher professora de filosofia e quando me aposentei, foram feitos vários concursos e até hoje não tenho notícia de que entrou uma mulher sequer nesse local. Então, fico me perguntando se realmente não houve inscrições de candidatas mulheres. É impossível que não tenha havido, com tantas mestres e doutoras formadas nesse tempo todo. Mas fica a interrogação: por que a predominância do elemento masculino? Penso que esses espaços, contudo, estão se abrindo mais, embora também aí haja preconceito. Já tive professores enquanto eu fazia minha formação, que perguntavam “como você vai ser uma pesquisadora tendo quatro filhos?”, como se meu processo de gestação de filhos pudesse impedir meu processo de geração de conhecimento. Sempre vivi e enfrentei muito esse tipo de comentário.

Mulheres filósofas

São poucas as mulheres filósofas que o público conhece: Hannah Arendt [3], Edith Stein [4], Simone Weil [5], por conta inclusive pela forma com que algumas conseguiram chegar ao mundo público e ter suas obras recebidas, acolhidas e debatidas. Penso que daqui para frente as coisas podem ser mais profícuas, mais efervescentes. Sem dúvida, passaram-se muitos séculos de silenciamento da mulher, de renúncias. Sabemos de casos de outras universidades no Brasil onde essa questão do masculino e do feminino no mundo do pensamento ainda é conflitiva. Ouvimos falar dos embates públicos entre mulheres filósofas e homens filósofos. Eu não saberia, entretanto, dizer se isso ocorre por conta do machismo, do preconceito ideológico, das reticências culturais, da má formação compreensiva acerca do que é o humano. Talvez todas essas razões juntas poderiam identificar esse problemas.

IHU On-Line – Autores como Kant e Nietzsche demonstraram misoginia em partes de sua obra. Qual é o fundamento dessa postura, partindo de pensadores que ocupam posições tão elevadas no pensamento contemporâneo?

Cecília Pires – Penso que a misoginia desses autores é algo que não se explica pela racionalidade e pelo brilhantismo filosófico de seus pensamentos. Acredito, isso sim, que há muito um componente cultural que poderia estar atrelado talvez até a problemas pessoais desses filósofos, e tantos outros. Rousseau [6] também tem vários preconceitos relacionados à mulher, por exemplo. Tenho uma amiga que é estudiosa da questão feminina, a professora Maria da Penha Carvalho [7], da Universidade Gama Filho. Ela faz vários estudos e textos filosóficos sobre a forma como a mulher é tratada. É algo impressionante. Embora haja filósofos como Stuart Mill [8], por exemplo, que tem um excelente reconhecimento sobre o pensamento e compreensão da mulher, de sua vida como profissional. Mas essa questão pode ser atribuída a preconceito, talvez porque também nessa condição cultural e preconceituosa foi atribuído à mulher o papel de cuidar da prole e fazer todo o zelo doméstico. Com isso, ela não teria tempo para reflexão, amadurecimento, porque se envolve com outras coisas. Felizmente, participo de uma geração em que os companheiros não foram ausentes no cuidado com os filhos e o cuidado com a família com a mesma responsabilidade feminina. Mas sei se várias colegas que não conseguiram construir sua carreira de investigação e pesquisa por conta de não ter o apoio do seu companheiro.

Voltando à misoginia de Kant e Nietzsche, mesmo sem ter formação psicanalítica, penso que ela está muito ligada às suas personalidades. Nietzsche teve problemas com sua mãe, e sua irmã o oprimia. Kant viveu a vida toda sozinho, não porque não se casou, mas parece que suas relações de afeto não se consolidavam. Assim, penso que se as pessoas são mal amadas, mal resolvidas, para usar uma expressão bem popular e conhecida, elas se tornam feias por dentro, e por isso produzem uma cólera acerca do mundo, e uma ira acerca da outra parte da humanidade que não é ele mesmo.

IHU On-Line – Atualmente, no Brasil e no exterior, que expoentes femininas se destacam no campo filosófico?

Cecília Pires – No Brasil, eu destacaria Marilena Chauí [9]. Penso que ela é uma excelente pesquisadora, uma pessoa séria, comprometida politicamente e que, na realidade, talvez tenha vivido preconceito e situações machistas dentro da própria USP. Fazer filosofia é criar, não é ser repetitivo. Fazer filosofia simplesmente repetindo o que os filósofos já disseram sem um processo de acréscimo, de construção e compreensão do novo a partir das categorias já estudadas também é problemático. É evidente que não se está reconstruindo a roda e reinventando a ciência. Não podemos desconhecer o que já foi feito antes de nós, mas não podemos ser apenas repetidores das coisas já ditas e já lidas. Um dos sintomas grandes da nossa inteligência é a capacidade de criar, a partir inclusive desse caminho compartilhado que é o da ciência, da filosofia. E nesse aspecto Chauí se destaca.

Penso que hoje há várias mulheres que discutem a questão feminina, como na Espanha, México, na América Latina como um todo. No ano passado, saiu um livro, organizado por um professor cubano que vive na Alemanha, Raul Betancourt [10], que fez um estudo sobre o pensamento e o trabalho feminino na América Latina. Ele destaca várias pessoas nesse sentido. Eu comentava com o próprio autor dessa obra o quanto era singular o fato de um homem tomar essa iniciativa. Ele coloca a mim e a professora Magali de Menezes [11], da Feevale, como pessoas que tem um trabalho filosófico na América Latina, o que me honra muito.

IHU On-Line – Mulheres como Dorothy Stang [12]e Simone de Beauvoir contribuíram, cada uma do seu modo, para quebrar estereótipos e lutaram por suas causas. Como seu legado nos ajuda a compreender melhor o papel das mulheres na sociedade?

Cecília Pires – Dorothy e Simone tiveram um papel exponencial na afirmação dum feminino como projeto efetivo de liberdade. Quando Simone diz que não se nasce mulher, mas torna-se mulher, ela vai mostrar isso com a afirmação cultural do feminino. Penso que as coisas que se apresentam nesses casos são o grande enfrentamento e autonomia que elas tiveram diante de preconceitos. Várias idéias de Simone fez são atribuídas a Sartre, o que de certa forma é uma injustiça, pois se aprofundarmos e investigarmos sua vida, como venho fazendo, pois sou pesquisadora de Sartre [13], muitos insights do que ele escrevia vinham de ideias e discussões que tinha com sua companheira. O originário era muito mais dela, do que dele. Ele era a pessoa que, de certa forma, publicizava mais, pois escrevia mais, ocupava o lugar social da produção e da editoração dos seus textos.

Já a irmã Dorothy teve todo um compromisso efetivo com a questão social, dos oprimidos e vitimados. Há várias mulheres que também foram líderes, desde Madre Teresa de Calcutá [14] até líderes indígenas da América Latina. Essas pessoas mostram que, quando tomada por uma idéia, a mulher tem uma coerência quase que absoluta. Ela vai em frente, e muitas vezes viram vítimas. Esse é um legado que mostra para as gerações novas que as coisas são possíveis de serem feitas. Quando falo de que o grande desafio hoje é da paz, penso que devemos desejar a paz. Falamos muito em ética, e a grande revolução que a humanidade precisa é uma revolução ética, que deve ter como pilares a justiça e a paz. Talvez a mulher tenha um grande papel aí, superando as desigualdades, necessidades, para que possamos viver, efetivamente, num mundo de liberdade. Por que enquanto estivermos envolvidos com a necessidade, não atingimos a plenitude e a liberdade. Isso se apresenta na história dos povos de modo mais, ou menos intenso.

Notas:

[1] Dilma Vana Rousseff Linhares é economista. Foi a primeira mulher a ser nomeada ministra-chefe da Casa Civil. Foi secretária de Minas e Energia durante o governo Alceu Collares no Rio Grande do Sul e retornou ao cargo durante o governo Olívio Dutra. Hoje, Dilma também é gerente do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), plano que visa ao crescimento econômico do Brasil.

[2] O curso de filosofia da Unisinos conta hoje com as professora Cecília Pires, Anna Carolina Regner e Sofia Albornoz Stein.

[3] Hannah Arendt foi uma teórica política alemã, muitas vezes descrita como filósofa, apesar de ter recusado essa designação. Emigrou para os Estados Unidos durante a ascensão do nazismo na Alemanha e tem como sua magnum opus o livro "Origens do Totalitarismo".

[4] Edith Theresa Hedwing Stein foi uma religiosa alemã, a última de onze irmãos de uma família judia que professava o Judaísmo. Faleceu aos 51 anos asfixiada numa câmara de gás, em 1942, no campo de concentração de Auschwitz, na Polónia. Foi professora de Filosofia, sendo discípula de Edmund Husserl e secretária particular desse filósofo.

[5] Simone Adolphine Weil foi uma escritora, mística e filósofa francesa, tornou-se operária da Renault para escrever sobre o cotidiano dentro das fábricas, lutou na Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos e morreu em greve de fome, protestando contra as condições em que eram mantidos os prisioneiros de guerra na França ocupada.

[6] Jean-Jacques Rousseau foi um filósofo suíço, escritor e teórico político. Uma das figuras marcantes do Iluminismo francês, Rousseau é também um precursor do romantismo. Ao defender que todos os homens nascem livres, e a liberdade faz parte da natureza do homem, Rousseau inspirou todos os movimentos que buscaram uma busca pela liberdade. Inclui-se aí as Revoluções Liberais, o Marxismo e o Anarquismo.

[7] Maria da Penha Maia Fernandes é uma biofarmacêutica brasileira que lutou para que seu agressor viesse a ser condenado. Com 60 anos e três filhas, hoje ela é líder de movimentos de defesa dos direitos das mulheres, vítima emblemática da violência doméstica.

[8] John Stuart Mill foi um filósofo e economista inglês, e um dos pensadores liberais mais influentes do século XIX. Foi um defensor do utilitarismo, a teoria ética proposta inicialmente por seu padrinho Jeremy Bentham.

[9] Marilena de Sousa Chaui é uma historiadora de filosofia. Professora de Filosofia Política e História da Filosofia Moderna da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

[10] O filósofo e teólogo cubano Raúl Fornet-Betancourt é figura de ponta da filosofia da libertação latinoamericana, professor na Universidade de Bremen e professor honorário de filosofia na Universidade de Aachen, diretor do Departamento Latino-americano do Istituto de Missionologia de Aachen, Alemanha.

[11] Magali de Menezes é uma filósofa brasileira.

[12] Dorothy Mae Stang foi uma religiosa estadunidense naturalizada brasileira. Pertencia às Irmãs de Nossa Senhora de Namur, congregação religiosa fundada em 1804 por Santa Julie Billiart e Françoise Blin de Bourdon. Dorothy estava presente na Amazônia desde a década de setenta junto aos trabalhadores rurais da Região do Xingu. Sua atividade pastoral e missionária buscava a geração de emprego e renda com projetos de reflorestamento em áreas degradadas, junto aos trabalhadores rurais da área da rodovia Transamazônica. Seu trabalho focava-se também na minimização dos conflitos fundiários na região. Foi assassinada, com seis tiros, um na cabeça e cinco ao redor do corpo, aos 73 anos de idade, no dia 12 de fevereiro de 2005 em uma estrada de terra de difícil acesso, à 53 quilômetros da sede do município de Anapu, no Pará.

[13] Jean-Paul Charles Aymard Sartre foi um filósofo francês, escritor e crítico, conhecido representante do existencialismo. Acreditava que os intelectuais têm de desempenhar um papel ativo na sociedade. Era um artista militante, e apoiou causas políticas de esquerda com a sua vida e a sua obra.

[14] Madre Teresa de Calcutá foi uma missionária católica albanesa, nascida na República da Macedônia e naturalizada indiana beatificada pela Igreja Católica. Considerada a missionária do século XX, concretizou o projeto de apoiar e recuperar os desprotegidos na Índia. Através da sua congregação "Missionárias da Caridade", partiu em direção à conquista de um mundo que acabou rendido ao seu apelo de ajudar o mais pobre dos pobres.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Foucault

"Foucault" in Huísman (D.) ed., Dictionnaire des philosophes, Paris, PUF, 1984, t.I,ps. 942-944.

No início da década de 1980, Denis Huísman propôs a F. Ewald redigir o verbete que seria dedicado a Foucault no Dictionnaires des philosophes, que ele proparava para as Presses Universitaires de France. Edwald, na época assistente de M. Foucault no Collège de France, fez o convite a este último. Foucault havia redigido na época uma primeira versão do volume II da História da sexualidade, que ele considerava precisar ser mais trabalhada. Uma parte da introdução que ele havia redigido para essa obra era uma apresentação retrospectiva do seu trabalho. Foi este o texto entregue a Denis Huísman, complementado por uma curta apresentação e uma bibliografia. Combinou-se que ele seria assinado por "Maurece Florence", que resultava na evidante abreviação "M.F.". Assim ele foi publicado. Aqui figura apenas o texto redigido por Michel Foucault.

{Se Foucault está inscrito na tradição filosófica, é certamente na tradição crítica de Kant, e seria possível} nomear sua obra História crítica do pensamento. Ela não deveria ser entendida como uma história das ideias que fosse simultaneamente uma análise dos erros que poderiam ser posteriormente avaliados; ou uma decifração dos desconhecimentos aos quais elas estão ligados e dos quais poderiam depender o que pensamos hoje em dia. Se por pensamento se entende o ato que coloca, em suas diversas relações possíveis, um sujeito e um objeto, uma história crítica do pensamento seria uma análise das condições nas quais se formaram ou se modificaram certas relações do sujeito com o objeto, uma vez que estas são constitutivas de um saber possível.

Não se trata de definir as condições formais de uma relação com o objeto: também não se trata de destacar as condições empíricas que puderam em um dado momento permitir ao sujeito em geral tomar conhecimento de um objeto já dado no real. A questão é determinar o que deve ser o sujeito, a que condições ele está submetido, qual o seu status, que posição deve ocupar no real ou no imaginário para se tornar sujeito legítimo deste ou daquele tipo de conhecimento: em suma, trata-se de determinar seu modo de "subjetivação"; pois este não é evidentemente o mesmo quando o conhecimento em pauta tem a forma de exegese de um texto sagrado, de uma observação de história natural ou de análise do comportamento de um doente mental.

Mas a questão é também e ao mesmo tempo determinar em que condições alguma coisa pôde se tornar objeto para um conhecimento possível, como ela pôde ser problematizada como objeto a ser conhecido, a que procedimento de recorte ela pôde ser submetida, que parte dela própria foi considerada pertinente. Trata-se, portanto, de determinar seu modo de objetivação, que tampouco é o mesmo de acordo com o tipo de saber em pauta.

Essa objetivação e essa subjetivação não são independentes uma da outra; do seu desenvolvimento mútuo e de sua ligação recíproca se originam o que se poderia chamar de "jogos de verdade": ou seja, não a descoberta das coisas verdadeiras, mas as regras segundo as quais, a respeito de certas coisas, aquilo que um sujeito pode dizer decorre da questão do verdadeiro e do falso. Em suma, a história crítica do pensamento não é uma história das aquisições nem das ocultações da verdade; é a história da emergência dos jogos de verdade: é a história das "veridicções", entendidas como as formas pelas quais se articulam, sobre um campo de coisas, discursos capazes de serem ditos verdadeiros ou falsos: quais foram as condições dessa emergência, o preço com o qual, de qualquer forma, ela foi paga, seus efeitos no real e a maneira pela qual, ligando um certo tipo de objeto a certas modalidade do sujeito, ela constituiu, por um tempo, uma área e determinados indivíduos, o a priori histórico de uma experiência possível.

Ora, essa questão - ou esta série de questões - que é a de uma "arqueologia do saber", Michel Foucault não a propôs e não gostaria de propô-la a respeito de qualquer jogo de verdade. Mas somente a respeito daqueles em que o próprio sujeito é colocado como objeto de saber possível: quais são os processos de subjetivação e de objetivação que fazem com que o sujeito possa se tornar, na qualidade de sujeito, objeto de conhecimento. Não se trata certamente de saber como se constitui durante a história um "conhecimento psicológico", mas como se formaram diversos jogos de verdade através dos quais o sujeito se tornou objeto de conhecimento.

Michel Foucault tentou inicialmente conduzir essa análise de duas maneiras. A respeito do aparecimento e da inserção, em domínios e segundo a forma de um conhecimento com status científico, da questão do sujeito que fala, trabalha e vive; tratava-se então da formação de algumas "ciências humanas", cujo estudo tinha como referência a prática das ciências empíricas e de seus discursos, característica dos séculos XVII e XVIII (As palavras e as coisas). Michel Foucault também tentou analisar a constituição do sujeito como ele pode aparecer do outro lado de uma divisão normativa e se tornar objeto de conhecimento - na qualidade de louco, de doente ou de delinquente: e isso através de práticas como as da psiquiatria, da medicina clínica e da penalidade (História da loucura, O nascimento da clínica, Vigiar e punir).

Michel Foucault tenta agora, sempre dentro do mesmo projeto geral, estudar a constituição do sujeito como objeto para ele próprio: a formação dos procedimentos pelos quais o sujeito é levado a se observar, se analisar, se decifrar e se reconhecer como campo de saber possível. Trata-se, em suma, da história da "subjetividade", se entendermos essa palavra como a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo. A questão do sexo e da sexualidade pareceu constituir para Michel Foucault não, certamente, o único exemplo possível, mas pelo menos um caso bastante privilegiado: é efetivamente a esse respeito que, através de todo o cristianismo e talvez mais além, os indivíduos foram chamados a se reconhecerem como sujeitos de prazer, de desejo, de concupiscência, de tentação e, por diversos meios (exame de si, exercícios espirituais, reconhecimento de culpa, confissão), foram solicitados a desenvolver, a respeito deles mesmos e do que constitui a parte mais secreta, mais individual de sua subjetividade, o jogo do verdadeiro e do falso. Trata-se, em suma, nessa história da sexualidade, de constituir uma terceira parte: ela vem somar-se às análises das relações entre sujeito e verdade ou, mais precisamente, ao estudo dos modos pelos quais o sujeito pôde ser inserido como objeto nos jogos de verdade.

Tomar como fio condutor de todas essas análises a questão das relações entre sujeito e verdade implica certas escolhas de método. E, inicialmente, um ceticismo sistemático em relação a todos os universais antropológicos, o que não significa que todos eles sejam rejeitados de início, em bloco e de uma vez por todas, mas que nada dessa ordem deve ser admitido que não seja rigorosamente indispensável; tudo o que nos é proposto em nosso saber, como sendo de validade universal quanto à natureza humana ou às categorias que se podem aplicar ao sujeito exige ser experimentado e analisado: recusar o "universal" da loucura, da "delinquência" ou da "sexualidade" não significa que aquilo a que essas noções se referem não seja nada ou que elas não passem de fantasias inventadas pela necessidade de uma causa duvidosa; é, portanto, bem mais do que a simples constatação de que seu conteúdo varia com o tempo e as circunstâncias; é se interrogar sobre as condições que permitem, conforme as regras do dizer verdadeiro ou falso, reconhecer um sujeito como doente mental ou fazer com que um sujeito reconheça a parte mais essencial dele próprio na modalidade do seu desejo sexual.

A primeira regra de método para esse tipo de trabalho é, portanto, esta: contornar tanto quanto possível, para interrogá-los em sua constituição histórica, os universais antropológicos (e também, certamente, os de um humanismo que defenderia os direitos, os privilégios e a natureza de um ser humano como verdade imediata e atemporal do sujeito). Também é preciso inverter o procedimento filosófico de remontar ao sujeito constituinte, do qual se exige dar conta do que pode ser todo objeto de conhecimento em geral; trata-se, pelo contrário, de descer ao estudo das práticas concretas pelas quais o sujeito é constituído na imanência de um campo de conhecimento. Sobre isso, é também preciso estar atento: recusar o recurso filosófico a um sujeito constituinte não significa fazer como se o sujeito não existisse e se abstrair dele em benefício de uma objetividade pura; essa recusa visa a fazer aparecer os processos próprios a uma experiência em que o sujeito e o objeto "se formam e se transformam" um em relação ao outro e em função do outro. Os discursos da doença mental, da delinquência ou da sexualidade só dizem o que é o sujeito dentro de um certo jogo muito particular de verdade; mas esses jogos não são impostos de fora para o sujeito, de acordo com uma causalidade necessária ou determinações estruturais; eles abrem um campo de experiência em que sujeito e objeto são ambos constituídos apenas em certas condições simultâneas, mas que não param de se modificar um em relação ao outro, e, portanto , de modificar esse mesmo campo de experiência.

Daí um terceiro princípio de método: dirigir-se como campo de análise às "práticas", abordar o estudo pelo viés do que "se fazia". Assim, o que se fazia com os loucos, os dilinquentes e os doentes? É possível, certamente, tentar deduzir, a partir da representação que se fazia deles e dos conhecimentos que se acreditava ter sobre eles, as instituições nas quais eles eram colocados e os tratamentos aos quais eram submetidos; é também possível investigar qual era a forma das "verdadeiras" doenças mentais e as modalidades de delinquênica real em uma época dada para explicar aquilo que então se pensava. Michel Foucault aborda as coisas de uma maneira totalmente diferente. Estuda, inicialmente, o conjunto das maneiras de fazer mais ou menos regradas, mais ou menos pensadas, mais ou menos acabadas através das quais se delineia simultaneamente o que constituía o real para aqueles que procuram pensá-lo e dominá-lo, e a maneira como aqueles se constituíam como sujeitos capazes de conhecer, analisar e eventualmente modificar o real. São as "práticas" concebidas ao mesmo tempo como modo de agir e de pensar que dão a chave de inteligibilidade para a constituição correlativa do sujeito e do objeto.

Ora, a partir do momento em que, através dessas práticas, estava em pauta estudar os diferentes modos de objetivação do sujeito, compreende-se a importância que deve ter a análise das relações de poder. Mas ainda é preciso, certamente, definir o que pode e o que pretende ser uma análise desse tipo. Não se trata evidentemente de interrogar o "poder" sobre sua origem, seus princípios ou seus limites legítimos, mas de estudar os procedimentos e as técnicas utilizadas nos diferentes contextos institucionais, para atuar sobre o comportamento dos indivíduos tomados isoladamente ou em grupo, para formar, dirigir, modificar sua maneira de se conduzir, para impor finalidades à sua inação ou inscrevê-la nas estratégias de conjunto, consequentemente múltiplas em sua forma e em seu local de atuação; diversas da mesma forma nos procedimentos e técnicas que elas fazem funcionar: essas relações de poder caracterizam a maneira como os homens são "governados" uns pelos outros; e sua análise mostra de que modo, através de certas formas de "governo", dos loucos, dos doentes, dos criminosos etc., foi objetivado o sujeito louco, doente, delinquente. Tal análise não significa dizer que o abuso de tal ou tal poder produziu loucos, doentes ou criminosos ali onde nada havia, mas que as formas diverssa e particulares de "governo" dos indivíduos foram determinantes nos diferentes modos de objetivação do sujeito.

Verifica-se como o tema de uma "história da sexualidade" pode se inscrever dentro do projeto geral de Michel Foucault: trata-se de analisar a "sexualidade" como um modo de experiência historicamente singular, no qual o sujeito é objetivado para ele próprio e para os outros, através de certos procedimentos precisos de "governo".

Maurice Florence

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