sexta-feira, 6 de março de 2009

Foucault

"Foucault" in Huísman (D.) ed., Dictionnaire des philosophes, Paris, PUF, 1984, t.I,ps. 942-944.

No início da década de 1980, Denis Huísman propôs a F. Ewald redigir o verbete que seria dedicado a Foucault no Dictionnaires des philosophes, que ele proparava para as Presses Universitaires de France. Edwald, na época assistente de M. Foucault no Collège de France, fez o convite a este último. Foucault havia redigido na época uma primeira versão do volume II da História da sexualidade, que ele considerava precisar ser mais trabalhada. Uma parte da introdução que ele havia redigido para essa obra era uma apresentação retrospectiva do seu trabalho. Foi este o texto entregue a Denis Huísman, complementado por uma curta apresentação e uma bibliografia. Combinou-se que ele seria assinado por "Maurece Florence", que resultava na evidante abreviação "M.F.". Assim ele foi publicado. Aqui figura apenas o texto redigido por Michel Foucault.

{Se Foucault está inscrito na tradição filosófica, é certamente na tradição crítica de Kant, e seria possível} nomear sua obra História crítica do pensamento. Ela não deveria ser entendida como uma história das ideias que fosse simultaneamente uma análise dos erros que poderiam ser posteriormente avaliados; ou uma decifração dos desconhecimentos aos quais elas estão ligados e dos quais poderiam depender o que pensamos hoje em dia. Se por pensamento se entende o ato que coloca, em suas diversas relações possíveis, um sujeito e um objeto, uma história crítica do pensamento seria uma análise das condições nas quais se formaram ou se modificaram certas relações do sujeito com o objeto, uma vez que estas são constitutivas de um saber possível.

Não se trata de definir as condições formais de uma relação com o objeto: também não se trata de destacar as condições empíricas que puderam em um dado momento permitir ao sujeito em geral tomar conhecimento de um objeto já dado no real. A questão é determinar o que deve ser o sujeito, a que condições ele está submetido, qual o seu status, que posição deve ocupar no real ou no imaginário para se tornar sujeito legítimo deste ou daquele tipo de conhecimento: em suma, trata-se de determinar seu modo de "subjetivação"; pois este não é evidentemente o mesmo quando o conhecimento em pauta tem a forma de exegese de um texto sagrado, de uma observação de história natural ou de análise do comportamento de um doente mental.

Mas a questão é também e ao mesmo tempo determinar em que condições alguma coisa pôde se tornar objeto para um conhecimento possível, como ela pôde ser problematizada como objeto a ser conhecido, a que procedimento de recorte ela pôde ser submetida, que parte dela própria foi considerada pertinente. Trata-se, portanto, de determinar seu modo de objetivação, que tampouco é o mesmo de acordo com o tipo de saber em pauta.

Essa objetivação e essa subjetivação não são independentes uma da outra; do seu desenvolvimento mútuo e de sua ligação recíproca se originam o que se poderia chamar de "jogos de verdade": ou seja, não a descoberta das coisas verdadeiras, mas as regras segundo as quais, a respeito de certas coisas, aquilo que um sujeito pode dizer decorre da questão do verdadeiro e do falso. Em suma, a história crítica do pensamento não é uma história das aquisições nem das ocultações da verdade; é a história da emergência dos jogos de verdade: é a história das "veridicções", entendidas como as formas pelas quais se articulam, sobre um campo de coisas, discursos capazes de serem ditos verdadeiros ou falsos: quais foram as condições dessa emergência, o preço com o qual, de qualquer forma, ela foi paga, seus efeitos no real e a maneira pela qual, ligando um certo tipo de objeto a certas modalidade do sujeito, ela constituiu, por um tempo, uma área e determinados indivíduos, o a priori histórico de uma experiência possível.

Ora, essa questão - ou esta série de questões - que é a de uma "arqueologia do saber", Michel Foucault não a propôs e não gostaria de propô-la a respeito de qualquer jogo de verdade. Mas somente a respeito daqueles em que o próprio sujeito é colocado como objeto de saber possível: quais são os processos de subjetivação e de objetivação que fazem com que o sujeito possa se tornar, na qualidade de sujeito, objeto de conhecimento. Não se trata certamente de saber como se constitui durante a história um "conhecimento psicológico", mas como se formaram diversos jogos de verdade através dos quais o sujeito se tornou objeto de conhecimento.

Michel Foucault tentou inicialmente conduzir essa análise de duas maneiras. A respeito do aparecimento e da inserção, em domínios e segundo a forma de um conhecimento com status científico, da questão do sujeito que fala, trabalha e vive; tratava-se então da formação de algumas "ciências humanas", cujo estudo tinha como referência a prática das ciências empíricas e de seus discursos, característica dos séculos XVII e XVIII (As palavras e as coisas). Michel Foucault também tentou analisar a constituição do sujeito como ele pode aparecer do outro lado de uma divisão normativa e se tornar objeto de conhecimento - na qualidade de louco, de doente ou de delinquente: e isso através de práticas como as da psiquiatria, da medicina clínica e da penalidade (História da loucura, O nascimento da clínica, Vigiar e punir).

Michel Foucault tenta agora, sempre dentro do mesmo projeto geral, estudar a constituição do sujeito como objeto para ele próprio: a formação dos procedimentos pelos quais o sujeito é levado a se observar, se analisar, se decifrar e se reconhecer como campo de saber possível. Trata-se, em suma, da história da "subjetividade", se entendermos essa palavra como a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo. A questão do sexo e da sexualidade pareceu constituir para Michel Foucault não, certamente, o único exemplo possível, mas pelo menos um caso bastante privilegiado: é efetivamente a esse respeito que, através de todo o cristianismo e talvez mais além, os indivíduos foram chamados a se reconhecerem como sujeitos de prazer, de desejo, de concupiscência, de tentação e, por diversos meios (exame de si, exercícios espirituais, reconhecimento de culpa, confissão), foram solicitados a desenvolver, a respeito deles mesmos e do que constitui a parte mais secreta, mais individual de sua subjetividade, o jogo do verdadeiro e do falso. Trata-se, em suma, nessa história da sexualidade, de constituir uma terceira parte: ela vem somar-se às análises das relações entre sujeito e verdade ou, mais precisamente, ao estudo dos modos pelos quais o sujeito pôde ser inserido como objeto nos jogos de verdade.

Tomar como fio condutor de todas essas análises a questão das relações entre sujeito e verdade implica certas escolhas de método. E, inicialmente, um ceticismo sistemático em relação a todos os universais antropológicos, o que não significa que todos eles sejam rejeitados de início, em bloco e de uma vez por todas, mas que nada dessa ordem deve ser admitido que não seja rigorosamente indispensável; tudo o que nos é proposto em nosso saber, como sendo de validade universal quanto à natureza humana ou às categorias que se podem aplicar ao sujeito exige ser experimentado e analisado: recusar o "universal" da loucura, da "delinquência" ou da "sexualidade" não significa que aquilo a que essas noções se referem não seja nada ou que elas não passem de fantasias inventadas pela necessidade de uma causa duvidosa; é, portanto, bem mais do que a simples constatação de que seu conteúdo varia com o tempo e as circunstâncias; é se interrogar sobre as condições que permitem, conforme as regras do dizer verdadeiro ou falso, reconhecer um sujeito como doente mental ou fazer com que um sujeito reconheça a parte mais essencial dele próprio na modalidade do seu desejo sexual.

A primeira regra de método para esse tipo de trabalho é, portanto, esta: contornar tanto quanto possível, para interrogá-los em sua constituição histórica, os universais antropológicos (e também, certamente, os de um humanismo que defenderia os direitos, os privilégios e a natureza de um ser humano como verdade imediata e atemporal do sujeito). Também é preciso inverter o procedimento filosófico de remontar ao sujeito constituinte, do qual se exige dar conta do que pode ser todo objeto de conhecimento em geral; trata-se, pelo contrário, de descer ao estudo das práticas concretas pelas quais o sujeito é constituído na imanência de um campo de conhecimento. Sobre isso, é também preciso estar atento: recusar o recurso filosófico a um sujeito constituinte não significa fazer como se o sujeito não existisse e se abstrair dele em benefício de uma objetividade pura; essa recusa visa a fazer aparecer os processos próprios a uma experiência em que o sujeito e o objeto "se formam e se transformam" um em relação ao outro e em função do outro. Os discursos da doença mental, da delinquência ou da sexualidade só dizem o que é o sujeito dentro de um certo jogo muito particular de verdade; mas esses jogos não são impostos de fora para o sujeito, de acordo com uma causalidade necessária ou determinações estruturais; eles abrem um campo de experiência em que sujeito e objeto são ambos constituídos apenas em certas condições simultâneas, mas que não param de se modificar um em relação ao outro, e, portanto , de modificar esse mesmo campo de experiência.

Daí um terceiro princípio de método: dirigir-se como campo de análise às "práticas", abordar o estudo pelo viés do que "se fazia". Assim, o que se fazia com os loucos, os dilinquentes e os doentes? É possível, certamente, tentar deduzir, a partir da representação que se fazia deles e dos conhecimentos que se acreditava ter sobre eles, as instituições nas quais eles eram colocados e os tratamentos aos quais eram submetidos; é também possível investigar qual era a forma das "verdadeiras" doenças mentais e as modalidades de delinquênica real em uma época dada para explicar aquilo que então se pensava. Michel Foucault aborda as coisas de uma maneira totalmente diferente. Estuda, inicialmente, o conjunto das maneiras de fazer mais ou menos regradas, mais ou menos pensadas, mais ou menos acabadas através das quais se delineia simultaneamente o que constituía o real para aqueles que procuram pensá-lo e dominá-lo, e a maneira como aqueles se constituíam como sujeitos capazes de conhecer, analisar e eventualmente modificar o real. São as "práticas" concebidas ao mesmo tempo como modo de agir e de pensar que dão a chave de inteligibilidade para a constituição correlativa do sujeito e do objeto.

Ora, a partir do momento em que, através dessas práticas, estava em pauta estudar os diferentes modos de objetivação do sujeito, compreende-se a importância que deve ter a análise das relações de poder. Mas ainda é preciso, certamente, definir o que pode e o que pretende ser uma análise desse tipo. Não se trata evidentemente de interrogar o "poder" sobre sua origem, seus princípios ou seus limites legítimos, mas de estudar os procedimentos e as técnicas utilizadas nos diferentes contextos institucionais, para atuar sobre o comportamento dos indivíduos tomados isoladamente ou em grupo, para formar, dirigir, modificar sua maneira de se conduzir, para impor finalidades à sua inação ou inscrevê-la nas estratégias de conjunto, consequentemente múltiplas em sua forma e em seu local de atuação; diversas da mesma forma nos procedimentos e técnicas que elas fazem funcionar: essas relações de poder caracterizam a maneira como os homens são "governados" uns pelos outros; e sua análise mostra de que modo, através de certas formas de "governo", dos loucos, dos doentes, dos criminosos etc., foi objetivado o sujeito louco, doente, delinquente. Tal análise não significa dizer que o abuso de tal ou tal poder produziu loucos, doentes ou criminosos ali onde nada havia, mas que as formas diverssa e particulares de "governo" dos indivíduos foram determinantes nos diferentes modos de objetivação do sujeito.

Verifica-se como o tema de uma "história da sexualidade" pode se inscrever dentro do projeto geral de Michel Foucault: trata-se de analisar a "sexualidade" como um modo de experiência historicamente singular, no qual o sujeito é objetivado para ele próprio e para os outros, através de certos procedimentos precisos de "governo".

Maurice Florence

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