segunda-feira, 29 de junho de 2009

Stefano Catucci

Foucault, 25 anos depois


Sair do mundo na ponta dos pés foi a escolha do filósofo francês contra as pretensões espetaculares de uma sociedade do controle. O curso terminado três anos antes de morrer mostra uma clara oposição à tentativa de transformar a sua pesquisa em um corpo de doutrinas. Apesar disso, seu pensamento corre o risco de ser cristalizado em alguns conceitos-chave: biopolítica, cuidado de si, governamentalidade, estética da existência. Há 25 anos, no momento em que Michel Foucault concluía o curso "Le courage de la vérité", nenhum dos seus ouvintes no Collège de France imaginava que esse seria o último. Aidético, Foucault havia postergado o início do curso, começando em fevereiro, e não em janeiro, como de hábito, mas durante as lições nunca havia dado sinais de cansaço. Muitas vezes, havia até prolongado em uma dezena de minutos o horário previsto e justamente naqueles momentos havia tentado algo a mais com relação à reconstrução genealógica da noção grega de parrésia, o "falar-franco" que era o objeto do curso. A reportagem é de Stefano Catucci, publicada no jornal Il Manifesto, 25-06-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS


No dia 29 de março de 1984, por exemplo, nos dez minutos suplementares, Foucault havia esboçado uma linha de pesquisa que leva da antiguidade aos nossos dias, redescobrindo a persistência da parrésia nos movimentos ascetas da Idade Média, na prática revolucionária do século XX, enfim, na arte moderna. A exigência artística de colocar a vida "a nu" era então apresentada por Foucault como a versão extrema de uma forma de vida que ia contra a história da filosofia ocidental, mas que os historiadores removeram: a de uma verdade cuja afirmação arrisca ferir os contemporâneos e se baseia, por isso, na coragem de desafiar suas consequências, sejam elas o isolamento, a incompreensão ou até a morte.

Só duas vezes, no curso, Foucault manifesta a necessidade de interromper sem seguir até o fim o texto escrito que havia preparado (reproduzido por Frédéric Gros no aparato crítico da edição publicada na França há alguns meses).

As últimas palavras

A primeira lamenta uma febre; a segunda, a falta de tempo: é a última lição, e são as últimas palavras pronunciadas por ele na sala 08 do edifício na Rue de l'Université: Ainda tenho coisas a dizer sobre o quadro geral dessas análises. Mas é muito tarde. Então, obrigado. Palavras óbvias, banais, como sempre são ditas no fim de um curso, em nada comparáveis ao simbolismo enigmático da última frase de Sócrates, comentada longamente por Foucault naquelas semanas (Críton, devemos um galo a Esculápio. Paga a dívida, não te esqueças). Porém, palavras que a morte de Foucault enche, inevitavelmente, de significado: não houve mais tempo depois daquele momento, e isso que ele ainda tinha a dizer permaneceu em suspenso, indeterminado, tornando-se, às vezes, menos vago justamente a partir das leituras dos cursos publicados, mas paradoxalmente voltado a se cristalizar em torno a um núcleo doutrinário formado por uma série de conceitos-chave: biopolítica, cuidado de si, governamentalidade, estética da existência.

É difícil entender o quanto ele era consciente da sua doença. Na cronologia redigida por Daniel Defert para a edição francesa dos "Dits et écrits" (1994), lê-se que, nos últimos meses de 1983, ele tinha a suspeita de ter contraído Aids, mas que, no começo do ano novo, um robusto tratamento de antibióticos tinha restituído sua energia e seu bom humor, permitindo-lhe programar o início do curso e jogando fora os seus temores. Já em março, porém, frente às hesitações dos médicos, Foucault pareceu se render: não pedia um diagnóstico que, de resto, não lhe seria dado, e não tinha outra pergunta senão a que se referia ao tempo que lhe restava.

Alguns meses antes, ele havia começado a traduzir junto com Martin Ziegler um ensaio de Norbert Elias,"Die Einsamkeit des Sterbendes" ["Solidão dos Moribundos", editora Jorge Zahar, 2001], e a morte, o modo de enfrentá-la segundo as características de uma vida filosófica, também estaria no centro das suas lições, dando a elas, retrospectivamente, uma entonação testamentária. Alguns de seus amigos mais próximos não ousavam dirigir-lhe perguntas diretas, mas procuravam arrancar-lhe, talvez obliquamente, uma explicação.

Uma existência ética

Paul Veyne, muito próximo de Foucault, também como consultor para os seus estudos sobre o mundo antigo, perguntou-lhe se, como histórico da medicina, ele considerava que a Aids fosse verdadeiramente uma doença, ou não até uma lenda moralizadora. Ela existe de verdade, respondeu Foucault, não é uma lenda, e acrescentou ter enfrentado a fundo a questão. Porém, outras palavras não foram gastas por ele sobre o assunto, e o romance "Ao amigo que não me salvou a vida" [Editora Livros do Brasil, 1993] de Hervé Guibert, publicado em 1990, permite pensar que havia uma relação de pouca ou remota consciência com o mal que o afligia.

Paul Veyne se lembra ainda de ter tido um diálogo com ele naqueles meses a propósito das pesquisas de Philippe Ariès sobre as cerimônias fúnebres da Idade Média; Prefiro, teria dito Foucault, a tristeza doce da morte a qualquer tipo de cerimônia. Quase como se a única tarefa a ser realizada fosse o de dar sentido à morte, de torná-la bela, sem nenhum resto a ser consumado ritualmente.

No último curso, Foucault toca frequentemente o problema de uma beleza mais ligada à vida, à existência, e, consequentemente, também à morte, e não ao campo daquelas práticas tão caras ao Ocidente moderno e identificadas, desde o Renascimento em diante, com a obra de arte. Seria preciso escrever, dizia, uma história da existência como objeto de elaboração e de percepção estética, problema delineado claramente no pensamento grego, mas sucessivamente recoberto por uma outra beleza, aquela que a modernidade atribuiu em via exclusiva "às coisas e às palavras".

Foucault não teve tempo para escrevê-la, nós não tivemos a possibilidade de espiar os seus traços no silêncio que acompanhou o seu fim. Em 1978, lembra Daniel Defert, Foucault havia evocado o jogo do saber e do silêncio que o doente aceita para permanecer dono da sua relação secreta com a própria morte. Vinte e cinco anos depois da sua morte, o fato de ter mantido o segredo sobre essa relação é ainda razão de escândalo para muitos que teriam preferido vê-lo levantar-se publicamente em testemunho, justamente como Hervé Guibert faria alguns anos depois.

Porém, a exposição de si era uma técnica que Foucault tinha analisado nos textos e nas práticas do cristianismo primitivo, uma reprodução ritual do martírio muito distante da visão da existência que Foucault ligava à beleza, na qual não só a autonomia ética, mas também a conservação possessiva de uma margem de segredo, de opacidade ao olhar alheio, desempenham um papel fundamental.

Em uma série de conferências ainda inéditas, pronunciadas em 1981 na Universidade Católica de Louvain ("Mal faire, vrai dire"), Foucault havia encontrado no "De pudicitia", de Tertuliano, uma teorização completa daquele modo de se expor diante da comunidade que, em latim, se dizia "publicatio sui", uma maneira de teatralizar a penitência por meio de um ato de mortificação, a oferta ao público do próprio estatuto de pecador.

Mata-se em si esse mundo de morte que não se queria deixar pecando, comenta Foucault. Mostra-se, por isso, que se está: morto para o pecado e pronto para morrer para não pecar mais. Se essas observações são confrontadas com as que, anos antes, no curso intitulado "Os anormais" (1975), ele havia dedicado à questão do segredo, compreende-se a insensibilidade filosófica de Foucault, portanto não apenas pessoal ou idiossincrática, que manifesta a sua doença, independentemente do quanto ele estivesse ou quisesse estar consciente dela.

A invisibilidade, a morte, o silêncio se tornam, assim, a representação de um comportamento que não quer comerciar a sua singularidade como caso exemplar, não quer se colocar como "guia" intelectual ou moral, nem mesmo no ato da morte, como se o fato de sair do mundo na ponta dos pés, mais do que em pompa magna, fosse um modo para se eximir das pretensões espetaculares de uma sociedade do controle.

Na origem do modelo panóptico do poder – ele havia explicado em "Vigiar e punir" –, esteve, no século XVII, a experiência do palácio que Le Vaux havia construído em Versalhes para Luís XV, no qual os animais foram, pela primeira vez, encerrados em gaiolas colocadas ao redor de um salão do qual o rei podia observá-los. O poder moderno é um desenvolvimento desse modelo naturalista. O Panopticon é um palácio onde o animal é substituído pelo homem; o reagrupamento das espécies, pela distribuição individual; o rei, pelo aparato de um poder furtivo. Tornar-se invisível torna-se um princípio de resistência. No dia seguinte à sua morte, o jornal Le Monde revelou ser justamente Foucault o filósofo que, em 1980, havia exigido o anonimato como condição para a publicação de uma entrevista ("O filósofo mascarado").

De todos os modos, muito mais do que o silêncio com o qual ele envolveu os seus últimos dias, o que continua fazendo barulho, um quarto de século depois da sua morte, é o pensamento de Foucault, o rigor de uma atitude crítica transformado em forma de vida e conscientemente reivindicado como tal. O curso terminado três meses antes de morrer mostra com evidência a sua clara oposição à tentativa de transformar a sua pesquisa em um corpo de doutrinas.

Foucault, pelo contrário, retoma um projeto de filosofia crítica, dando-lhe um acento novo, devido à incorporação daquilo que ele chama de uma "atitude parresiástica". Se a partir da sua fundação em Sócrates e em Platão o discurso filosófico nunca coloca uma pergunta sobre a verdade sem se interrogar, ao mesmo tempo, sobre a ética e sobre a política, sobre o governo e sobre as práticas e subjetivação, então, afirma Foucault, podem-se distinguir na história atitudes filosóficas muito diversas entre si.

A alucinação de Paul Veyne

Há uma "atitude profética" que consiste em superar o limite do presente e em prometer a reconciliação que ocorrerá entre a verdade, a política e a ética. Há uma "sabedoria filosófica" que afirma a unidade fundamental desses três âmbitos, e, simetricamente, uma "atitude técnica" que tende, pelo contrário, a definir a sua separação irredutível: de um lado, as condições formais da verdade, da lógica; de outro, as melhores formas para o exercício do poder; de outro ainda, os princípios da conduta moral.

Diante dessas linhas de desenvolvimento da filosofia, a "atitude parresiástica" se distingue porque reconduz – "obstinadamente e sempre recomeçando do início" – o problema da verdade ao das suas "condições políticas" e ao da "diferenciação ética"; o problema do poder à "sua relação com a verdade e com o saber de um lado, e ao da diferenciação ética do outro"; a questão do sujeito moral ao "do discurso verdadeiro no qual tal sujeito se constitui e das relações de poder nas quais ele se forma".

É nesse nível, como nota Frédéric Gros, que Foucault dá a sua contribuição, e é por isso que, diante de quem lamenta a falta de uma "verdadeira" filosofia do conhecimento, ou de uma "verdadeira" moral no seu pensamento, pode-se responder, como faz Gros: "por sorte", porque a sua ideia é a de não concebê-las como âmbitos autônomos, justapostos, a serem exauridas de modo metódico e isolado, mas como nós de uma rede que se caracteriza pela reciprocidade das suas relações.

O dia em que Foucault morreu, Paul Veyne conta ter tido uma alucinação. As últimas notícias não eram boas, os médicos da Salpêtrière, onde ele estava internado, não sabiam mais o que fazer. A única consolação havia sido receber no hospital as primeiras cópias dos seus novos livros, "O uso dos prazeres" e "O cuidado de si". Na estrada, Veybe é ultrapassado em grande velocidade por um carro que ele não reconhece logo por aquilo que era: um carro fúnebre. Quem o dirigia era justamente Foucault: Veyne o vê dirigindo-lhe um sorriso logo antes de se dar conta de que estava sonhando de olhos abertos. A visão, no entanto, "tinha a engenhosidade alegórica dos sonhos próximos do momento do despertar". Foucault estava indo aonde todos iremos, mas a sua inteligência superava todos nós com a elegância de uma última ultrapassagem. Vinte e cinco anos depois, toda vez que o lemos, sempre temos a impressão de que ele ainda não deixou de nos superar em velocidade.

Passagens da vida e das obras de Foucault

Filósofo, arqueólogo dos saberes, ensaísta literário, professor no Collège de France, entre os grandes pensadores do século XX, Foucault foi o único que realizou o projeto histórico-genealógico idealizado por Nietzsche, que indicava que ainda faltava uma história da loucura, do crime e do sexo. Foucault, com efeito, estudou o desenvolvimento das prisões, dos hospitais, das escolas e de outras grandes organizações sociais. É sua a teorização que vê o modelo do Panopticon, idealizado por Jeremy Bentham, como aplicável à sociedade moderna.

A produção de Foucault pode ser dividida em dois períodos: o primeiro, relativo às teorias coletadas em "A História da Loucura na Idade Clássica", "O nascimento da clínica", "As palavras e as coisas" e "Arqueologia do saber". Nessas obras, Foucault propõe uma análise, que ele define como "arqueológica", dos processos de constituição e de formação do "saber" em um certo momento, em um certo lugar, por uma certa disciplina. Particularmente, Foucault analisa a formação do campo de estudos das "ciências humanas".

O segundo período da sua produção, ao invés, está diretamente interessado no exercício do poder e no seu funcionamento. Importantes são também os estudos de Foucault sobre a sexualidade e sobre o tema do conhecimento.

Para ler mais:



quinta-feira, 25 de junho de 2009

Olgária Mattos

O mal-estar na Universidade

Olgária Mattos é filósofa, professora titular da Universidade de São Paulo.
Fonte: Carta Maior



A militarização do campus universitário da USP e a solução de conflitos através da força atestam o “esquecimento da política”, substituída pela ideologia da competência, entendida segundo o modelo da gestão empresarial, com seu culto da eficiência e otimização de resultados. Também a proposta mais recente da reforma da carreira docente e do projeto da implantação da Univesp (Universidade Virtual do Estado de São Paulo), respondem, cada qual à sua maneira, à “produtividade”, os acréscimos salariais dos professores subordinando-se ao número de publicações e a seu estatuto— se livro, capítulo de livro, ensaio em revistas, se estas se ajustam ao “selo de qualidade” das agências de financiamento; número de congressos; soma de palestras; orientações de teses e dissertações e, sobretudo, se estas obedecem ao prazo preconizado, tanto mais exíguos quanto mais os estudantes chegam à Universidade desprovidos de pré-requisitos à pesquisa,como um conhecimento adequado do português para fins de leitura e escrita universitária, (guardadas as exceções de praxe), bem como acesso a línguas estrangeiras. De fato, a Universidade se adapta às circunstâncias do ensino médio, e o mestrado pretende contornar as deficiências da formação no ensino médio (e fundamental também), que incidem nos anos de graduação, convertida em extensão do segundo grau.

Professores e estudantes cedem precocemente a publicações, sem que haja nelas nada de relevante, e, ao mesmo tempo, devem freqüentar cursos ou prepará-los, realizar trabalhos correspondentes, desenvolver suas teses - uma vez que a quantidade consagra pontuações para futuras bolsas de iniciação científica ou aprovação de auxílios acadêmicos. Quanto aos docentes, estes se ocupam cada vez mais com tarefas de secretaria, como preenchimento de planilhas, elaboração de relatórios, propostas de inovação em cursos não obstante ainda em vias de implantação, acompanhamento de iniciação científica, organização desses congressos, participação em atividades de iniciativa discente, preenchimento de pareceres on line de um número crescente de bolsistas, e por aí vai. No que diz respeito ao ensino à distância, ele não responde à democratização da Universidade mas a sua massificação.

O abandono da Universidade Cultural e sua substituição pela “Universidade da Excelência” ou do “Conhecimento” dizem respeito à dissolução do papel filosófico e existencial da cultura. Constrangido à pressa e ao atarefamento diário, o ócio necessário à reflexão e à pesquisa é proscrito como inatividade, os improdutivos comprometendo o princípio de rendimento geral. Este encontra-se na base da transformação do intelectual em especialista e da docência como vocação em docência como profissão. O saber técnico é o do expert que transmite conhecimentos sem experiência, cujo sentido intelectual e histórico lhe escapa. Assim como no processo produtivo a proletarização é perda dos objetos produzidos pelos produtores e perda do sentido da produção, a especialização pelo know how é proletarização do saber. Por isso o especialista moderno se comunica por fórmulas, gráficos, estatísticas e modelos matemáticos. Foucault reconhece seu primeiro representante em Oppenheimer que enunciou o projeto Mannhathan - que levou à bomba-atômica - em termos simpaticamente técnicos.

A “Universidade do Conhecimento” perverte pesquisa em produção. Quanto à educação à distância, ela não significa um apoio ao conhecimento e seu acesso a regiões distantes, mas sim o fim de toda uma civilização baseada nos valores da convivência, da sociabilidade e da felicidade do conhecimento.


domingo, 21 de junho de 2009

Entrevista - Mario Fleig

O direito ao gozo e a violência.

Filósofo e psicanalista Mario Fleig concedeu entrevista à IHU On-Line, por e-mail. Fleig é professor do curso de pós-graduação em Filosofia da Unisinos e membro da Associação Lacaniana Internacional. Graduado em Psicologia pela Unisinos e em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, é mestre em Filosofia, pela UFRGS, doutor em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e pós-doutor em Ética e Psicanálise, pela Université de Paris XIII (Paris-Nord), França. Fonte: UNISINOS


IHU On-Line - Em que medida o desejo e a felicidade como imperativos fundamentam a violência na pós-modernidade?

Mario Fleig - A felicidade sempre foi e continua sendo a aspiração que determina a existência do homem ocidental, e talvez de qualquer ser humano, independente de sua cultura. Contudo, o ideal de felicidade se formula de maneiras muitos diversas, e isso depende de cada cultura e seu sistema de crenças e representações. Temos indicações de que a modernidade, e sua radicalização no que se passou a denominar de pós-modernidade, se caracteriza pela implementação de mudanças radicais nos ordenadores sociais precedentes que definiam o que se denomina de modo genérico de modelo tradicional. Ora, sabemos que os ideais que predominam em uma cultura determinam os valores prevalentes, tendo efeitos na organização da cultura e na estruturação das subjetividades. Assim, podemos supor que a modernidade e a pós-modernidade se caracterizam por mudanças radicais nos ideais partilhados, que por sua vez têm efeitos sociais e subjetivos marcantes.

Ora, o projeto de fazer uma sociedade orientada pela razão é o que caracteriza a modernidade. A razão se coloca em exercício essencialmente pelo caminho da crítica, de modo que os três grandes princípios ordenadores das sociedades não-modernas - hierarquia, tradição e holismo - foram postos abaixo.

A difusão dos ideais da modernidade, firmando-se progressivamente pela crítica aos segmentos da sociedade tradicional, somando-se aos avanços das ciências modernas e os inventos tecnológicos decorrentes, faz com que aumentem as fileiras de adeptos, cujo entusiasmo pelos novos ideais conflui na irrupção das diversas revoluções sociais que se dão até nossos dias, somadas às incessantes revoluções científicas e tecnológicas. Dentro da diversidade que caracteriza cada uma das revoluções sociais, poderíamos considerar que o lema central da Revolução Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, indica a crítica radical ao modelo ancorado na verticalidade, ou seja, na autoridade alocada na divindade, no rei, no chefe, no pai.

Assim, na pós-modernidade podemos ver os limites extremos da crise legitimidade de qualquer instância que queira fazer o exercício de autoridade. A crise de legitimidade da autoridade tem como efeito a evaporação dos lugares que têm como função demarcar as obrigações e os limites para cada sujeito. Isso significa uma desagregação da lei simbólica, ou seja, os neo-sujeitos que se constituem na nova economia psíquica correlata da economia neoliberal se supõem desobrigados de qualquer limite e aspirados pelo ideal de gozar de tudo e a qualquer preço, sem limite. Ser educado e subjetivado evitando qualquer interdição tende a produzir sujeitos incapazes de dialetizar o ódio que a introdução da cria humana na linguagem produz. Ao ser introduzido na fala, o sujeito é confrontado com a falta que a interação com o outro lhe apresenta, resultando no surgimento do ódio contra aquele que lhe impõe a falta e o limite. Falta que se apresenta na alteridade do semelhante e falta estruturalmente presente na própria linguagem. Ser introduzido no campo da linguagem e na função fala produz no cerne do faltante uma ferida incurável. Esta ferida é denominada por Freud de desejo.

Desejo e interdição imposta pela Lei

Ora, podemos atribuir a Freud a introdução na linguagem corrente de diversos termos, como recalque, desejo, complexo etc., que tendem então a perder sua conotação psicanalítica específica. O desejo, para Freud, diz respeito ao que está interditado e por isso mesmo tende a ser recalcado e perdura no sujeito de modo inconsciente. Assim, o desejo se estrutura a partir da interdição imposta pela Lei, ou seja, a interdição indica para o sujeito que algo lhe falta e ao qual não poderá ter acesso. Deste modo, o desejo radical é sempre em vão e contudo não deixa de pulsar no sujeito, ou seja, o desejo inconsciente é indestrutível. O que se passa com o desejo na nova economia psíquica próprio do neo-sujeito? Podemos observar uma tendência em se produzir uma equiparação entre a vontade de tudo gozar e o que passa então a ser denominado de desejo, de modo que o desejo como relativo ao impossível que se apresentaria como interditado se transmuta em desejo do que não pode ser negado. Esta equiparação se soma à equivalência que a economia de consumo induz ao consumidor entre o objeto de consumo e o suposto objeto de desejo. Deste modo, o neo-sujeito não suporta desejar em vão, mas tem uma vontade de vontade de tudo querer gozar, sem que nenhuma impossibilidade se interponha, de modo incessante e imediato.

Direito ao gozo

Assim, atribuímos aos novos imperativos que caracterizam a nova economia psíquica traços que especificam a violência em nossos dias. Encontramos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, nos ideais da revolução, introduzidos na figura do direito do cidadão, uma nova posição a respeito do usufruto dos direitos, isto é, há um deslocamento na posição do sujeito quanto ao gozo em relação à sociedade anterior, ao antigo regime. Segundo esta Declaração, as únicas causas das desgraças do mundo são o esquecimento e o desprezo dos direitos naturais do homem. Com isto fica demarcado que a pretensão da declaração dos direitos do homem e do cidadão tem como finalidade pôr fim à infelicidade humana. O primeiro passo de tal empreendimento é, segundo o “Art. 1o. - A meta da sociedade é a felicidade comum. O governo é instituído para garantir ao homem o gozo de seus direitos naturais e imprescritíveis”. Esta garantia fundamental para a consecução do gozo dos direitos de cada um é complementada no “Art. 23 - A garantia social consiste na ação de todos para assegurar a cada um o gozo e a conservação de seus direitos: esta garantia repousa sobre a soberania nacional”.

Podemos ler os ideais revolucionários da consecução da “felicidade comum” através do acesso ao “gozo de seus direitos naturais e imprescritíveis”, garantidos pelo governo na perspectiva de que aqui se encontra implicitamente a afirmação irrestrita do direito ao gozo que diz respeito a cada um. É esta suposição que passa a reordenar os ideais da cultura moderna e pós-moderna que situa o sujeito na posição de reivindicante: cada um de nós, tomado na suposição de um direito ao gozo prometido pelo gozo do direito passa a exigir-se e exigir do social o gozo que cabe a cada um na vida, e ainda por acréscimo, um gozo suposto e almejado sem falhas. É o ideal máximo de nossa cultura: realizar neste mundo aquilo que era anteriormente apenas uma promessa para a outra vida.

A afirmação generalizada do direito ao gozo, na forma como é veiculada em nossa cultura, determina consequências subjetivas e culturais de amplo alcance. Podemos ver estas consequências no modo como alguém responde às perguntas referenciais da vida, relativas ao que seja a honra e a dignidade, ou seja, o que seja uma vida realizada. Em outras palavras, a supressão da distância entre o gozo e o desejo pela progressiva supressão de qualquer forma de proibição, somada à destituição da legitimidade das instâncias de poder, se coadunam com um deslocamento radical da autoridade, ou seja, dos ideais. Se o ideal de gozar aqui e agora, a qualquer preço e sem limite se torna a fonte de autoridade para um sujeito, vemos que se opera uma substituição da autoridade tradicional (o pai, o rei, Deus, a Lei) pela autoridade anônima alocada no objeto que faz gozar. Dentro desta lógica, podemos compreender por que a adição aos objetos que produzem gozo tende a se generalizar e dominar o mercado de consumo.

Violência estrutural

Neste contexto, podemos supor que as novas formas de violências específicas da pós-modernidade seriam um efeito tardio e inesperado da Modernidade, visto que impediria que a violência estrutural, o ódio própria da condição humana, pudesse ser dialetizada, levando os sujeitos e os grupos a abandonarem o campo da fala e da linguagem, em troca da imersão no imediato e no instantâneo. A sustentação de tal hipótese implica: afirmar a tese da existência de uma violência estrutural da condição humana, que se apresenta nos sujeitos e nos grupos por meio da diferença simbólica entre gerações e lugares ocupados, sendo a autoridade simbólica o reconhecimento desta diferença. A subversão e deslegitimação do lugar simbólico da autoridade, decorrente da confusão entre o ideal democrático e o que se pode denominar de democratismo, impede, por não ter mais a quem endereçar a violência, o conflito que permitiria a dialetização da violência estrutural (equivalente à pulsão de morte freudiana), destinando a geração jovem a abandonar o exercício do aprendizado do limite. Em lugar do embate com a geração precedente, engendra-se uma violência suplementar, que especifica aquela que encontramos hoje.

IHU On-Line - Por que a promessa de felicidade da pós-modernidade coincide com o desaparecimento do lei, daquilo que fundamenta o limite?

Mario Fleig - A promessa de felicidade da pós-modernidade acena com o gozo imediato e sem falhas, seguindo os ditames da lógica infernal imposta pelo imperativo de gozar a qualquer preço e sem limite. Este imperativo, ordenador de uma nova economia psíquica em consonância com a lógica da economia neoliberal, se coaduna com a grande confusão entre a crítica moderna ao modelo patriarcal e a destruição do lugar de autoridade. Em outras palavras, a crítica e destruição do modelo que legitimava a autoridade patriarcal, que se impunha de modo vertical, e sua substituição pelo modelo horizontal, avesso a qualquer dessimetria de lugares e poderes, resultou em uma confusão entre a autoridade patriarcal, ancorada na equiparação entre o lugar de autoridade e seu ocupante, e a autoridade resultante do próprio exercício da fala e da linguagem. Ou seja, a confusão entre a transcendência patriarcal e a transcendência que se impõe a partir das leis da linguagem se configura em uma confusão entre democratismo e democracia. A crítica ao modelo patriarcal, benefício maior do modelo crítico introduzido pela Modernidade, não pode coincidir com a destruição do lugar de autoridade.

Crise da lei simbólica

Aqui poderíamos multiplicar os exemplos de valores até há pouco unanimemente reconhecidos e agora profundamente subvertidos em consequência do abandono da referência transcendente. O que não está mais à disposição é uma legitimidade que reconheceria a prevalência de tal ou tal ponto de vista. Isso indica que, além da crise ou da ausência de referências, é a legitimidade da própria referência que se tornou inacessível. Esta crise de legitimidade do lugar de autoridade e de poder leva a uma crise da lei simbólica, que se ancorava no efetivo exercício da fala e da linguagem. O que pode autorizar alguém, uma fala que tenha função de estabelecer uma proibição? Já não sabemos, e até uma nova lei, sancionada em todas as instâncias reconhecidas, precisa aguardar o consentimento daqueles que a ela estão submetidos, para então sabermos se ela terá legitimidade, ou não.

O que dava consistência ao modelo tradicional era a suposição da existência de uma figura que sustentava a referência de um ponto fixo exógeno, que garantia a diferença de lugares. Ou seja, uma figura indicava o lugar de exceção, constituindo-se o fundamento de legitimidade das instâncias que estabeleciam o limite, que assim sempre se impunha de modo heterônomo. Ora, o desaparecimento do lugar de exterioridade legitimado pela transcendência – como ele o era no que se chama sociedade religiosa – leva a espontaneamente acreditar que é possível nos desembaraçar de qualquer diferença de lugares e então recusar qualquer prevalência que não seja aquela que se mantém por minha única e exclusiva decisão.

Ora, pelo fato do estabelecimento de uma norma necessária para qualquer vida social, um lugar diferente se reorganiza imediatamente. Lugar diferente imanente, sem dúvida, mas ainda assim lugar diferente. Mas, na falta desse discernimento, nessa passagem de uma transcendência a uma imanência, é a legitimidade de ocupar um lugar qualquer diferente que está invalidada, isso acarretando na geração seguinte a erosão do processo pelo qual se transmite o consentimento à existência da diferença de lugares. E, se tal é o caso, compreende-se que isso torna tanto mais difícil o alcance de uma norma comum imanente, visto que essa última, não podendo se apoiar na legitimidade de uma autoridade transcendente, tem necessidade de um reconhecimento unânime para poder funcionar. Isso não pode então ter outro efeito que um embalo no qual a legitimidade em ocupar um lugar diferente – de fato, a autoridade – é cada vez mais colocada em situação difícil.

Poder do objeto como nova forma de autoridade

Ora, a erosão da legitimidade do lugar do pai, lugar terceiro e exógeno à relação imediata entre a criança e sua mãe, corroborada pelo funcionamento do discurso da ciência que se legitima na pura racionalidade do encadeamento de enunciados sem sujeito, tem como efeito social e subjetivo a instauração de outra forma de autoridade, alocada então no poder do objeto. O que então passa a valer como comando e autoridade para o sujeito é o objeto revestido de valor. Sabemos que o objeto específico da Modernidade é aquele resultante da unificação do campo dos entes, cujo resultado é o objeto passível de medição e acúmulo. Este novo objeto tem como propriedade maior seu caráter de infinitização, ou seja, ele é destituído de limite. Assim, o que passa a comandar a todos nós, sujeitos pós-modernos, é a aspiração ao usufruto do neo-objeto. Ele nos comanda a aspirar ao gozo sem limite e a qualquer preço. Contudo, em algum lugar encontraremos o limite, nem que seja o choque que se produz no encontro com o outro. Atualmente este choque faz com que se ouça um som parecido com “crack”. O efeito em geral é rapidamente visível: o consumidor não mais consegue deixar de obedecer ao comando da nova autoridade, impessoal, muda e repetitiva, na busca de manter um gozo ininterrupto. A entrada no contínuo deste gozo se chama morte, efeito maior da violência específica da nova felicidade. A única lei que impera é a afirmação de que não há Lei.

IHU On-Line - Por que a concepção de gozar sem limite se transforma em violência?

Mario Fleig - Atualmente se multiplicam os relatos de usuários de crack que começam a fumar uma pedra atrás da outra e quando o estoque se esgota vão em busca de mais, passando por cima de qualquer obstáculo que se interponha à retomada do estado de euforia almejado. É certo que a remoção dos obstáculos não se fará sem uma violência desmedida e insana. Não há mais medida que possa conter a busca do paraíso alucinado. O bem ou o belo são completamente incapazes de constituir alguma barreira ao desvario em que se precipita o sujeito. Caso ele não seja contido física ou quimicamente, derradeira barreira será o gozo perpétuo que a morte lhe concederá. Assim, a violência, que atinge de modo brutal os objetos e os semelhantes, revelará seu alvo principal: violência contra si mesmo.

Em decorrência das consequências devastadoras do gozo sem limite torna-se relevante a investigação dos modos de produção de limite para um grupo humano e para um sujeito. Lacan reconheceu a tese freudiana do declínio da função paterna em nossa cultura como correlativa ao surgimento do mal-estar na civilização. Quando a referência à instância terceira (representada pelo Pai e seus correlatos) deixa de ter prevalência, surgem as condições para o aparecimento, tanto da desagregação do tecido social, quanto da desestrutura psíquica. Em seu lugar, podemos ver o surgimento de uma nova economia psíquica, na qual ocorre um deslocamento do lugar da autoridade. Se antes ela estava localizada nos representantes do pai, agora cada vez mais quem passa a comandar os sujeitos é o objeto a ser consumido.

Novas patologias

As novas patologias tomam diferentes direções, dentre as quais ressaltamos duas: a primeira diz respeito à facilitação para o surgimento de irrupções de paranóia social e individual, correlativas ao enfraquecimento dos operadores da função do terceiro. Dito de outro modo, presenciamos um incremento de relações duais, sem a intermediação do terceiro simbólico, ou seja, dispensando a mediação da lei. O efeito imediato da paranóia, tanto social quanto individual, é a instalação da relação “ou eu, ou ele”, ou seja, o conflito e jogo de forças feito diretamente com o semelhante, sem nenhuma possibilidade de haver o recurso a uma instância mediadora, enfim, sem nenhuma lei possível, a não ser a força na forma da violência. O sujeito se encontra à mercê do arbítrio da força do semelhante. A segunda aparece no incremento dos laços sociais organizados em torno da instrumentalização do outro, cujo modo mais flagrante na atualidade se constata na organização das trocas econômicas, regidas pela “lei de sempre levar vantagem”, deflagrador, provavelmente, da espiral da corrupção. Essa forma de patologia psíquica já havia sido descrita por Freud com a denominação de perversão.

IHU On-Line - A morte seria o único interposto nessa relação de desejo e violência? Por quê?

Mario Fleig - A relação com o pai, sua função nomeante, é essencial, na perspectiva psicanalítica, para apreendermos que a fisiologia do desejo humano é feita de modo que uma renúncia ao gozo imediato e absoluto é necessária para poder desejar. O sujeito deve consentir em perder o gozo do objeto inteiramente satisfatório, metaforizado pela mãe. É em função da proibição do incesto que se organiza o que Lacan denomina o caráter fundamentalmente decepcionante da ordem simbólica. Deste modo, o pai se apresenta como aquele que ordenará essa renúncia ao gozo desmedido e absoluto, na medida em que ele está em jogo apenas como representante da Lei da linguagem. É a linguagem e suas leis que tornam o incesto impossível. Para habitar o mundo mediatizado pelas palavras, o sujeito teve de consentir em perder o gozo imediato das coisas. Paradoxalmente, a natureza do homem é, então, ter perdido o natural. O uso da linguagem indica a necessária passagem pela alteridade para constituir a subjetividade, o que implica a diferença e disparidade entre os sexos. Não há um sexo sem o outro, e consentir com a impossibilidade de haver apenas um sexo ou haver paridade absoluta com o outro constitui o suporte do estabelecimento do limite, ou seja, que se constitua borda em torno da falta estruturante do desejo. Em outras palavras, a identidade humana é inteiramente construída na alteridade.

Subjetividades inacabadas

Ora, quando o bom funcionamento da linguagem falha, e o consentimento em se submeter à perda que falar implica é recusado, temos o aparecimento de subjetividades inacabadas, que não puderam se confrontar com o limite que a consistência da alteridade impõe. Estes sujeitos ou neo-sujeitos tenderão a buscar o limite em um sistema aberto, ou seja, sem o auxílio da alteridade que venha sinalizar o ponto do limite. Além disso, tomados na aspiração de gozar sem limite, encontrarão o limite demarcado pelo impossível radical: a morte. Antes disso, encontramos os equivalentes da morte em formas de se bater, bater no outro, bater nos objetos, descontrole corporal etc. Estas formas vão desde a hiperatividade infantil (que pode ser uma forma de depressão infantil), denominada de Transtorno de Déficit de Atenção (TDA), até o descontrole adolescente que se evidencia em forma de bater e se bater. Acresce-se a isso a potencialização desta vontade sem limite pelos meios tecnológicos que torna a aspiração à morte ainda mais violenta. Todos sabemos o que pode acontecer se um sujeito que se bate e bate nos outros e nos objetos tiver à sua disposição substâncias que o turbinam e uma arma de repetição.

IHU On-Line - Em que medida a crise de legitimidade apontada por Arendt e Habermas explica a irrupção da violência em nossa época?

Mario Fleig - A crise de legitimidade apresenta, por exemplo, efeitos deletérios no cotidiano da vida coletiva quando o funcionamento não se ancora no estabelecimento da diferença dos lugares e não mais implica no reconhecimento espontâneo, por todos, da prevalência de um desses lugares sobre os outros. A diluição da legitimidade de um lugar diferente dos outros, que garanta a legitimidade e a autoridade de quem o ocupe tem como resultado a paralisia do projeto coletivo ou o retorno à lei do mais forte.

Hannah Arendt caracterizou a crise de legitimidade como sendo a condição de vida em um domínio político sem a autoridade nem o saber concomitante de que a fonte da autoridade transcende o poder e aqueles que estão no poder se encontram novamente confrontado, sem a confiança religiosa em uma origem sagrada, nem a proteção de normas de conduta tradicionais, com os problemas elementares do convívio dos homens.

Frente ao dilema gerado pela crise de legitimidade, alguns almejam o retorno à autoridade de ontem, e até mesmo preconizam o estabelecimento de uma autoridade forte, o passo será tanto mais rapidamente transposto que aquele que sofre da falta de reconhecimento compartilha espontaneamente a ideologia ambiente da exigência de paridade democrática e, não vê, por conseguinte, nenhuma correlação entre a diluição da autoridade e o mal-estar de que é o objeto.

Arendt examina a questão no caso exemplar do sistema totalitário, como foi o sistema nazista, no qual o sujeito se encontra em dificuldade pelo fato do desaparecimento do que funda a legitimidade, ou seja, a terceiridade. Para ela, o regime totalitário explodiu a própria alternativa sobre a qual repousava todas as definições da essência dos regimes na filosofia política: a alternativa entre regimes sem leis e regimes submetidos a leis, entre poder legítimo e poder arbitrário. Com o regime totalitário, estamos em presença de um gênero de regime totalmente diferente, pois ele desafia todas as leis positivas, visto que jamais opera sem ter a lei por guia e também não é arbitrário, pois pretende obedecer rigorosamente e sem equívoco a essas leis da Natureza e da História das quais todas as leis positivas sempre supostamente se originaram. Não podemos aqui discutir o alcance da proposta de Arendt, que nos indica que o sistema totalitário como aquele que teria substituído a evaporação da autoridade, ou seja, o desaparecimento da legitimidade do terceiro. A produção característica do sistema nazista foi o campo de concentração, imposição de uma ordem de ferro, que não deve ser considerada uma anomalia do passado, mas antes como a matriz do espaço político no qual ainda vivemos.

IHU On-Line - As figuras de autoridade foram destruídas na pós-modernidade, mas o lugar por elas ocupado continua a existir. Como é possível operar esses lugares?

Mario Fleig - Somos tomados em uma confusão entre a crítica radical ao autoritarismo e ao modelo patriarcal e a suposição de que teria havido a destruição do lugar de exceção que legitima o exercício da autoridade e do poder, ou seja, a suposição de que estaríamos liberados da referência paterna. Ligado a isso, também ocorre uma recusa de que estejamos submetidos à linguagem e ao fato que o objeto capaz de causar o nosso desejo e satisfazê-lo seja um objeto radicalmente perdido. Ora, a disparidade de lugares se impõe pelas leis da própria linguagem. Quando alguém toma a palavra e a sustenta, produz-se uma disparidade entre aquele que fala e aquele que ouve. Contudo, o lugar prevalente não está colado ao falante, visto que no momento seguinte ele pode ceder este lugar para outro e vice-versa. O que sabemos é que o não reconhecimento do lugar de exceção e a autoridade de quem o ocupa tende a gerar uma grande confusão no convívio humano, que não pode ser bem resolvido pelo consenso ou pelo contrato. O problema que enfrentamos hoje na vida com os outros é que solução encontrar que não seja o restabelecimento da autoridade de ontem, mas que, ao contrário, reconheça a diferença dos lugares e a prevalência do lugar de exceção, e não recuse o impossível a que este nos permite – mas, também, nos intima – a nos confrontar.

Lacan, em sua interrogação sobre o que seria uma ética da psicanálise, afirmou em 1965, em seu seminário Os problemas cruciais para a psicanálise, que “ser psicanalista é uma posição responsável, a mais responsável de todas, pois que ele é aquele a quem está confiada a operação de uma conversão ética radical, aquela que introduz o sujeito na ordem do desejo.” Portanto, é para a responsabilidade de um novo convívio entre os homens que estamos sendo convocados.

IHU On-Line - Por que não há suficiente endereçamento do ódio que se produz ao terceiro? O que quer dizer quando afirma que esse ódio não é dialetizado?

Mario Fleig - Freud postulou que o amor e o ódio são dois integrantes fundamentais da formação psíquica de cada sujeito, sendo que o segundo tende a não ser reconhecido ou até mesmo posto para baixo do tapete, além de ser mais primitivo do que o amor.

Jean-Pierre Lebrun, em O futuro do ódio (Porto Alegre: CMC, 2008), retoma a questão do ódio em razão da afirmação de Freud de que o ódio seria mais originário do que o amor. Lacan esclarece que o motivo fundamental dessa precedência deve-se ao fato que o ódio é sempre primeiramente o ódio contra o Simbólico, que se instaura com um furo na consistência narcísica, ou seja, ele se produz a partir da introdução da criança na fala e na linguagem. Assim, o ódio se endereça em primeiro lugar contra aquele que ocupa o lugar de terceiro, ou seja, o pai. Se hoje assistimos a evaporação da legitimidade do lugar de autoridade e igualmente de seu ocupante, o ódio tende a se tornar impessoal e sem endereçamento, o que impede que ele possa sofrer uma adequada elaboração e ser sublimado. Pelo contrário, ele tende a perdurar em estado bruto, irrompendo ao menor sinal de oposição ou limitação, na forma de desmedida violência.

IHU On-Line - Em que aspectos podemos dizer que o discurso da ciência é um dos fatores que sedimenta a impessoalização da fala e, por conseguinte, da desresponsabilização do sujeito?

Mario Fleig - Quando consideramos os efeitos sociais e psíquicos da ciência moderna passamos do campo da epistemologia das ciências para o âmbito do laço social e da vida cotidiana, no que então denominamos, seguindo Saussure e Lacan, de discurso. Discurso, neste sentido específico, se refere àquilo que constitui laço com o outro, ou seja, o que permite estabelecer relação com o semelhante e permite inscrever subjetiva e socialmente as interdições e as impossibilidades. A linguagem da ciência é imprópria para tal função, visto que de saída, especialmente a linguagem da ciência moderna, requer a forclusão do sujeito da enunciação, buscando-se então o encadeamento de enunciados acéfalos e rigorosamente justificados. A ciência moderna, com base na invenção do genérico realizada por Sócrates, se ancora na redução da totalidade dos entes diversos ao objeto unificado como res extensa, que assim se torna apto para que seja feita a matematização da natureza. A mensuração do ente dispensa, de saída, o lugar e a função do sujeito implicado em cada enunciado.

Mas, então, como se poderia falar de “discurso da ciência”, visto que a linguagem científica não faz laço social? Parece contraditório, contudo a denominação “discurso da ciência” faz referência aos efeitos da linguagem científica na vida cotidiana. Podemos dizer que a linguagem objetiva da ciência moderna tende a invadir e colonizar o mundo vivido. O efeito mais surpreendente da entrada das linguagens formais na vida cotidiana é a expansão dos entendimentos da vida a partir de linguagem impessoais, ou seja, conjunto de enunciados sem sujeito e que dispensam a função nomeante do pai (a autoridade de quem ocupa um lugar de exceção), ao mesmo tempo em que promovem a anulação da responsabilização do sujeito que ali estaria implicado. A responsabilidade passa a ser do sistema, mas como este é acéfalo, não há mais ninguém a quem imputar a responsabilidade. Não temos mais chefes, mas apenas gestores.

Em contrapartida, temos que reconhecer que, nas práticas sociais vigentes na modernidade, sempre foram as grandes tradições religiosas que mantiveram o exercício da fala engajada, apostando no compromisso da palavra empenhada. E é precisamente desse elemento nada científico dessas tradições que Freud faz uso em sua descoberta. Por isso, podemos afirmar que Freud, como o reconhece Lacan, reintroduz no campo da ciência o sujeito da enunciação, que dali havia sido banido.

IHU On-Line - E por que os enunciados da ciência não produzem laço social?

Mario Fleig - Como já adiantei acima, posso dizer em outras palavras que oferecer um presente para a pessoa amada, por exemplo, utilizando termos científicos resultará em uma impossibilidade de constituir um signo de amor. Se ofereço cravos vermelhos à minha amada e lhe digo para receber o vegetal de tal espécie certamente que causarei um espanto. Lacan introduz a distinção entre a função do pai como nomeante e o “nomear para”, salientando que o Nome-do-Pai está diretamente ligado ao amor, ao passos que o “nomear para” tem a função de estabelecer a ligação entre enunciados. O discurso da ciência encontra seu efeito maior naquilo que Lacan denomina de discurso do capitalismo, cujo operador maior é o dinheiro, o objeto mais unificado que conhecemos e que funcionam na mais completa forclusão do sujeito. O dinheiro circula de modo a apagar todos os vestígios do sujeito que ela pudesse estar. Acontece de às vezes recebermos notas de dinheiro com as marcas de usuários precedentes, mas que não fazem diferença alguma. Podemos evocar que Lacan afirma, em O saber do psicanalista, que “todo discurso que se aparenta com o capitalismo deixa de lado o que nós denominaremos simplesmente as coisas do amor”.

O neolibealismo, com seus corolários de globalização e de promessa de gozo sem limites e para todos, produz efeitos na própria economia e igualmente efeitos subjetivos importantes. Na realidade, se trata de mutações nas formas de trocas entre os seres humanos. Ora, desde sempre sabemos que aquilo que organiza o social, e dentro deste, os sujeitos, é o sistema de trocas, que nunca se restringe apenas às trocas de bens, ou seja, as trocas econômicas. Classicamente, como nos ensinaram os sociólogos e antropólogos, os povos se organizam em torno de três formas relacionadas de trocas: troca de bens (economia), trocas de mulheres (relações de parentesco) e troca de palavras (lei simbólica). Podemos supor que a primazia da troca de bens, desconectada das duas outras, produz efeitos desorganizadores dos discursos sociais, ou seja, provoca patologias no laço social, com efeitos psíquicos salientes. Em razão disso, podemos levantar a hipótese de que a condição pós-moderna tem uma nova economia psíquica correlata, que poderia ser caracterizada em uma frase: o imperativo de gozar a qualquer preço, não importa qual, mesmo que seja ao preço do outro.

Reintrodução do sujeito na ciência moderna

Freud contribui e acompanhou de perto o surgimento de quatro grandes inovações do final do século XIX: a descoberta do poder anestésico da cocaína, precursor dos psicofármacos; o nascimento da neurologia; o uso científico do poder da sugestão; e o tratamento psicanalítico. Ele abandonou a cocaína pelo amor (casou-se com Martha), deixando os méritos das descobertas subsequentes para seus colegas; tomou progressiva distância da neurologia (nunca quis retomar seu importante esboço escrito no final de 1895 – Projeto para uma psicologia científica); abandonou o uso da hipnose como técnica de tratamento psíquico (Freud teria feito fortuna se tivesse se dedicado a elaborar uma psicologia de auto-ajuda, visto que chegou decifrar a lógica da sugestão); em contrapartida, dedicou-se ao mais demorado e mais difícil: o tratamento pela fala do analisante. Esta escolha de Freud indica que nunca aceitou submeter-se às leis locais (esta seria a posição tomada pelo nazismo, que obedecia apenas às leis da raça pura, recusando qualquer princípio do direito situado acima de cada povo), o que seria cair em uma posição antropocêntrica (entendida aqui pelo princípio de que o homem seria a medida de todas as coisas, das que são enquanto são, e das que não são enquanto não são, como enunciou Protágoras) . Pelo contrário, requerer a mediação da fala na relação com o semelhante é contar com a operação da lei organizada a circulação e a troca. Assim poderíamos interpretar a postulação de Freud de que todos os problemas dos seres humanos têm uma relação com o pai. Isso não impedia Freud de ser uma crítica contundente das religiões.

Talvez Lacan tenha nos ajudado a esclarecer esta questão, lembrando que a crítica freudiana se endereça à religião, não tendo efetivamente se ocupado da teologia. Uma das formulações originais de Lacan é a categoria do Outro, que designa um lugar vazio, mas também potencialmente todo elemento da linguagem que possa se inserir na enunciação e dar a ouvir o que diz respeito a uma outra coisa, ao inconsciente. Ora, isso é uma leitura da estrutura formal da mais genuína teologia trinitária de Santo Agostinho. A psicanálise freudiana, calcada na ciência moderna, promove a crítica desta, na medida que ela opera a exclusão do sujeito da enunciação de seu campo (a subjetividade perturba o bom funcionamento da ciência). Por mais estranho que pareça, a psicanálise é uma ciência moderna que propõe a reintrodução do sujeito da enunciação no cerne de seu procedimento.

Para ler mais:



sexta-feira, 19 de junho de 2009

Entrevista - François Sabado






A crise sistêmica do sistema capitalista

Em sua passagem pelo Brasil, o filósofo François Sabado, principal dirigente do Novo Partido Anticapitalista (NPA), da França, conversou com a IHU On-Line, por telefone, sobre a crise financeira mundial, as consequências para a Europa e também sobre as propostas do partido que ajudou a construir em seu país.
Fonte: UNISINOS





IHU On-Line – Que influências a crise financeira mundial teve na crise da civilização capitalista?


François Sabado – A crise que temos hoje é estrutural, sistêmica. Não é somente financeira ou bancária, mas sim a combinação de uma crise do sistema capitalista com a crise ecológica. O primeiro ponto importante é compreender o seu porte dimensional. O segundo ponto é que se trata de uma crise vinda dos Estados Unidos e da Europa. O terceiro é que precisamos compreender que ela não é resultado apenas do exagero do sistema financeiro, a partir do jogo das bolsas ou corrupção, mas vem também de uma lógica interna do sistema capitalista que quer lucrar ainda mais, o que implica numa situação onde se reduz o salário para aumentar os lucros.

Por outro lado, como há esta situação de limitação de capacidade de produção, o capital não inverte a produção do sistema financeiro, o que provoca uma crise de superacumulação de capital. Essa é a situação em nível econômico. A combinação com a crise ambiental é o dado novo nesta crise. Há vários anos, estamos chegando a uma série de limites com os problemas de mudanças climáticas, de poluição, de limitação de água etc. E tudo isso pode se transformar em reais catástrofes humanas, como o que ocorreu em Nova Orleans, nos Estados Unidos, com o Katrina. Podemos perceber isso em vários lugares do planeta que conhecem catástrofes assim. Por isso, a crise ecológica é também tão importante e não se pode responder a ela com o capitalismo. Podem ser feitas reformas, melhoras, mas o capitalismo implica em produzir cada vez mais, e, se há produtivismo, não é possível solucionar os problemas do planeta. Por isso, este novo partido que se apresenta na França é, ao mesmo tempo, anticapitalista e antiprodutivista.

IHU On-Line – De que maneira essa crise financeira muda a situação política internacional?

François Sabado – Isso é um importante ponto para se fazer uma análise global. No entanto, se pode dizer uma coisa desde já: todas as políticas neoliberais levaram à catástrofe econômica. Mesmo do ponto de vista capitalista, há uma crise do tipo que aconteceu em 1929 e há um final de ciclo dessas políticas. Isso produz uma situação de crise do capitalismo da classe dominante, mas não quer dizer que as classes dominantes estão encontrando uma saída para a crise. As classes dominantes não estão reconstruindo um novo Estado de Bem-Estar social, pois continuam as políticas neoliberais, a supressão do serviço público, a supressão dos funcionários, os ataques contra os trabalhadores, a desregulação jurídica sobre o trabalho. Estamos numa crise e prosseguem as políticas capitalistas, o que implica confrontação social com os trabalhadores e movimentos de assalariados, pois as classes dominantes querem que os trabalhadores paguem o preço dessa crise. Isso, portanto, pode provocar um novo ciclo de lutas sociais.

IHU On-Line – Quais as principais dificuldades que a Europa vive diante dessa conjunção de crises?

François Sabado – Por exemplo, na França a situação é muito preocupante. Hoje, há mais de quatro milhões de pessoas desempregadas numa população ativa de 25 milhões. Mais de 20% da população ativa está parada. Há baixa de produção industrial, de taxa de crescimento. Em toda a Europa há taxas de crescimento negativas. Essa situação é bastante difícil porque há muitos desempregados que são despedidos das fábricas, muitos salários foram bloqueados, há políticas de deflação salarial em alguns países. A situação é preocupante porque as pessoas tiveram de passar por mudanças muito radicais.

IHU On-Line – Diante dessa crise da civilização capitalista, qual o papel da esquerda no mundo hoje?

François Sabado – Os problemas estão voltados para a organização da esquerda. Há uma esquerda, a do século XX, que foi remodelada e dominada pelo stalinismo e pela social-democracia, e que continua com a conversão da social democracia em social liberalismo que hoje domina a esquerda. A esquerda não apresenta alternativas à crise e se adapta ao liberalismo. Creio que hoje é necessário construir uma nova esquerda, radicalmente anticapitalista, que proponha uma nova redistribuição radical da riqueza, mas também uma mudança de propriedade da sociedade da economia, terminando com a propriedade privada dos grandes meio de produção e substituindo a propriedade privada pela propriedade pública. Além disso, a esquerda precisa propor um novo modo de produção e de consumo que responde à crise ecológica. É isso que implica uma nova esquerda, mas, para que ocorra essa mudança, é preciso um longo prazo e duração, o que não pode ser feito em meses ou anos. Estou convencido de que a reconstrução da esquerda anticapitalista irá acontecer.

IHU On-Line – O que propõe o Novo Partido Anticapitalista?

François Sabado – O Novo Partido Anticapitalista na França é uma nova forma de organização a partir da convergência da experiência de lutas de diferentes pessoas que vêm das fábricas, da juventude, do subúrbio. Não se pode compreender esse Novo Partido Anticapitalista sem compreender a luta de classes que há na França. Na França, há uma característica diferente de outros países da Europa, pois este é um país de revoluções. Nele, ocorreu a Revolução Burguesa no século XVIII e há, desde então, uma onda regular de lutas, de crises, de situação pré-revolucionária. Também existe um nível de lutas de classes muito importante.

O Novo Partido Anticapitalista é uma resposta a essa situação histórica particular, tentando converter lutas de vários setores, desde o velho movimento até os novos movimentos sociais, como o movimento feminista, ecologista, juvenil. Por outro lado, também queremos fazer uma convergência política de várias correntes: revolucionária, sindicalista, associação, do partido comunista, do partido socialista. E, com isso, fazer uma nova síntese política. Isso é muito difícil, mas vale o esforço. Eu venho do movimento trotskista e estou convencido de que há pontos positivos desse novo partido. O Novo Partido Anticapitalista será exatamente isso: uma convergência política de várias correntes, o que me parece muito importante. Será um partido democrático, com debate interno, com possibilidades de confrontação, identificação social e política com o povo. Uma de suas razões é não fazer políticas como profissionais, mas para os trabalhadores, uma política autêntica, com a qual as pessoas possam se identificar.

Para ler mais:



sexta-feira, 12 de junho de 2009

Olgária Matos

A indústria da consciência

O artigo é de Olgária Matos, professora de filosofia na Universidade Federal de São Paulo.
Fonte: Agência Carta Maior




Minima Moralia. Reflexões a partir da vida lesada

Theodor W. Adorno

Tradução e apresentação: Gabriel Cohn

Azougue Aditorial
266 p.
R$ 58,00



Minima Moralia vem a público em nova tradução, cuja importância responde, como observa Gabriel Cohn, ao “texto construído para ser rebelde”. “Rebelde” também a tradução, porque não enfrenta apenas as dificuldades do ofício, mas dá voz ao refinamento retórico que proíbe a paráfrase e transgride a norma da comunicação fácil com o leitor.

Impróprio para ser lido em diagonal, o estilo de Adorno é antijornalístico e lento, como o do tradutor, que recusa a versão que consagra as “reflexões a partir da vida danificada”, preferindo “a vida lesada”, radicalizando uma dialética que se fará “a partir” da vida mutilada, como uma forma “tardia” de vida, do que dela permanece, sobrevive e “vem depois”.

“Lesada” é a vida ferida no corpo e no espírito pelas monstruosas práticas do fascismo e do anti-semitismo, da burocracia e do totalitarismo, como também por sua figura mais “benigna”, a indústria cultural e o pensamento por clichês. “Prejudicado” é o indivíduo sem comunicação com o outro, que perdeu as formas do viver em companhia, com o desaparecimento da arte de presentear ou de fechar uma porta sem batê-la, que expressavam modos de convivência, civilidade e polidez, constituindo o reconhecimento da presença recíproca em um espaço comum e partilhado.

Delicadeza dos costumes

Minima Moralia revive o ideário humanista da “delicadeza dos costumes” e a paixão desinteressada das coisas do espírito que o bem-viver supõe, características do cosmopolitismo e do enciclopedismo europeu: “Goethe, que tinha a clara consciência da iminente impossibilidade de quaisquer relações humanas na sociedade industrial emergente, buscou, nas novelas dos anos de peregrinação de Wilhelm Meister, representar a civilidade como referência salvadora entre homens alienados. Para ele o humano consistia numa autolimitação, que súplice assimilava a inexorável marcha da história, a desumanidade do progresso, a atrofia do sujeito”.

No ensaio que acompanha a tradução, Gabriel Cohn considera a acústica das palavras em português e em alemão, elege uma linguagem “dodecafônica”, mobilizando fórmulas e alusões para significar as ruínas e o choque, na vida e no pensamento. Rebelde, ainda, o livro que é uma autobiografia, mas desafiadora das regras do gênero com narrativas contínuas de experiências a serem transmitidas. No mundo da total dominação dos homens e das coisas, a existência está destroçada porque a história contemporânea é a da vida danificada pela “sociedade da total administração” e pela indústria da consciência: “Pensar a inteira liquidação do indivíduo ainda é demasiado otimista. Em meio às unidades humanas padronizadas e administradas vegeta o indivíduo”.

De Aristóteles a Cícero, de Montaigne a La Rochefoucauld e Proust, Minima Moralia dá continuidade à tradição do humanismo e à busca da “vida boa”, conferindo às letras, às línguas, à retórica, à moral, à política a narrativa da gesta hominis, os saberes práticos da vida dos indivíduos e de seu curso, em seus conflitos e conjunções. Assim como o pensamento científico e a dialética, sob a hegemonia do conceito, recaem em positividade e na afirmação do existente, as mínimas morais se encarregam de suscitar, nas formas abstratas, os conteúdos históricos reificados na lógica da domínio: “a profundidade em que ela [a determinação dialética] mergulha na objetividade lhe custa ser cúmplice da mentira de que a objetividade é já a verdade”.

Ego cogito

Em Minima Moralia desaparece a filosofia institucional, obcecada pela distinção drástica do verdadeiro e do falso, fundada no ego cogito e seu critério de verdade. Confundindo o “livro da natureza” com o “livro do homem”, o conhecimento tornou-se analítico, transformando o homem em objeto do procedimento classificatório: “o pensamento topológico conhece o lugar de cada fenômeno”, mas não conhece um só fenômeno”, escreve Adorno em Prismas; “liga-se secretamente ao sistema de loucura paranóica que não tem mais contato com a experiência do objeto.” Ele compreende a paranóia como o autismo da razão para a qual todos seus outros são apenas ocasião para o delírio. Que se pense na biologia sintética, na fabricação da vida a partir da matéria inerte e na “ auto-regulação” da ciência que, a igual título da avidez do mercado, não reconhece nenhum limite.

A “frieza do contato” com o que é vivo corresponde ao não-contato do sujeito consigo mesmo e com o outro, frieza a que Adorno se refere considerando o fim da experiência, o fim do pensar: “o esclarecimento entregue pronto transforma em produtos de massa não apenas a reflexão espontânea como também as percepções analíticas, cuja força iguala a energia e o sofrimento com que são obtidas, e reduz a convenções triviais os dolorosos segredos da vida individual já que o método ortodoxo tendia a reduzir a fórmulas. A dissolução das racionalizações converte-se ela própria em racionalização. Ao invés de desempenhar o trabalho da consciência de si, os peritos adquirem a capacidade de subsumir todos os conflitos pulsionais em conceitos que no fundo não têm como alcançá-los. O temor diante do abismo do ego é retirado pela consciência de que nada disso passa de males triviais”.

Mundo da banalidade e da insignificância é também antigenealógico. Nele, o indivíduo se autoconcebe como se tudo devesse a si mesmo, revelando-se um déficit simbólico e a carência de laços estáveis e duradouros entre os indivíduos e na sociedade. Disso resulta a perda do sensus communis, designado por Kant “distúrbio mental”, e o aparecimento da “singularidade lógica” ou sensus privatus, com o empobrecimento da paisagem interior do sujeito. Se o mundo das máximas morais é o da história dos “caracteres”, do autoconhecimento e dos “cuidados de si”, ele diz respeito à experiência na tradição dos moralistas antigos e modernos.

Máximas e sentenças auxiliavam a enfrentar infortúnio e boa-sorte porque serviam de exemplo. Diferenciando exemplum e exemplar, o latim revela que este é o que se deve imitar, enquanto o exemplo compreende ainda um significado moral e intelectual, bem como requer amor: “amor é a capacidade de perceber o similar no dissimilar”.

Adorno, com seu método micrológico de valorização do detalhe, do cotidiano, do que, nos compêndios, foi preterido à nota de rodapé, acolhe os fragmentos insurgentes que se opõem à dicotomia do particular e do universal, liberando uma singularidade irredutível a um dos dois termos, pois o regime de seu discurso não é a lógica, mas a “analogia”, para a qual não há regra geral. Aproximando-se da doutrina das correspondências e semelhanças, estabelece relações entre domínios diversos e heterogêneos para manifestar as virtudes ocultas das coisas.

Mínimas morais constituem a subversão do presente que, na tradição do ensaio filosófico e das sentenças, deve surpreender o status quo, para que o pensamento não seja sorvido pela “facticidade de um estado falso”. A sociedade inteiramente administrada é a da subordinação de todas as esferas da vida ao fator econômico. Ela é uma “prisão ao ar livre”, na qual “a garantia de não morrer de fome é obtida em troca do risco de morrer de tédio” (Raoul Vaneigen).

[grifos do blog]



Lição de Epistemologia





Fonte: Portal Brasileiro da Filosofia

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Ernst-Wolfgang Böckenförde

O homem funcional. Capitalismo, propriedade, papel dos Estados.


Artigo do filósofo e jurista alemão Ernest-Wolffang Böckenförde. Tradução de Benno Dischinger
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Fonte: UNISINOS






A crise bancária e consequentemente econômica que investiu contra nós e ainda está bem longe de terminar, levanta muitas questões. Foi ela causada pela irresponsabilidade e pela avidez de bancos desvairados, especialmente bancos de investimento? Ou então, pela falta de regras rígidas para os mercados financeiros internacionais, pelo não funcionamento do controle sobre bancos e finanças, pela separação e independência de uma economia financeira virtual (e acrobática), pela economia real da produção e dos bens? Provavelmente contribuíram para ela diversos fatores do gênero, ligados a uma ingênua confiança num mercado “livre” e sem regras.

Mas, a busca das causas unicamente nesta direção não nos leva longe. De fato, aquele sistema que se foi constituindo neste campo por décadas com sucesso e com amplos lucros materiais, mas também com uma crescente distância entre pobres e ricos, aquele “turbo-captialismo” (assim chamado por Helmut Schmidt) que, com a globalização mundial, atingiu uma nova qualidade, antes de provocar um desmoronamento, não pode ser definido e explicado fazendo referência somente a comportamentos errados de indivíduos isolados ou também de grupos.

Isso certamente pode ter contribuído, porém, mais globalmente se trata dos frutos de um sistema de interação consolidado e muito difundido, que segue uma lógica funcional própria, e a ela subordina todo o resto. Este sistema de interação se transformou num sistema de ação: o capitalismo moderno. Ele forja o comportamento econômico (e, em parte também não econômico) dos indivíduos e o integra no sistema. Estes são certamente os atores, mas, em seu comportamento não seguem tanto um impulso pessoal livre, senão antes os estímulos que derivam do sistema e de sua lógica funcional.

O caráter desumano do capitalismo

Mas, como se apresenta mais precisamente o capitalismo moderno enquanto sistema de ação? Nisso pode ajudar-nos um grande sociólogo humanista do século passado, Hans Freyer. Em seu livro “Theorie des gegenwärtigen Zeitalters [Teoria da época atual]” ele fala dos “sistemas secundários” como produtos específicos do mundo industrializado moderno e analisa com precisão sua estrutura [1].

Os sistemas secundários são caracterizados pelo fato de desenvolverem processos de ação que não se conectam a ordenamentos preexistentes, mas se baseiam em poucos princípios funcionais, a partir dos quais são construídos e extraem sua racionalidade. Estes processos de ação integram o homem não como pessoa em sua integralidade, mas somente com as forças motrizes e as funções que são requeridas pelos princípios e por sua atuação. O que as pessoas são ou devem ser fica de fora.

Os processos de ação deste tipo se desenvolvem e se consolidam num sistema difuso caracterizado por sua específica racionalidade funcional, que se sobrepõe – influenciando-a, modificando-a e modelando-a – à realidade social existente.

Eis a chave para a análise do capitalismo como sistema de ação. Ele se baseia em poucas premissas: liberdade geral do indivíduo e de associações de indivíduos em matéria de aquisições e contratos; plena liberdade em matéria de transferências de mercadorias, negócios e capitais fora dos limites nacionais; garantia e livre disposição da propriedade pessoal (incluindo o direito de sucessão), entendendo com propriedade a posse de bens e dinheiro, mas também de saber, tecnologia e capacidade.

O objetivo funcional é a liberação geral de um interesse lucrativo potencialmente ilimitado, bem como potencialidades de ganho e de produção, que atuam no livre mercado e entram em competição entre si. O impulso decisivo é dado por um individualismo egoísta que impele as pessoas envolvidas a adquirir, inovar e ganhar. Tal impulso constitui o motor, o princípio ativo; ele não persegue um objetivo conteudístico persistente, que fixe medida e limites, mas uma ilimitada dilatação de si, o crescimento e o enriquecimento. Por isso precisa eliminar ou acantonar todos os obstáculos e todos os regulamentos que não são requeridos pelas supracitadas premissas. O único princípio regulador deve ser o livre mercado.

O ponto de partida e a base da construção não são a satisfação das necessidades dos homens e seu crescente bem-estar; estes seguem o processo e seu progresso e são, por assim dizer, uma consequência do sistema em funcionamento. O direito e o Estado como seu tutor têm unicamente a tarefa de assegurar a possibilidade de desenvolvimento e o funcionamento deste sistema de ação; são uma variável funcional, não uma força pré-existente de ordenamento e limitação.

O dinamismo e a influência sobre os comportamentos de tal sistema são enormes. O próprio sistema se torna e é sujeito de comércio. Realização de lucros, crescimento de capital, aumento da produção e da produtividade, auto-afirmação e crescimento no mercado constituem o princípio motor e dominante, cuja racionalidade funcional integra e subordina todo o resto. Os trabalhadores só são tomados em consideração com base na função que desenvolvem e os custos que comportam, pelo que se reduzem ao menor número possível. Sua substituição, onde for possível, por máquinas ou tecnologias automatizadas para reduzir os custos parece não só racional, mas economicamente necessária.

A compensação para os problemas sociais e os licenciamentos que deles derivam não entram nesta lógica funcional, mas é exigida do Estado e de sua função de garantia, que precisamente por isso pode impor taxas e exigir tributos que, em todo o caso, ainda comportam custos para as empresas. O princípio estrutural não é a solidariedade com as pessoas e entre elas; ela só é tomada em consideração como reparação para bloquear e em parte compensar as conseqüências danosas e desumanas do sistema, que se desenvolve baseado em sua própria lógica interna.

Não podem ser postas em dúvida as extraordinárias realizações, em termos econômicos e de bem-estar, que o capitalismo assim estruturado produz não só em determinados países, mas hoje também em nível mundial, apesar de todas as suas falhas e deficiências. Nós próprios, habitantes do Ocidente, haurimos grandes lucros. Todavia, não se pode não ver que se trata de um processo em contínua progressão. Com base em sua própria dinâmica, ele procura continuamente estender-se e integrar em sua lógica funcional todos os âmbitos da vida, na medida em que os mesmos têm um lado econômico, com amplas repercussões também no campo da cultura e do estilo de vida pessoal. Resulta daqui a difusão do traço economicista em todos os aspectos da vida. Hoje nós o constatamos principalmente no sistema sanitário.

Marx tinha visto corretamente

Já há mais de 150 anos Karl Marx o havia claramente analisado e expresso e se fica impressionado pela atualidade de seu prognóstico: “Graças ao desfrutamento do mercado mundial, a burguesia tornou cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. Privou a indústria de seu fundamento nacional. As antiqüíssimas indústrias nacionais foram e são diariamente aniquiladas. São substituídas por indústrias novas, cuja introdução se torna uma questão de vida ou de morte para todas as nações civis, indústrias que não trabalham mais matérias primas locais, e sim matérias primas importadas das zonas mais distantes e nas quais os produtos não são consumidos exclusivamente no país, mas por toda parte no mundo. [...] Em lugar da antiga auto-suficiência e do isolamento local e nacional entra um tráfico universal, uma dependência universal recíproca entre as nações. E, como na produção material, assim também na intelectual. Graças à célere melhoria de todos os instrumentos de produção, às comunicações tornadas extremamente mais ágeis, a burguesia leva a civilização a todas as nações. Os baixos preços de suas mercadorias são a artilharia pesada com que ela deita ao solo todas as muralhas chinesas, [...] constringe todas as nações a adotar, se não querem morrer, o modo de produção burguesa [2].

Para nossa época é preciso acrescentar que, graças a uma perfeita organização em nível mundial do transporte de containeres via marítima, os custos do transporte de mercadorias e produtos são mínimos, pelo que as grandes distâncias não desencorajam mais, mas antes estimulam o comércio em nível mundial.

E não se situa fora do desenvolvimento, mas corresponde antes à sua lógica, o fato de que, na busca de possibilidades sempre novas de ganho, se difundam sempre mais, no campo dos mercados financeiros, os negócios baseados unicamente em capital fictício e em sua multiplicação, com a tendência de não serem tomados em conta os dados da economia real e de prejudicá-los. Karl Marx já vira também isto [3].

O Estado e o direito podem certamente fixar, do exterior, limites ao sistema do capitalismo e impor-lhe regras, limitar os excessos e as conseqüências inaceitáveis, na medida em que o ordenamento estatal, que de sua parte se vincula à promoção de uma economia favorável ao crescimento, tem a força para fazê-lo. E, em certa medida também o faz. No entanto, mesmo em caso de êxito, ela continua sendo uma correção marginal que deve ser extraída da lógica funcional do sistema, enquanto esta última visa sempre a maior desregulamentação possível.

Desmontar o capitalismo até seus fundamentos

De que mal sofre, portanto, o capitalismo? Não sofre apenas por causa dos seus excessos e da avidez e do egoísmo dos homens que nele operam. Sofre por causa do seu ponto de partida, do seu princípio funcional e da força que cria o sistema. Por isso, é impossível curar esta doença com remédios marginais; ela só pode ser curada mudando o ponto de partida.

É necessário substituir o extenso individualismo em matéria de propriedade, que toma como ponto de partida e princípio estruturador o lucro dos indivíduos potencialmente ilimitado, considerando ser ele um direito natural e não sujeito a alguma orientação conteudística, por um ordenamento normativo e uma estratégia de ação baseados no princípio segundo o qual os bens da terra, ou seja, a natureza e o ambiente, os produtos do solo, a água e as matérias primas não pertençam àqueles que por primeiro deles se apossam e os desfrutam, mas são destinados a todos os homens, para a satisfação de suas necessidades vitais e para a obtenção do bem-estar.

Este é um princípio radicalmente diverso; seu ponto de partida e de referência é a solidariedade dos homens em sua vida em comum e em competição. É daqui que é preciso deduzir as normas fundamentais, com base nas quais informar os processos de ação, tanto econômicos como também não econômicos [4].

A escolha de tal ponto de partida não é de todo nova. Ele se vincula a uma antiga tradição que só se perdeu no momento da passagem ao individualismo da propriedade e ao capitalismo. Tomás de Aquino, o grande teólogo e filósofo da Idade Média, afirma explicitamente que com base no direito natural, ou seja, no ordenamento da natureza querido por Deus, os bens terrenos são ordenados à satisfação das necessidades de todos os homens. A propriedade privada de cada um só existe no quadro desta destinação universal e a ele subordinada. Ela não pertence ao direito natural em si, mas é um acréscimo legislativo que se justifica por motivos práticos, porque cada um cuida acima de tudo daquilo que pertence a ele mesmo, antes do que a todos conjuntamente, por ser mais conforme ao objetivo que cada um possua e administre as coisas por si mesmo e, enfim, porque a propriedade privada favorece a paz entre os homens [5]. Depois, Tomás também distingue entre posse, administração e uso daquilo que se possui. Enquanto o primeiro diz respeito somente a cada indivíduo, o uso deve tomar em conta o fato de que os bens exteriores, com base em sua destinação originária, são comuns, pelo que, quem os possui deve compartilhá-los voluntariamente com os pobres [6]. Por isso, para Tomás, em caso de extrema necessidade, o furto não é pecado [7].

Aparece aqui um modelo que é contrário ao capitalismo. Um modelo que parte de outros princípios fundamentais e assim desmascara também o caráter desumano do capitalismo. A solidariedade não aparece mais como reparação para bloquear e compensar as conseqüências danosas de um individualismo desenfreado em matéria de propriedade, mas como princípio estruturante da convivência humana também em âmbito econômico.

Este ponto de partida opera de muitos modos: atribuição dos produtos do solo e das matérias primas naturais, relação com os bens de consumo e o ambiente, natureza, água e ar; papel diretivo daquilo que é trabalho em referência ao capital; limites à acumulação de propriedades e de capitais; reconhecimento dos outros seres humanos – também das futuras gerações – como sujeitos e parceiros no campo do uso, do comércio e da posse, ao invés de serem objetos de um possível desfrutamento.

Deste modo tem-se um quadro normativo, no interior do qual o sentido da posse e do uso pessoal e a garantia da propriedade podem e devem ter seu significado pragmático e sua função como forças motrizes do processo econômico e de seu progresso. Mas, permanecem ligados ao conceito prioritário da solidariedade, que oferece orientação conteudística e estabelece limites a uma expansão ilimitada.

Depois de Marx é a hora da igreja

Não é esta a sede para elaborar em detalhes tal modelo teórico e prático, inspirado pelo princípio de solidariedade. Os fundamentos para fazê-lo encontram-se na tradição da doutrina social cristã. Basta despertá-los de seu sono de bela adormecida no bosque e aplicar-se com decisão a traduzi-los em prática.

Esta doutrina social da Igreja assumiu amplamente, no que se refere ao capitalismo, impressionada por seus indiscutíveis êxitos, um comportamento antes defensivo. Ela o criticou sobre pontos específicos, em vez de po-lo em discussão enquanto tal. O evidente desmoronamento atual do capitalismo por causa de sua expansão ilimitada e quase desregulada pode e deveria permitir à doutrina social da Igreja uma contestação radical.

Para isso o magistério social pode referir-se simplesmente ao papa João Paulo II, o crítico mais lúcido e enérgico do capitalismo depois de Karl Marx. Já em sua primeira encíclica ele empreendeu uma avaliação do sistema enquanto tal, das estruturas e dos mecanismos que dominam a economia mundial no campo das finanças e do valor do dinheiro, da produção e do comércio. Em seu ponto de vista, eles se demonstraram incapazes de responder aos desafios e às exigências éticas do nosso tempo [8]. O homem “não pode tornar-se escravo das coisas, escravo dos sistemas econômicos, escravo da produção, escravo dos seus próprios produtos [9].

Mas, a nova orientação solidarista e a transformação de um extenso sistema econômico de ação que, como mostramos, não considera a natureza e a vocação do homem, e até as contradiz, não ocorre por si. Requer um poder estatal em condições de agir e decidir que ultrapasse a mera função de garantia do desenvolvimento do sistema econômico e de averiguação do paralelogramo das forças, mas assuma eficazmente a responsabilidade do bem comum mediante a limitação, a orientação e também a recusa da persecução do poder econômico, procurando continuamente reduzir ao mesmo tempo as desigualdades sociais.

É impossível realizar tal transformação com simples intervenções de coordenação. Mas, onde se encontra hoje tal estrutura social? Ante o tecido econômico mundial a força do Estado nacional não é mais suficiente, mas será sempre vencida pelas forças econômicas que operam em nível mundial. De outra parte, é impossível organizar uma estrutura estatal em nível mundial, sob a forma de Estado planetário. Isso se pode fazer somente para e em áreas limitadas, que estão relacionadas entre si e colaboram. O apelo é, pois, dirigido antes de tudo à Europa. Mas, terá ela a vontade e a força para fazê-lo?

Notas:

1. H. Freyer, Theorie des gegenwârtigen Zeitalters [Teoria da época contemporânea], Deutsche Verlag-Anstalt, Stuttugart, 1956, p. 79 ss.
2. K. Marx, F. Engels, Manifesto del partito comunista, Marietti, Gênova, 1973, p. 60.
3. K. Marx, “Das Kapital”, vol. III, c. 25, Dietz-Verlag, Berlin, 1956, pp. 436-452.
4. Cf. E.-W. Böckenförde, Ethische und politische Grundsatsfragen zur Zeit [Questões éticas e políticas fundamentais para a época], in Id., Kirche und christlicher Gaube in den Herausforderungen der Zeit [Igreja e fé cristã nos desafios da época], Münster, 2007, pp. 362-366.
5. Tomás de Aquino, Summa Theologiae, IIa-IIae, q. 66, art. 2 e art. 7.
6. Ibidem, q. 66, art. 2, resp.
7. Ibidem, art. 7, resp.
8. Cf. João Paulo II, “Redemptor hominis”, 1979, n. 16. Cf. Tb.: Idem, “Laborem exercens”, 1981; Centesimus annus”, 1991.
9. João Paulo II, “Redemptor hominis”, 1979, n. 16.

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