quinta-feira, 11 de junho de 2009

Ernst-Wolfgang Böckenförde

Fé e Direito

O jornal italiano La Repubblica, 6-10-2007, publicou alguns excertos do discurso que o importante filósofo e jurista alemão Ernst-Wolfgang Böckenförde proferiu, em Roma, no dia 9-10-2007, abrindo um seminário sobre a "perspectiva pós-secular" promovido pela conceituada revista italiana Reset.
Fonte: UNISINOS





O Estado laico dos nossos dias é um Estado secularizado. O tema de sua relação com a religião foi recentemente bastante debatido. Para muitos, este Estado parece ser uma fundamental conquista de civilidade política, porque permitiu que pessoas de diversas convicções religiosas e ideológicas vivessem em paz e liberdade no quadro de um ordenamento comum. Outros, ao invés, julgam-no com ceticismo, se não com aversão, porque ele, com seu ordenamento, se emanciparia da religião, rejeitaria sua pretensão de influir sobre o ordenamento da convivência humana e seria, em definitivo, um “Estado sem Deus”.

Eu gostaria de contribuir à distensão entre estas duas concepções opostas. (...) Não existe direito ilimitado, nem um direito de liberdade garantido como direito humano; caso contrário, isso se tornaria um poder sobre os outros. Na convivência humana, ele deve subsistir junto com a igual liberdade dos outros e não pode cancelar esta liberdade, como também não o pode em relação aos demais direitos fundamentais, como, por exemplo, o direito à vida, à saúde, à propriedade, à livre escolha de uma profissão. Isto é incontestado e vale igualmente para a liberdade religiosa. Além disto, esta liberdade não dispensa da observância das leis vigentes, ela tem o seu espaço e se desenvolve no quadro do ordenamento jurídico geral. Mas, aqui nos encontramos ante um problema. Trata-se de um problema geral que não se apresenta por primeira vez numa sociedade pluralista, mas adquire na mesma uma relevância particular.

O motivo está no fato de que, via de regra, as confissões religiosas não se limitam a venerar Deus nas formas da liturgia e do culto, mas abraçam também mandamentos e máximas para as condutas da vida e os comportamentos do mundo. Estes preceitos penetram na convivência entre os homens, mas podem diferir das disposições de lei vigente na comunidade política. O que prevalece então? Tem precedência a liberdade religiosa ou o ordenamento jurídico geral? A tensão que aqui se produz não pode ser resolvida unilateralmente. É tarefa legítima e necessária do ordenamento jurídico estatal regular, de maneira vinculante para todos, as questões da convivência material dos homens; é preciso, portanto, que os direitos e os deveres das cidadãs e dos cidadãos da sociedade civil e do Estado não sejam condicionados nem limitados pelo exercício da liberdade confessional.

De outra parte, o ordenamento jurídico estatal deve dar conta das garantias constitucionais, entre as quais estão também a liberdade religiosa e confessional, tornando-as suas. Desta forma, no ordenamento jurídico estatal é preciso dar espaço à liberdade de confissão, também em âmbitos e negócios mundanos que não têm imediato caráter religioso-cultural, na medida em que isto seja compatível com as exigências fundamentais da convivência comum, que devem ser salvaguardadas em cada caso. Isso se refere ao campo das não poucas questões de caráter religioso-espiritual e ao mesmo tempo político-mundano – por exemplo, o direito matrimonial, o direito ao domingo e aos dias festivos, também os jejuns e as prescrições ou costumes relativos ao vestuário. Os casos de aplicação e os casos problemáticos se multiplicam com a pluralização das confissões, e são advertidas com particular intensidade junto aos muçulmanos: a obrigação das moças muçulmanas de participarem das aulas de natação e de excursões escolares junto aos rapazes, o véu das estudantes e das professoras muçulmanas, a aplicação dos tabus sobre o abate, etc.

O problema das limitações da liberdade confessional se enrijece diante da interrogação: em que medida o Estado secularizado pode manter a garantia, para isso constitutiva, da liberdade confessional, da neutralidade religiosa e da equiparação jurídica das comunidades religiosas, diante do crescente pluralismo ideológico-religioso e do aumento da imigração, quando contemporaneamente não pode prescindir de uma cultura vivida, não raramente marcada por tradições religiosas, como fundamento comum que mantenha unida a sociedade?

Para deixar claro o problema, gostaria de citar – com seu consenso – uma correspondência que tive há três anos com o então Prefeito da Congregação da Fé, o cardeal Joseph Ratzinger. Ao meu arrazoado contra uma proibição universal do véu para as professoras muçulmanas, o cardeal replicou escrevendo que, embora concordando em quase tudo, diferia com respeito a um ponto. Num Estado ideologicamente neutro, as próprias raízes culturais e religiosas permanecem para ele de certo modo constitutivas, também quando está cônscio de estar obrigado à neutralidade para com as religiões. Caso contrário – prosseguia o cardeal – deveriam desaparecer os privilégios do domingo e a legislação matrimonial e familiar deveria ter em conta, em igual medida, a tradição muçulmana e a cristã. E assim concluía: “Um Estado não pode rescindir totalmente as próprias raízes e elevar-se, por assim dizer, a puro Estado nacional que, privado de uma cultura própria e de um perfil próprio, trate igualmente todas as tradições relevantes para a ética e o direito e valorize de maneira igual todas as manifestações exteriores das religiões”.

Na minha réplica eu escrevi que a reserva por ele assinalada chamava atenção sobre um importante problema que no debate é facilmente transcurado e que nem mesmo eu havia enfrentado. “O senhor tem razão, todo ordenamento estatal tem suas próprias raízes culturais e também religiosas, e isto se reflete mais ou menos nas suas instituições e no seu sistema jurídico, também quando o Estado é um Estado secular, neutro para com as religiões e as ideologias. Estas raízes ele não as deve renegar no interesse do igual tratamento das religiões, e ele pode tutelar a ordem pública que delas recebeu a marca”. Mas, visto o reconhecimento da liberdade religiosa como direito humano, nesta ordem pública entra a exigência de que as outras religiões e confissões não sejam excluídas do direito de ter a própria fé e de proclamá-la em privado e em público, ou que sofram nisso substanciais limitações, pois em tal sentido a liberdade religiosa não é divisível e deve permitir a visibilidade dos símbolos religiosos de outras confissões, sem dever, por isso, renegar as peculiaridades da cultura pré-existente. A quintessência desta discussão ressalta para mim no fato de que, de uma parte, a liberdade confessional enquanto direito humano não está sujeita a uma reserva cultural, e, de outra, a liberdade religiosa e a paridade de direitos das religiões não autorizam a pretensão de um nivelamento da característica religiosa dada à cultura e à forma de vida como parte da ordem pública. À luz desta marca, as minorias religiosas vivem na diáspora. Para esta vida na diáspora o islã e o judaísmo contêm, de resto, o explícito convite a respeitarem as leis e os costumes das nações. (...)

Poderá por ventura ocorrer que o Estado secularizado, que é caracterizado pela fundamental separação entre Estado e religião, e que concede às religiões espaço para desenvolver-se, mas de fato não se identifica com elas, não possa, todavia, deixar de referir-se à religião e, de certo modo, alimentar-se dela? Não se trataria de uma contradição in terminis?

Para enfrentar o problema mais de perto, é oportuno pôr-se a pergunta: o Estado secularizado liberal, de onde tira e conserva nos cidadãos e cidadãs, hoje e no futuro, aquela medida de senso pré-jurídico de comunhão e de ethos mantenedor que é indispensável para uma próspera convivência precisamente num ordenamento liberal? Nenhum Estado pode fundar-se somente numa concentração de poder e no exercício da constituição, embora estes sejam irrenunciáveis; deve também executar ações positivas que assegurem a legitimidade, e necessita dos comportamentos graças aos quais as pessoas prestam obediência prevalentemente voluntária. E seria igualmente uma ilusão pensar que um ordenamento estatal possa viver da concessão da liberdade individual auto-referencial sem um vínculo unificador que comunique um sentimento do “nós” e pré-exista a esta liberdade.

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