sábado, 29 de agosto de 2009

José Fernandes P. Júnior

O sofrimento dos filósofos - Reflexões em torno da constante retórica que encontramos nos preâmbulos da dor humana

por José Fernandes P. Júnior é graduado em filosofia e professor de filosofia na rede pública do DF.
Fonte: Revista Filosofia






Dia desses um amigo meu ao notarme meio cabisbaixo deduziu aquele meu momento da seguinte maneira: "Não sabia que os filósofos sofriam". Degustei suas palavras com o tempero do silêncio. No entanto, aquela sua dedução levou-me a ponderar sobre o sofrimento dos filósofos. E por lógica, só pelo fato de refletir sobre a questão, automaticamente estou a constatar que, realmente, os filósofos sofrem ou sofreram. Daí, devemos dar razão a Publio Terêncio, poeta romano, quando disse que "nada do que é humano me estranho".

Ora, refletir sobre o sofrimento é antes de tudo fazer uma pausa na vida e tentar descobrir porque a felicidade nos abandonou. Foi-se a felicidade, veio o sofrimento. Assim, quando Sêneca, em "Cartas a Lucílio", afirmou que "os homens considerados felizes são, na verdade, os mais infelizes", quis realmente afirmar que podemos disfarçar o sofrimento, mas não negar sua existência.

Em resposta ao meu amigo, poderia ter lhe feito as seguintes perguntas: O que dizer de Sócrates, sofrendo a ansiedade da morte, após ter bebido cicuta? E mesmo do "maldito" Maquiavel quando torturado e exilado de sua terra devido a perseguições políticas? Que dizer de Schopenhauer, ofuscado por Hegel e esquecido de todos seus compatriotas? De Kierkegaard, quando sua amada Regine Olsen o rejeitou e, também, foi ridicularizado na Dinamarca? E até mesmo do estóico Sêneca exilado em Córsega por cerca de dez anos? (creio não ser necessário falar de mártires como Giordano Bruno para demonstrar que até mesmo os filósofos sofrem).

O certo é, conforme Eric Fromm, que "o homem é o único animal cuja existência é um problema", e o seu existir muitas vezes é por sofrimentos, perturbações e desassossegos que o deixa sem sentido - é aí que a vida perde a graça. Quando o sofrimento chega na soleira da vida humana, o ser humano se revela frágil frente ao seu novo estado. Se era alegre, fica triste; se perdeu a pessoa que amava, fica como um barco à deriva; se perdeu a saúde ao ser atacado por uma doença maligna, fica debilitado; enfim, o sofrimento atinge o ser humano por meio de suas multifaces - doença, morte, solidão, rejeição, desprezo... Tudo isso gera no ser humano alguma ponta de sofrer.

Haveria algum antídoto para combater ou curar o sofrimento? A ciência sempre procura soluções para cura de doenças; mesmo àquelas que são incuráveis, busca um paliativo para aliviar os sofrimentos do paciente. O "senso-comum" por sua vez - quando o sofrer é psicológico, empírico-sentimental - não hesita em usar o chavão-clichê: "o tempo é o melhor remédio" ou "o tempo a tudo cura". Será? O tratamento dado pela filosofia é diferente, vejamos como alguns de nossos filósofos enfrentam o problema.

Sócrates, ao sentir que seu julgamento resultaria numa condenação injusta, adverte: "Pois bem, senhores juízes, vós também deveis estar dispostos à esperança em relação à morte, pensando somente isso, que nenhum mal pode atingir o homem reto nem em vida nem depois de morto (...)". Sócrates presume que deveria cumprir uma pena capital injusta, mas encara a situação corajosa e resignadamente, pois sabia que o desespero não aliviaria em nada sua dor. Sofrer além do sofrimento é agravar a situação. O certo é que Sócrates enfrentaria o sofrimento resultante de uma condenação injusta e, consequentemente, a morte como um mártir. Suas últimas e memoráveis palavras, após tomar o veneno, foram: "É chegada a hora de partir: eu para a morte e vós para a vida. Quem de nós encontrará o melhor destino só Deus sabe".

Os estóicos (gr.: Stoa) resumiam o viver neste mundo com uma fórmula simples, mas severamente cruel no seu cumprimento, qual seja, "suporta e renuncia" (sustine et abstine). Assim, qualquer espécie de sofrimento deveria ser tido como algo que o destino nos tivesse preparado e, por isso, debalde seria a preocupação inútil que roubava a paz e perturbava o espírito. Para os Estóicos, como também para Epicureus e Cínicos, o conceito de ataraxia (do gr.: literalmente significa ausência de inquietação, tranquilidade) fazia parte do caminho de sabedoria que estas Escolas buscavam; isso não significa dizer que esses filósofos não sofriam, mas que viam no sofrimento um exercício de libertação e de busca elevada do espírito.

Schopenhauer, por sua vez, dá-nos - como possibilidade transitória de escape do sofrimento - a contemplação do belo artístico. A arte, segundo o autor de o mundo como vontade e representação, traz um alívio para os fardos deste nosso viver, e a música nesse particular tem uma grande importância: "Uma sinfonia de Beethoven descobre- nos uma ordem maravilhosa (...) Depois de ter meditado longamente sobre a essência da música, recomendo o gozo desta arte como a mais deliciosa de todas. Ouvir longas e belas harmonias, é como um banho de espírito purifica de toda a mancha, de tudo que é mau, mesquinho", diz Schopenhauer. (p. 146, Dores do mundo)

Kierkegaard, como alívio e superação do sofrimento recomenda-nos à Fé. Esta é o antídoto para todo o desespero e angústia que perpassam o "eu" humano. Aliás, a fé é na concepção kierkegaardiana o último salto existencial do indivíduo para chegar àquele que pode livrá-lo de todo sofrimento. Talvez tenha sido a fé autêntica em Cristo que fez o filósofo dinamarquês superar os traumas existenciais decisivos de sua vida: o relacionamento frustrado com Regina Olsen e o combate com a igreja de seu tempo.

Bom, meu caro amigo, como se vê, os filósofos também sofrem. Mas também procuram superá-lo. E quando preferem resignadamente aceitar sofrer, como fazem ou fizeram os estóicos, na verdade buscam com isso não sofrer ainda mais - esta é a exceção. A regra, bem definida por Lessing, é: "Por que não podemos aguardar tranquilamente a vida futura, como aguardamos o dia de amanhã (...)" . Assim, pois, o ser humano está sempre fugindo daquilo que frustre seus planos e traga tristeza. Mas, quando menos esperamos, a vida arrebata nossa provisória felicidade e deixa-nos todos cabisbaixos.

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