segunda-feira, 13 de abril de 2009

Gilles-Gaston Granger

Filosofar sobre a Filosofia

Se aos olhos de muita gente filosofar é fugir da realidade, filosofar sobre a filosofia será na opinião destes, distanciar-se um pouco mais da realidade e ser condenado a percorrer, indefinidamente, o círculo no qual teríamos encerrado a nós mesmos. Poderíamos responder, talvez, que quem quer evitar, de toda a maneira, qualquer caminho circular, deve renunciar a pensar, de uma vez. Sublinho: a qualquer pensar, uma vez que na própria ciência, a necessidade irreprimível de voltar a algum ponto de partida firmemente estabelecido ou leva o pensamento a uma regressão rigorosamente indefinida, ou leva a justificar pelas consequências aquilo que se acreditava incondicionado. O verdadeiro problema, para uma disciplina do conhecimento, o único problema cuja solução seria, aparentemente, acessível, consistiria não em evitar o círculo a qulaquer preço, mas em definir, em cada campo, um certo modo de rompê-lo; de dizer, até onde se pode, de algum modo, remontar mais longe sem falhar; e, segundo a expressão do mestre Aristóteles, dizer como podemos e devemos parar. Nesta altura, a atividade filosófica se apresentaria como a busca mais geral concernente aos diferentes modos de decidir o ponto de interrupção. Se considerarmos, então, que pensar a vida e pensar as obras humanas, como a filosofia o faz, é permanecer na vida, ainda, ou ao menos em suas bordas e afastar-se dela só na aparência, então, filosofar sobre a filosofia não nos afastaria da vida, enquanto filosofar sobre a filosofia é ainda; literalmente, filosofar. É preciso dizer, até, que desta duplicação, desta reflexão sobre si mesma, a filosofia é inseparável. É aquilo que Platão designa pela palavra ................; aquilo que Aristóteles faz na sua Metafísica, são as difíceis análises kantianas das três críticas, enquanto figuras diversas e excepcionalmente bem sucedidas de uma atividade de pensamento que não pode subtrair-se, sem falhar, à questão que sua própria presença põe a si mesma. Seria vão querer indagar sobre os caracteres discriminativos que marcariam o uso reflexivo da filosofia. Como notou Wittgenstein, a filosofia da filosofia não se distingue da filosofia em geral mais que a ortografia geral se distinguiria da ortografia da própria palavra "ortografia" (Philosophische Untersuchungen, 1.121,p.82). E se se quer sugerir uma diferença a qualquer preço, melhor seria, com Wittgenstein, falar dos "espelhos da filosofia, colocados de modos diferentes, grandes e pequenos..." (Notebooks, 6 de março de 1915).

Não há, pois, propriamente falando, "metafilosofia" ou, se se prefere, toda filosofia já é "metadisciplina". A metafísica seria "o estudo do método filosófico", lê-se numa obra recente que tem exatamente este título. Mas oficializar, por assim dizer, esta distinção, impõe que tratemos então a filosofia como uma ciência visando um objeto capaz de constituir-se como objeto num grau superior. Este é, exaamente, o ponto de vista do filósofo do qual emprestamos a definição e para quem

a convergência efetiva, largamente difundida, das ciências em relação umas às outras e de todas elas em relação à filosofia, é um resultado impressionante de pesquisa recente (On Philosophical Method, p.27)


Não é pois de espantar que, para ele, o método da filosofia seja,

Como o método das ciências empíricas, exegético, hipotético, dedutivo, iterativo e cumulativo.

Ver-se-á que, longe de subescrever esta afirmação peremptória, tentaremos fazer e compreender como a filosofia pode ser um modo de conhecimento válido, permanecendo irredutível e insubstituível em relação à ciência. A primeira marca desta diferença profunda seria justamente o fato de que o conhecimento científico exige e suscita um metaconhecimento que o examina, descreve, critica ou fundamenta, mas que não poderia, sem impostura, pretender-se inteiramente científico; é, ao mesmo tempo, lógica e filosofia da ciência. A filosofia, ao contrário, qualquer que seja seu ponto de apoio primeiro, exige e suscita um reconhecimento de si mesma, que se deve admitir como homogêneo a ela. O operador "filosofar", de modo semelhante aos operadores idempotentes da álgebra, por mais que seja reiterado, não produz nada diverso de si mesmo.

Propondo-me explicitamente como tema o conhecimento filosófico, não pretendo absolutamente me elevar acima de uma filosofia considerada em primeiro grau e, assim, mais vulgar. Igualmente, nos guardaremos o máximo possível contra a ilusão de legislar, ilusão da qual o autor da presente obra não se considera nem mais nem menos isento que qualquer outro filósofo, até mesmo - si magna licet componere parvis - os maiores. Trata-se, com efeito, não de afirmar o correto ou estabelecer uma regra mas, num certo sentido que será necessário explicar, de descrever. Trata-se, em suma, do problema transcendental invertido. Em vez de perguntar-nos como uma ciência é possível, propomo-nos a reconhecer como uma filosofia pode ser um conhecimento - e, de certo modo, um conhecimento racional - sem contudo, ser uma ciência mas sem cair, também no uso transcendental da razão. Abordar o exercício filosófico a partir desta perspectiva, não é considerar as coisas de cima, mas apenas tomar um dos diversos acessos que se oferecem ao filósofo, em pé de igualdade como todos os outros; embora seja, é verdade, um dos mais dificilmente praticáveis. Sem dúvida, não se pode, como acabamos de dizer, exercitar a filosofia sem que apareça, no fundo, esta preocupação que queremos pôr em evidência, aqui; mas é de explicitá-la que se trata agora, é de seguir suas incidências, torná-la tema principal e não mais acompanhamento do trabalho do pensamento. Para quem está acostumado com os textos das obras científicas, ou com a obra filosófica singular dos grandes filósofos, a tarefa só pode ser empreendida no temor de acumular os insucessos e as insuficiências. Impõe-se contudo a mim, com a promessa de receber dela as satisfações e as amarguras que dá a certeza prévia de uma execução necessariamente imperfeita, mas apaixonante; com o risco, no entanto, de irritar o leitor, esperando despertar sua atenção benevolente.

De resto, o projeto de tratar filosoficamente o conhecimento filosófico não poderia dar lugar a um procedimento esencialmente distinto de qualquer outro ensaio filosófico. Trata-se, em todo caso, de tomar como ponto de partida, e como texto, uma experiência de cultura, uma experiência expressa ou, ao menos, em via de expressão. É seguramente possível apreender os dados que constituem as obras filosóficas como fenômenos, tomados numa circunstância e numa história, produzidos por homens cujos atos, mesmo os de pensamento, acham-se mais ou menos condicionados por um meio muito complexo; em suma, é possível visar construir uma sociologia e uma psicologia, uma história concreta dos fatos filosóficos. Na nossa opinião, tal conhecimento, na medida em que fosse alcançável, seria um conhecimento científico. Mas é claro que nosso propósito, aqui, é radicalmente diferente, sendo precisamente a natureza dessa diferença que constitui o tema da pesquisa. Nós o abordaremos do exterior, por assim dizer, neste preâmbulo, expondo primeiro sumariamente o que o conhecimento filosófico não é.

A filosofia não é uma ciência

Certamente sempre é permitido dar às palavras o sentido que se escolher, sob a condição de deixar isso claro. Nenhuma regra, nem de discurso nem de pensamento, opõe-se a que se atribua o nome de "ciência" ao que os filósofos produzem. Contudo, se se constatasse que nenhum dos caracteres mais marcantes e distintos das outras ciências são reconhecíveis nas obras filosóficas, não haveria mais inconvenientes que vantagens de designá-las com o mesmo nome, exceto se estivéssemos no reino de Alice? A justificação profunda desta unidade de denominação só poderia ser o desejo de expressar uma identidade subjacente, metafísica e não-empírica, das diversas maneiras de aspirar ao conhecimento, que o ser humano manifesta. E nesta perspectiva, a filosofia seria o modo eminente, no sentido escolástico do termo, diferindo das outras ciências como mais científica que qualquer outra. Mas supondo-se que adotemos esta visão hierárquica do conhecimento, permanece o fato de que a mesma palavra só se aplicaria, em todo o caso, de modo homônimo, às formas "inferiores" e à forma "eminente" do saber. Ora, nosso propósito não é o de embaralhar as linhas nem de apagar as diferenças mas, ao contrário, reconhecer, como dizia Wittgenstein, "o duro no mole". Buscaremos pois, mais que reunir e confundir, fazer explodir o paradoxo: como dois produtos do espírito humano, tão profundamente diferentes, como a filosofia e as diversas ciências habitualmente reconhecidas como tais, podem ser consideradas conhecimentos? Digamos previamente em que a filosofia parece-nos distringuir-se irremediavelmente dos outros conhecimentos que têm o nome de ciência.

As ciências visam construir modelos abstratos dos fenômenos.
Elas os representam em "espaços" cada vez mais distanciados do vivido, como estruturas abstratas dos elementos que são possíveis "calcular". Entenda-se que a palavra calcular não implica, aqui, nada que concerna necessariamente a número ou grandeza, mas somente evoca a ideia de operações explicita e univocamente definidas e reguladas. É verdade que as ciências da natureza, para não mencionarmos as ciências do homem, estão longe de responder, na sua totalidade, a esta caracterização ideal. Mas todas a visam e todas se esforçam por aproximar-se dela. A filosofia, ao contrário, nunca chegou a propor verdadeiros modelos dos fenômenos, pela simples razão de que este não pode ser o seu objetivo. Cada vez que o filósofo, cegando-se a respeito de sua própria terefa, quis oferecer uma representação da experiência através de um sistema abstrato de conceitos no qual se desenvolveria um "cálculo", este aspecto de sua investigação terminou num fracasso, certatamente por si mesmo instrutivo. Poder-se-ia reconhecer estas partes mortas da filosofia até nos monumentos mais admiráveis, mesmo quando o gênio do autor as salva.

A filosofia, contrariamente às diversas ciências, também não pretende explicar fatos.
As ciências definem os fatos de que tratam, com maior ou menor rigor, mas sempre de tal modo que seja possível pôr em dúvida, informar ou confirmar o que afirmam, por meio de operações submetidas a um protocolo determinado de regras e usos. Não se poderia, com certeza, exigir das ciências uma definição universal do "fato": o conhecimento científico, por sua natureza, repousa numa determinação específica e, por assim dizer, regional do fato e, em constante evolução, porque a cada momento de sua históira, cada ramo do pensamento científico delimita a classe de fatos que quer explicar com os meios materiais e conceituais dos quais pode dispor. Desta positividade da ciência falaremos mais, ao longo dos próximos capítulos. Deejamos, aqui, sublinhar o contraste, quanto a este ponto, com a perspectiva dos filósofos, para quem a questão: "Que é em geral um fato?" é, ao contrário, um verdadeiro e fundamental problema. Mas a tal interrogação, a resposta não poderia ser dada pelo estabelecimento de um protocolo universal de operações, mesmo que estas fossem de pensamento. Mesmo que que um filósofo chegue a elucidar, a seu modo, a noção de "fato", não terá contudo determinado nenhum fato que pudesse explorar, à maneira do cientista.

Assim, pode-se dizer que a filosofia não tem objeto, por menos que se tenha a preocupação de dar a esta palavra um alcance racionalmente rigoroso, embora bastante amplo, para ser aplicado ao mesmo tempo aos objetos do senso comum e aos objetos da ciência. A crença, geralmente muito difundida, de que a filosofia fala de tudo é perfeitamente correta no fundo: o campo de aplicação de eu exercício é, com efeito, o conjunto da experiência humana. Mas a flosofia não poderia tratar esta experiência como um mosaico de diferentes classes de fatos, que lhe caberia definir e explicar, colocando-se num nível de generalidade superior ao das ciências. Cada vez que os filósofos acreditaram poder representar este papel, especializando-se no universal e superpondo aos conhecimentos terra a terra das ciências um pretenso conhecimento dominante, mas da mesma ordem que o das ciências, ou abandonaram seu projeto neste ponto, lançando as bases de novas ciências, positivas e regionais - como aconteceu de diversos modos com Aristóteles, com Descartes, com Leibniz - ou então, no mais das vezes, esta parte de sua obra reduziu-se a uma reunão mais ou menos harmoniosa e sedutora de trivialidades equívocas. Entre os maiores, sem dúvida, estes monumentos de um conhecimento positivo imaginário são ainda, de modo indireto, portadores de um conteúdo filosófico. Mas é preciso então fazer abstração de sua aparência de representação sintética de um mundo de fatos, para ver aí só a expressão metafórica de uma intenção oculta. Esta intenção oculta que acreditamos que habita toda filosofia, visa organizar não os fatos, mas significações. Tomaremos esta palavra primeiro tal como existe na linguagem, acentuando contudo a oposição, de um lado, do significado e do fato e, de outro, acentuando o apelo a uma experiência global - ao menos virtualmente global que envolve experiências imediatamente vividas como parciais e que a "significação" põe em perspectiva. Mas a tarefa a que nos propomos aqui é justamente a de dar corpo a esta noção ainda confusa, e, se possível, articulá-la. Expressar o que entendemos por conhecimento filosófico é tentar explicitar em conceitos esta articulação sui generis, mostar um trabalho da forma e do conteúdo que seja de uma natureza diversa da do pensamento científico.

De uma outra natureza, sem contudo afastar-se tanto do pensamento científico a ponto de não mais merecer o título de atividade conceitual. Mas então o que é um conceito filosófico? Propor a qualificação conceitual para a obra do filósofo é dar um nome ao problema e não fornecer a sua solução. Em todo caso, se o conhecimento filosófico é irredutível à ciência; sempre nos pareceu que devesse conservar duas características que, sem dúvida, serviram mais ou mentos claramente de pretextos aos que queriam assimilar o conhecimento filosófico a uma ciência: porque ele é analítico e arquitetônico ao mesmo tempo, mas de modo diferente do das ciências, uma vez que seus atos de análise e de construção não se referem a fatos, não visam uma representação abstrata dos fatos e, propriamente falando, não há objetos filosóficos.

Fonte:
Livro: Por Um Conhecimento Filosófico
Autor: Gilles-Gaston Granger
ISBN: 8530800648
Editora Papirus





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