segunda-feira, 6 de abril de 2009

Jürgen Habermas

A terceira via entre laicismo e radicalismo religioso


Jürgen Habermas, filósofo alemão, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 19-07-2008.
Fonte: UNISINOS



Os multiculturalistas lutam para adequar respeitosamente o sistema jurídico às pretensões de tratamento igual, avançadas pelas minorias religiosas. Eles põem em guarda sobre os perigos da assimilação forçada e do desenraizamento. O estado laico não deve integrar as minorias no igualitarismo cívico de maneira tão drástica que erradique os indivíduos singulares dos seus contextos identitários. Vista nesta perspectiva comunitarista, uma política de integração abstrata corre o risco de sujeitar as minorias aos imperativos da cultura majoritária. Por exemplo, Timothy Garton Ash sublinha o fato de que há “também mulheres muçulmanas que recusam a maneira com que Hirsi Ali atribui ao islamismo em geral – e não às culturas nacionais, regionais e tribais em particular – a responsabilidade de sua opressão”. E efetivamente, os imigrantes muçulmanos serão integráveis na sociedade ocidental, não a despeito de sua religião, mas somente em harmonia com ela.

Em outra vertente, os secularistas lutam por uma inclusão ‘color-blind’, culturalmente daltônica, de todos os cidadãos, prescindindo de sua origem cultural e de sua pertença religiosa. Este partido põe em guarda sobre as conseqüências de uma política identitária que “dobre” excessivamente o sistema jurídico às exigências específicas das minorias culturais. Nesta perspectiva laicista, a religião deve permanecer como uma questão exclusivamente privada.

Ambas as partes buscam o mesmo objetivo: a convivência civil de cidadãos autônomos no quadro de uma sociedade liberal. Eles se enfrentam, todavia, na disputa de um ‘Kulturkampf’, de um conflito cultural que se reacende a cada provocação.

Embora a interação recíproca dos dois aspectos seja evidente, ambas as partes continuam discutindo se a tutela da identidade cultural deva preceder as garantias da inclusão cívica, ou vice-versa. O tom estrídulo da polêmica deriva das premissas filosóficas que os adversários - com ou sem razão – se atribuem reciprocamente. Ian Buruma observou justamente como após o 11 de setembro de 2001 a disputa, antes somente acadêmica, sobre iluminismo e anti-iluminismo, modernidade e pós-modernidade, tenha surgido das salas universitárias para entrar nas praças. Na realidade, são antes as problemáticas convicções remanescentes que fomentam a disputa: de um lado, um relativismo cultural maquiado de maneira pós-moderna, e do outro lado um laicismo anti-religioso e démodé.

Não é aqui o caso de retornar à incoerência filosófica da crítica-da-razão propugnada pelo relativismo cultural pós-moderno. Trata-se, todavia, de uma posição interessante também por outro motivo. Ela nos ilumina sobre os verdadeiros motivos de certos vira-casacas que passaram da esquerda à direita. Diante do terrorismo islâmico, certos “multiculturalistas” de sistema se transformaram rapidamente em falcões belicistas e acabaram por aliar-se inesperadamente aos “fundamentalistas do iluminismo” de tipo neoconservador.

Evidentemente, na luta contra o islamismo, estes convertidos continuaram vendo no iluminismo aquela mesma “ideologia ocidental” que eles já combatiam anteriormente, julgando-a carente de dimensão universalista. “O iluminismo tornou-se agora de moda, enquanto os seus valores não são somente universais, mas são também valores nossos, ou seja, da Europa e do Ocidente”.

Na visão do laicismo radical pouco importa o realce sociológico que registra, até mesmo nas sociedades secularizadas do Ocidente, o novo papel da religião na formação política da opinião e da vontade. Embora se aceite, por vezes, como empiricamente correta a qualificação de “pós-secular” referida às sociedades da Europa ocidental, é possível ficar filosoficamente convencido que as religiões devam sua ininterrupta influência à obstinada sobrevivência de formas pré-modernas do pensamento (uma sobrevivência que deveria depois ser explicada no plano sociológico). Do ponto de vista dos laicistas, em suma, os conteúdos de fé são, em todo o caso, cientificamente desacreditados. E, precisamente este comportamento científico os impele a polemizarem com vivacidade contra as tradições, pessoas e organizações religiosas que pretendem fazer valer um significado público a elas inerente.

Gostaria, aqui, de fazer uma distinção entre laico e laicista. A pessoa laica ou não crente se comporta com indiferença agnóstica perante as pretensões religiosas válidas. Ao invés disso, ante doutrinas religiosas que conservam relevância pública prescindindo de sua falta de fundamentação científica, os laicistas assumem uma conduta polêmica. Hoje o laicismo se apóia com freqüência num naturalismo ‘hard’, duro, isto é, fundado sobre assuntos científicos. Diversamente do caso do relativismo cultural, não preciso aqui discutir os pressupostos filosóficos que estão por trás. Neste contexto, interessa-me antes perguntar-me se uma desvaloração laicista da religião, que fosse, na hipótese, compartilhada um dia pela grande maioria dos cidadãos laicos, seria ainda conciliável com o balanço pós-secular de “igualdade cívica” e “diferença cultural”. Em outros termos, pergunto-me se uma hipotética mentalidade laicista da grande massa dos cidadãos não acabaria por ser – com o fito da autocompreensão normativa de uma sociedade pós-secular – tão pouco desejada quanto uma deriva fundamentalista dos cidadãos crentes.

Quem sabe se não ocorreria um processo de aprendizagem – além da vertente do tradicionalismo religioso – também na própria vertente do secularismo? As próprias expectativas normativas que governam a inclusão democrática não nos impedem, talvez, de desacreditar laicisticamente a religião, da mesma forma como nos impedem de aceitar, por exemplo, a disparidade religiosa entre o homem e a mulher? Em todo caso, um processo complementar de aprendizagem na vertente do secularismo se torna necessário no próprio momento em que, ante a concorrência das visões religiosas do mundo, não se interprete mais o secularismo do estado como uma mera exclusão das contribuições religiosas da esfera política pública.

É oportuno que o Estado democrático não reduza preventivamente a complexidade polifônica das diversas vozes públicas, enquanto ele não pode mais saber se, assim fazendo, não esteja privando a sociedade de recursos úteis à fundamentação do sentido e da identidade. Com referência, sobretudo, a setores vulneráveis da convivência social, as tradições religiosas dispõem da capacidade de articular de maneira convincente sensibilidades morais e intuições solidaristas.

A esta altura, o que complica o secularismo é a expectativa pela qual os cidadãos laicos deveriam confrontar-se com os seus concidadãos religiosos – na sociedade civil e na esfera política pública – levando a sério sua fé num pé de perfeita paridade. Se, ao encontrar os concidadãos religiosos, os laicos devessem pensar não poder levá-los a sério como contemporâneos da modernidade devido ao seu comportamento religioso, então se recairia no plano de um mero modus vivendi e se perderia aquela base de mútuo reconhecimento que é constitutiva da cidadania. Por isso, os laicos não devem excluir a priori a possibilidade de descobrir, nas contribuições religiosas, conteúdos semânticos – e em alguns casos até precisas intuições não expressas – que são suscetíveis de serem utilmente traduzidas no plano da argumentação pública.

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