segunda-feira, 6 de abril de 2009

Gianni Vattimo

O poder que extingue a caridade


O filósofo italiano Gianni Vattimo analisa os recentes fatos que envolvem a morte de Eluana Englaro em artigo para o jornal La Stampa, 11-02-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Fonte: UNISINOS



Mas quem exerceu um pouco de caridade cristã com relação a Eluana Englaro? Os fiéis que se reuniam nas igrejas e nas praças para esconjurar o "assassinato", ou o pai, que, apoiado por pronunciamentos judiciários precisos, queria ajudá-la a interromper o sofrimento inútil do qual era prisioneira?

É verdade, não havia um documento escrito de seu punho, no qual ela expressasse o desejo de que deixassem-na morrer. Até porque, na Itália, nunca se pôde discutir de verdade sobre testamento biológico, por responsabilidade precípua daquela Igreja que dizia querer defender a sua vida. Mas, na falta do documento, os tutores “naturais”, a família, mereciam ser escutados. Certamente, não tinham nenhum interesse em deixá-la morrer, a menos que se considere interesse o desejo de não vê-la sofrer mais e de não deixá-la reduzir-se a uma larva. (E a menos que compartilhem da suspeita obscena de que o pai queria libertar-se de um fardo incômodo).

Por que mantê-la viva a todo o curto? O direito à vida não pode ser puramente direito à sobrevivência biológica: respiração, processos digestivos, funções vegetativas. Ciência e consciência dos médicos que a seguiam há 17 anos concordavam que não havia esperança de recuperação, portanto, sobreviver não podia ter o sentido de espera de uma cura. Não é, porém, vida vegetativa aquela da qual a tradição cristã ou também o bom senso humano falam. "Propter vitam vivendi perdere causas?" Apenas para sobreviver, renunciar à própria razão da vida? Os mártires cristãos aceitavam a morte para não renegar a fé. Pecavam contra a vida? E os grandes suicidas da tradição clássica que preferiam a morte à escravidão seriam condenáveis? Também quem crê que a vida é “um dom de Deus” não pode não pensar que se trata de aceitar e gerir isso em plena liberdade.

Mas se Eluana tivesse escrito esse testamento biológico que ainda não existe nas nossas leis, poderíamos, como cristãos, respeitar a sua escolha? Pelo que se viu nesses dias, a Igreja não admitiria nunca que alguém pudesse pedir para ser deixado morrer, com a suspensão de alimentação e hidratação – que, descobriu-se agora no Vaticano e arredores, não são terapias (que o paciente pode recusar), mas formas de assistência elementar à vida.

Estão em jogo valores "indisponíveis", questões de princípio. Justamente aqueles que pretenderam legitimar, durante os séculos, tantos delitos eclesiásticos contra a caridade: as fogueiras das bruxas, dos hereges, dos livre-pensadores. É verdade que não se pode admitir que uma pessoa decida se a própria vida é ainda digna de ser vivida ou não? Se nos colocamos essa simples pergunta, vemos como, por trás da questão de princípio (a vida é um bem indisponível), esconde-se uma questão puramente de poder e especificamente de poder eclesiástico: nenhum de nós é capaz de conhecer o próprio bem “verdadeiro”, só a Igreja. E o poder, a história ensina, é conservado com a força e o temor.

Não é totalmente inverossímil que a Igreja, consciente de não dominar mais as consciências com o temor do Inferno, antecipa aquelas penas ao momento do morrer. Hoje que a ciência-técnica pode prolongar a sobrevivência vegetativa ao infinito, tememos, muito mais do que o Inferno, o fato de sermos mantidos em vida em um estado larval, talvez até com dores e sofrimento, pelo menos psicológico (a dor é sempre “redentora”, e “nenhuma lágrima é perdida”, diz o Papa).

É sobre esse terror que a Igreja não quer perder o seu domínio. Também aqueles entre nós, que, como eu, estão convencidos da necessidade da existência da Igreja para transmitir o Evangelho, não se sentem mais dispostos a aceitar por isso, o escândalo das questões de princípio invocadas por pura aspiração ao poder. É verdade, talvez, que, “se quer destruir alguém, Deus o enlouquece primeiro”?

Procurar ser caridosos com Eluana e com todos aqueles que querem poder decidir sobre a própria vida é também um modo de ajudar a Igreja a não se destruir por delírio de onipotência.

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