terça-feira, 19 de maio de 2009

Roberto Ciccarelli

Códigos novos na era do direito pós-humano

O que a biopolítica diz hoje aos juristas é que a relação entre direito e vida é compreensível apenas fora da lógica formal que caracterizou o direito moderno. No seu último trabalho, “Diritto Vivente” [Direito vivo, em tradução livre] (Editora Laterza, 226 páginas, 20 euros), Eligio Resta, professor de filosofia do direito na Universidade III de Roma, assume plenamente esse novo cenário em que emerge um direito não mais ligado a uma “ciência pura”, nem só à esfera estatal, mas a um caráter excedente, o da vida com relação às formas institucionais que a regulam. A análise é de Roberto Ciccarelli, publicada no jornal Il Manifesto, 27-11-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS




Tradicionalmente, a vida foi entendida como uma dimensão “intersticial” entre lei e autoridade. Sobre esse “suporte”, variavelmente definido como “costume”, “comportamento”, ou ainda “história”, o direito exercitou as próprias funções normativas, disciplinárias ou “pastorais”. Resta coloca essa fundamentação de cabeça para baixo e defende que hoje a vida é a da esfera excedente na qual o direito age, tentanto inclinar de tempos em tempos a norma jurídica com relação aos seus movimentos.

Essa modificação completa é explicada com uma ampla genealogia na qual o direito não é mais declinado nos termos conhecidos do nomos basileus. Com relação à genealogia de Carl Schmitt, inspirada pelo poeta grego Píndaro que ligou direito com soberania, Resta propõe a do filósofo Archita, baseada sobre o nomos èmpsychos. É à vida que o “direito vivo” se dirige, não ao estatuto retrospectivo das normas escritas, isto é, ao àpsychos, ao sem-vida. O soberano, como os cidadãos, exerce igualmente a lei, já que compartilham a própria vida e, por isso, “fazem” juntos a lei.

Nessa perspectiva, a atividade do direito não é limitada à prática dos juízes ou dos advogados. O direito é praticado também por grupos sociais, por sujeitos econômicos como bancos, seguradoras ou sociedades imobiliárias e financeiras. Mas o sentido mais profundo está no fato de que o “direito vivo” é essencialmente vir a ser, antagonismo, dialética. Ele recolhe práticas sociais, paixões e vontades políticas que atravessam o texto escrito da lei, mas mantêm um excesso com relação a ele. Falando de “excesso” da vida com relação à lei, os juristas não fazem alusão a uma concessão “vitalista” ou “irracional”, mas ao limite constitutivo do direito capaz de fechar em uma única norma a multiplicidade das formas assumidas por uma vida. Sobre essas bases, Resta consegue defender a idéia de um direito que valoriza a autonomia pessoal, não só o reconhecimento dos sujeitos em um código de leis. Quanto de “vivo” existe no direito é, portanto, essencial seja com relação a casos como o de Eluana Englaro, seja em referência à busca de um futuro mais justo para as novas gerações.

Não faltam, porém, elementos problemáticos nessa “semântica” jurídica. A intenção de Resta é mostrar um direito imanente às formas de vida. Mas em que sentido se fala de um “direito vivo” no caso das políticas securitárias sobre a imigração, ou contra o terrorismo? Aquilo que é “vivo” no direito revela aqui uma ambivalência perigosa, pela qual, de um lado, tende-se a valorizar o “excesso” de algumas formas de vida, mas de outro a atividade do direito mira a um controle preventivo dessas formas, contribuindo à criação de um novo, e muito flexível, “direito vivo” dos aparatos de controle. Tal ambivalência é o enigma do jurista que se confronta com a época “biopolítica” do direito. Muito simples e presunçosa seria a idéia de resolvê-lo. Esperada, pelo contrário, seria a recorrente lamentação nostálgica à “desumanização” do direito. O direito, é a resposta do livro de Resta, entrou na era do “pós-humano”. Tomar consciência da ambivalência constitutiva desse direito permite ao jurista entender as novas instâncias provenientes da sociedade evitando que o seu excesso termine por ser removido do poder.

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