sexta-feira, 15 de maio de 2009

Tzvetan Todorov

Os torturadores voluntários de Bush

Artigo de Tzvetan Todorov, semiólogo, filósofo e historiador de origem búlgara publicado no jornal El País, 14-05-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS




Os documentos relativos às práticas de tortura empregadas nas prisões da CIA que o governo Obama tornou público lançam uma nova luz sobre este tema. Como explicar a facilidade com que a tortura tenha sido aceita e aplicada contra os prisioneiros por pessoas que atuam em nome do governo estadunidense?


Os documentos recém publicados não revelam casos de tortura concretos, estes são de conhecimento de todos. Entretanto, revelam abundantes informações sobre a forma em que se levavam a cabo as sessões de tortura e como as entendiam os agentes que as praticavam.


O mais surpreendente é descobrir a existência de uma normativa incrivelmente meticulosa, formulada nos manuais da CIA e retomada, a sua maneira, pelos responsáveis jurídicos do governo de George W. Bush. Até agora era possível imaginar que tais práticas eram uma mostra do que se pode denominar “atropelos”, infrações involuntárias das normas provocadas pela urgência do momento. Ao contrário, o que se percebe nos documentos é que se trata de procedimentos pautados até em seus mínimos detalhes, aos milímetros, perfeitamente cronometrados.


Assim, as formas de tortura são 10, número que posteriormente é elevado a 13. Dividem-se em três categorias, cada uma delas com diversos graus de intensidade: preparatórias (desnudez, manipulação da alimentação, privação de sono), corretivas (golpes) e coercitivas (duchas de água fria, encerramento em caixas, suplício da banheira).


No caso das bofetadas, o interrogador, segundo os manuais, deve golpear com os dedos separados em um ponto equidistante entre o extremo do queixo e a parte inferior do lóbulo da orelha. A ducha fria aplicada ao prisioneiro sem roupa pode durar 20 minutos se a água está a cinco graus, 40 minutos se está a 10 graus e até 60 minutos se está a 15 graus.


A privação de sono não deve ser superior a 180 horas, mas depois de um repouso de oito horas, pode recomeçar. A imersão na banheira pode durar até 12 segundos, durante um período que não deve exceder a duas horas diárias, e durante 30 dias seguidos (um preso particularmente resistente passou por este suplício 183 vezes em março de 2003). O encerramento em uma caixa de dimensões reduzidas não deve ser superior a duas horas, mas se a caixa permite que o prisioneiro fique de pé, pode se prolongar até oito horas seguidas, 16 por dia. Caso se introduza um inseto, não se deve dizer ao prisioneiro que a picada será dolorosa ou inclusive mortal.
E segue assim sucessivamente por páginas e páginas.


Inteiramo-nos também por estes documentos de como se formam os torturadores. A maioria dessas torturas é reproduzida do programa que seguem os soldados americanos que se preparam para enfrentar situações extremas (o que permite aos responsáveis concluir que se trata de provas absolutamente suportáveis). E o que é mais importante, se escolhe os torturadores entre aqueles que tenham tido “uma longa experiência escolar”, nesse tipo de provas, os próprios torturadores foram torturados em sua primeira fase de sua formação – um curso intensivo de quatro semanas para prepará-los para o seu novo trabalho.


Os sócios indispensáveis dos torturadores são os conselheiros jurídicos, cujo trabalho é garantir a impunidade dos seus colegas. Isto constitui outra novidade: a tortura já não se apresenta como uma infração da norma comum, mas sim que se converte na própria norma legal. Nesse caso, os juristas recorrem a outra série de técnicas. Para se livrar da lei, os interrogatórios devem se realizar fora do território nacional dos Estados Unidos, mesmo que em bases americanas em outros países.


Tal como se define legalmente, a tortura implica a intenção de produzir um grande sofrimento. Sugere-se, por conseguinte, aos torturadores que neguem essa intenção. De tal modo que não se esbofeteia o preso para produzir dor, mas sim para surpreendê-lo e humilhá-lo. Quanto ao objetivo de encerrá-lo em uma caixa de reduzidas dimensões não se trata de provocar desordem sensorial, mas sim produzir certa sensação de incômodo.


O verdugo deve insistir sempre em sua “boa fé”, em suas “convicções sinceras” e no razoável de suas premissas. Utilizam-se sistematicamente de eufemismos: “Técnicas reforçadas” no lugar de tortura, “especialista em interrogatórios” no lugar de torturador. Também se evita deixar sequelas físicas e, por esta razão, se preferirá a destruição mental dos danos físicos, assim mesmo, se destruirá imediatamente as possíveis gravações ou imagens das sessões.


Outros coletivos colaboram na prática da tortura: o contágio se estende para além do limitado círculo dos torturadores. Além dos juristas que se encarregam de dar legitimidade a suas atividades, os documentos e mencionam sistematicamente os psicólogos, os psiquiatras e os médicos (obrigatoriamente presentes em todas as sessões), e também as mulheres (os torturadores são homens, mas a humilhação é ainda maior, mais grave, quando há mulheres presentes), e aos professores de universidade que provêem justificações morais, legais ou filosóficas.


A quem devemos responsabilizar por esta perversão da lei e dos princípios morais mais elementares? Os executores voluntários da tortura são menos responsáveis do que aqueles dos altos cargos e os magistrados que a justificaram e a fomentaram; e estes, menos responsáveis, por sua vez, daqueles que tendo o poder de tomar decisões políticas lhes pediram que fizessem.
Os governos estrangeiros aliados, sobretudo os europeus, também têm a sua parte de responsabilidade. Em que pesem terem estado sempre cientes da existência dessas práticas e de terem sido beneficiados pelas informações obtidas por estes meios, nunca, nem antes, nem agora, se preocuparam em levantar o mais mínimo protesto, nem sequer fizeram o mais leve sinal de desaprovação. Quem cala consente. Teríamos que coloca-los no banco dos réus?


Em uma democracia, a condenação de políticos consiste em privá-los de sua reeleição. E em relação aos outros profissionais, esperar-se-ia que sejam os seus iguais que imponham o castigo. Quem gostaria de ser aluno de semelhante professor, paciente de um médico ou ser julgado por um juiz assim?


Se se quer compreender porque estes valentes estadunidenses aceitaram tão facilmente se converter em torturadores, não adianta procurar argumentos no ódio em um meio ancestral dos muçulmanos ou árabes. Não. A situação é muito mais grave. O que mostram os documentos estadunidenses que acabam de se tornar públicos é que sempre e quando se faça parte de um coletivo e se esteja respaldado por ele, qualquer homem que obedeça aos nobres princípios ditados pelo “sentido do dever”, pela necessária “defesa da pátria”, ou que se deixe arrastar por um temor elementar pela vida e o bem estar dos seus, pode converter-se em um torturador.

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