Filósofo italiano, Massimo Cacciari é professor de Estética na Universidade de Veneza desde 1985 e fundador da Faculdade de Filosofia da Universidade Vita-Salute San Raffaele, em Milão. Com este texto, inaugura-se nesta quinta-feira, na Aula Magna de Santa Lucia na Bolonha, Itália, a oitava edição da manifestação "Os Clássicos", dedicada neste ano ao tema do dinheiro com o título "Rainha pecúnia". O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 06-05-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS
Rainha pecúnia... mas de qual "pecúnia" falamos? Da qual no mesmo nome ressoa a relação com a substancialidade da coisa, com a posse do "pecus", do animal do campo, do animal doméstico, que o "pastor" cuida zelosamente? Essa "pecúnia" foi destronada há tempos. Todas as propriedades da coisa, enquanto valor de troca, se apresentam separadas da sua forma natural no dinheiro. O dinheiro torna homogêneo, enquanto mercadoria, tudo o que, por natureza, é diferente. "A comum prostituta do gênero humano" torna um o coração de Antônio e os cães, os porcos, os escravos e os palácios dos seus zelosos amigos. Shakespeare docet, Marx discit.
Mas o dinheiro se distingue radicalmente da antiga pecúnia não só porque dessubstancializa o mundo, mas também porque exclui toda avareza. Se o mantivermos parado, ele se "evapora". O avaro gostaria que o seu dinheiro não se "solidificasse" nunca, gostaria que fosse "líquido" sempre, e que justamente dessa forma pudesse se multiplicar. Mas isso é impossível. O dinheiro, para se reproduzir, precisa "desaparecer" de novo no valor de uso, transformando-se em mercadoria. O dinheiro deve "morrer" para "renascer". A "mística" desse dinheiro foi explicada por Marx de uma vez por todas.
Mas isso que talvez não foi bem apreendido da lição marxista é a imanente e insuperável contradição de tal dialética. Se o dinheiro sempre deve "jogar" novas mercadorias para fora de si "como combustível no fogo" (Marx) e portanto criar e recriar necessidades, nada assegura que tais mercadorias podem se transformar novamente em valores. O sujeito que, ao consumir a mercadoria, faz "renascer" o dinheiro não é o mesmo que o "arrisca" na produção. Aqui surge a tendência ou a "tentação" insuperável de não "solidificá-lo", de tentar multiplicá-lo sem deixá-lo sair da sua "abstração". Mas não existe nenhuma "mina" onde o dinheiro pode estar protegido sem se anular. Assim como não há nenhum "mercado" que garanta o seu retorno para "casa", mais forte e mais preparado para novas aventuras.
O dinheiro é sinal de crise. Também para o indivíduo. As entidades-mercadorias das quais ele é o equivalente universal são todas perecíveis. Ele só parece ser indestrutível. E, portanto, o desejo para ele não pode ser aplacado na posse. O dinheiro produz um desejo ilimitado, que nenhum dos produtos em que se encarna jamais poderá satisfazer. O pastor podia "ficar-contente" com o seu "pecus". Quem possui o dinheiro nunca poderá ficar e está obrigado a "jogá-lo" na circulação, a "perdê-lo" para buscar reencontrá-lo. E quem, graças ao infinito poder do dinheiro, não adquire a não ser a "miséria" dessas efêmeras mercadorias, também não poderá.
Porém, é necessário falar da essência metafísica do dinheiro, sem nenhum moralismo e distante de todo desprezo reacionário. É verdade que o processo de circulação que o dinheiro gera produz a perene insatisfação do consumo, mas é verdade também que nisso se representa a minha autonomia, a "liberdade" da pessoa com relação a toda medida ou lei universal de felicidade ou de bem-estar. Apenas eu posso saber quanto ele me custou e apenas eu posso saber qual grau de bem-estar me dão a aquisição e o consumo que ele permite. Não existem medidas objetivas de felicidade, nem existe a possibilidade de determinar, em absoluto, onde circula a discriminação entre necessidades necessárias e supérfluas.
Certamente, nada de essencial pode se expressar no desejo individual e, por isso, nada de essencial pode ser buscado por meio do poder universal do dinheiro. Mas, longe de levar à conclusão vetero-moralista "o dinheiro não conta", "não pode nos fazer felizes" etc., isso não representa nada mais do que aquela "lei individual", que Georg Simmel ilustrou no seu magnum opus "A filosofia do dinheiro", publicado em 1900, pedra angular da contemporaneidade: nada pode nos impor a "medida" do nosso ser feliz. O dinheiro é universal justamente ao expressar a impossibilidade de uma tal "medida" e a não essencialidade do nosso desejo, "libertando-nos" assim da "soberba" de erigi-lo de alguma forma como norma ou modelo. No espelho do dinheiro, revela-se apenas a infinitude do desejo. E este apenas nos é comum. Mas como o dinheiro, para ser, deve "morrer" na individualidade determinada das mercadorias, assim a infinitude do desejo, para viver, deve se encarnar na não essencialidade do meu ser feliz ou infeliz.
Essa onipotência paradoxal do dinheiro nunca resolvível em curso, sempre incompleta, pode ser entendida como "mundanização" do deus judaico-cristão? Ainda Simmel considerava isso como certo. Devemos hoje nos tornar todos mais cautos ao aplicar, em todo o lugar, como passe-partout, a ideia de secularização. A onipotência infinita da imagem do dinheiro é a de um poder comprar tudo. Mas isso é justamente um actu irrealizável. E tudo o que é comprável é não essencial.
A onipotência divina, pelo contrário, se "esvazia" de si para poder amar tudo aqui-e-agora. O amar também nunca chega à meta, nunca está "contente", mas não porque passe de consumo para consumo. Ao invés: porque o seu "amado" está além de toda lógica da posse e do consumo. A sua troca é puramente dom, enquanto o dinheiro "funciona" apenas naquela relação em que nada de "gratuito" intervém. "Isso é algo gratuito", assim fala o dinheiro – e entende: "isso é algo insensato, ilógico, inútil". Porém, o seu poder deve, no fim, reconhecer essa "lei individual" que afirma a não essencialidade do desejo e do consumo que ela permite. E assim, paradoxal e negativamente, o próprio dinheiro acena àquele "inútil" da gratuidade do dom, onde se protege o inconsumível e indestrutível, que continuamos, apesar de tudo, a advertir em nós, "no coração" mesmo da nossa perene busca e do seu contínuo falir.
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