sexta-feira, 21 de maio de 2010

Maria Filomena Mónica

Orwell e a liberdade


Maria Filomena Mónica - Universidade de Lisboa
Fonte: Crítica - Revista de Filosofia



No fim de 1936, Orwell alistou-se, em Barcelona, num batalhão composto por dissidentes comunistas e trotskistas, o POUM, a fim de lutar contra as tropas de Franco. Foi a partir desta experiência que escreveu outra obra excepcional, a Homenagem à Catalunha. Ao assistir à denúncia de companheiros seus feitas pelos comunistas ao inimigo franquista, percebeu que jamais se devia, podia, pactuar com eles. Muito antes de H. Arendt, Orwell anunciou as semelhanças entre o estalinismo e o nazismo.

Curiosamente, não foi este livro que o tornou famoso, mas um romance medíocre, mas que tocava numa corda sensível dos que estavam atentos à evolução das sociedades, o Mil Novecentos e Oitenta e Quatro. Publicado em 1949, deu imediatamente origem a uma forte polémica, tendo Orwell de vir a público esclarecer que o que escrevera não era um ataque a toda a esquerda, mas apenas ao comunismo e a algumas tendências totalitárias, que ele começa a notar, nas sociedades de massas. Foi o desejo de ligação entre liberdade e igualdade que o levou a escrever o Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, uma parábola que pretendia avisar para os perigos de uma sociedade consolidada com base na novilíngua, ou seja, num tipo de linguagem, politicamente correcta, destinada a impedir os cidadãos de entenderem o que os rodeava.

A retórica política moderna — vazia, sem conteúdo, absurda — tem contribuido para ressuscitar uma obra em a que sociedade de tal forma é controlada pelo estado que as liberdades individuais acabam por desaparecer sem que alguém tenha capacidade para resistir à tirania. Olhe-se os slogans usados pelos governantes da Oceânia: a Guerra é a Paz, a Liberdade é a Escravidão, a Ignorância é a Força. Note-se, em seguida, a retórica produzida por alguns dos políticos envolvidos na condução da Guerra contra o Eixo do Mal. Apesar de falar de Direitos Humanos foi Bush quem autorizou a criação de Guantanamo, desta forma contribuindo para minar a credibilidade da actuação no Iraque, foi Blair quem se rodeou de "especialistas de imagem" que tentaram, de forma desastrada, minar os efeitos da descoberta de que afinal não existiam "armas de destruição maciça" no Iraque, foi, a nível caseiro, Santana Lopes quem teve recentemente a ideia da criação de uma Central de Informação. Gradualmente, a propaganda, cada vez mais eficiente e mais controlada pelos poderosos, tende a minar a confiança dos governados nos políticos. A novilíngua veio para ficar.

Parte do sucesso do romance de Orwell reside no facto de, muito antes de outros, ele ter percebido algumas das características negativas das sociedades modernas e dos respectivos sistemas políticos. Ainda hoje, muitos não entendem o que está a acontecer. Veja-se, por exemplo, a incompreensão da esquerda europeia diante da vitória, nos EUA, de G. Bush. Estivesse Orwell vivo e teria explicado o motivo desta escolha supostamente aberrante. Ao contrário do que dizia o credo liberal, ele compreendera que muitos cidadãos não desejavam afinal conhecer a realidade. No seu romance, é perante a passividade dos indivíduos, que o estado consegue, nomeadamente através da deformação da memória, manipular a realidade, para que os cidadãos se comportem como ele deseja.

Orwell tão pouco se espantaria com o facto de os obstáculos à liberdade de pensamento não terem acabado após a queda do Muro de Berlim. Porque o comunismo não era o único regime que tinha interesse em distorcer a verdade. As democracias também podiam ser corrompidas, o que, como ele tantas vezes alertou, implicava a necessidade de estar sempre atento à linguagem dos políticos.

O problema que Orwell abordou em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro não foi tanto o das guerras em que a Oceânia estava envolvida, mas o da maneira como os governantes explicavam à população a razão do envolvimento bélico. Orwell dava importância às palavras que os políticos usavam. É por isso que recomendo, acima de tudo, o ensaio "A Política e a Língua Inglesa", parte da coroa de glória de Orwell, o seu jornalismo, disponível nos quatro volumes que a Penguin organizou em 1970.

Pode parecer estranho que me tenha dado ao trabalho de reler, e de vir hoje falar, da obra em grande medida desconhecida de um escritor morto em 1950. Mas a sua actualidade é evidente. Mais do que a sua preocupação com os desfavorecidos, que nele conta, é o seu enraizado amor pela liberdade que importa recordar. A actual situação, em que a União Europeia nos pretende ditar o tamanho das bananas, os brinquedos com que os nossos filhos podem brincar e, até que chegue a interdição final, onde e quando podemos fumar, tê-lo-ia horrorizado. Numa palavra, é o seu amor pela liberdade individual que atrai.

O fascismo, tal como surgiu anos 1930, não regressará. Mas a democracia representativa está em crise. Nascido num país, onde, durante muito tempo, a aristocracia fundiária dividiu o poder com a burguesia, este sistema político está a ser minado por vários factores, de que os meios de comunicação são um dos mais importantes. Por mim, viveria bem num regime baseado na concepção de "um homem/um voto", mas sei que existem tendências que vão contra este modelo de organização política. Nos países ocidentais, a abstenção nos actos eleitorais tende a crescer. Ora, quando a população se não reconhece nos actos dos seus representantes está aberto o caminho para o abismo, o qual poderá ter algumas semelhanças com o que Orwell previu para 1984. Para Orwell, mais do que a igualdade, a questão central das sociedades modernas residia na liberdade. É por isso que importa voltar a ler o que ele escreveu.

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